domingo, 18 de outubro de 2009

Homilia Domingo XXIX do Tempo Comum

Tiago e João foram pedir ao Senhor que lhes concedesse sentarem-se à sua direita e à sua esquerda. Foi um pedido bastante ousado e por isso criticado pelos demais discípulos, pois também eles aspiravam no seu intimo aos mesmos lugares, fazer o mesmo pedido ao Senhor Jesus.
Mas se para os outros discípulos foi um pedido que não os deixou indiferentes, também a nós não nos devia deixar indiferentes, porque afinal todos aspiramos ao mesmo, no fundo todos acalentamos o mesmo desejo de glória e poder, e por isso o pedido de João e Tiago devia provocar-nos tanto como provocou os demais discípulos. Queremos ou não sentar-nos à direita e à esquerda de Jesus no seu reino de glória?
Não podemos deixar de assumir que todos, qualquer um de nós, aspiramos aos melhores lugares. Está-nos, como se diz, na massa do sangue e podemos confirmar esta afirmação se tivermos em conta como nos comportamos numa realidade tão simples e tão banal como é o cinema. Não queremos nem a primeira fila nem a última e se for possível que o vendedor nos consiga queremos um lugarzinho ali pelo centro da sala, onde podemos visionar o filme com maior conforto. Afinal desejamos sentar-nos à direita ou à esquerda, desejamos o melhor lugar.
Por esta razão, porque de facto é da nossa natureza e pode levar-nos a um bom porto, Jesus não repreende nem recrimina os discípulos pelo pedido que lhe fazem. É como se fosse verdadeiramente natural que eles quisessem aqueles lugares, que aspirassem a eles. Contudo, aceder a eles, a qualquer lugar no Reino dos Céus é consequência de um conjunto de condições prévias, de um compromisso que Jesus traduz em beber o cálice que Ele mesmo vai beber.
Perante a interrogação da possibilidade de assumirem ou não essas condições Tiago e João respondem positivamente e Jesus corrobora essa resposta dizendo que eles de facto beberão do mesmo cálice que Ele beberá. Este diálogo mostra-nos a real possibilidade de respondermos ao seguimento de Jesus, à sua possibilidade na nossa vida. É de facto possível, mas para tal temos que confrontar a nossa vida, os nossos gestos quotidianos com a vida de Jesus, a vida verdadeira de Jesus.
E aqui, nesta confrontação, podemos cair em duas tentações, uma primeira que tende a ver no serviço, na generosidade, na nossa acção activa e participativa a forma concreta do seguimento de Jesus. A outra tentação tende a ver em tudo o que acontece a presença de Deus, a actividade de Deus, um certo fatalismo divino que nos deixa muito tranquilos porque Deus afinal cuida de tudo e não nos abandonará.
Mas o seguimento de Jesus é muito mais que estas duas possibilidades, ultrapassa-as em exigência e profundidade. O seguimento de Jesus é esse serviço ao outro que não fica apenas pelo serviço mas que vai até à entrega em resgate, pela redenção. No serviço, na disponibilidade para servir o outro, para o ajudar nas suas necessidades, há uma parte de nós próprios que permanece, que não é entregue. Continuamos ainda senhores de qualquer coisa nossa, como seja a possibilidade de colocar fim à mesma entrega e serviço. Continuamos ainda donos e senhores.
Isto é visível de uma forma transparente nos leigos e grupos que fazem voluntariado missionário. Todos eles entregam um pouco da sua vida, da sua pessoa, do seu projecto aos outros, ao serviço dos outros. Contudo é sempre um tempo limitado, um período da vida, um momento, que não permite a experiência do dom total porque há sempre um poder de retirada, de salvaguarda. Com isto, não quero criticar de forma alguma estes grupos e estas pessoas, bem pelo contrário, quem dera que houvesse muito mais. Ao referi-las aqui e neste dia das missões é apenas com o intuito de exemplificar a limitação que pode acontecer no serviço que pretendemos considerar como seguimento de Jesus.
Porque quando Jesus fala do serviço a que nos convida, fala imediatamente de doação de vida, de entrega total e sem limites. Para ele esse é verdadeiramente o único serviço no contexto do Reino dos Céus. E isto é assim porque no contexto do serviço com doação de vida o que é nosso deixa de o ser, até mesmo a nossa vontade e disponibilidade. Como num resgate somos a moeda de troca, aquela realidade que pode resgatar o outro da situação em que se encontra, seja ela de violência, de fome ou miséria, ou de pecado. E neste estado e contexto já não somos nada, já não temos qualquer poder, são os outros que decidem sobre nós e a nossa vida e serviço.
Os milhares de religiosos e religiosas missionárias que entregam as suas vidas à missão nos diversos países são a expressão, ou a tentativa de expressão, desta realidade do serviço doação no seguimento de Jesus. Eles não têm um prazo de serviço, nem vão ou estão porque querem acrescentar alguma coisa ao seu curriculum, ou querem ter uma experiência radical para recordarem e mais tarde contarem aos netos. Eles doaram a sua vida, e não propositadamente à missão, mas a alguém que os leva a essa missão, a alguém pelo qual estão com os pobres e os marginalizados porque neles revêem aquele a quem se entregaram.
Não podemos deixar de dizer que tudo isto não é mais que um negócio de amor, um grande negócio de amor, uma teia negocial que se vai tecendo e vai crescendo à medida que a entrega é cada vez maior e mais radical, mais despojada de qualquer compensação, até espiritual.
Todos nós ficámos de alguma forma chocados quando ouvimos nas notícias que a Madre Teresa de Calcutá tinha passado por momentos de dúvida, de nocturna aridez espiritual. Contudo, e apesar disso ela não abandonou a sua missão, o seu serviço, manteve-se firme e constante porque a sua entrega e o seu serviço não era limitado, não tinha barreiras, nem na sua própria satisfação espiritual. Ela estava ali com os pobres, pobres a quem se entregava como resgate para os libertar da sua condição e miséria, e isso é que era importante, isso é que era irrenunciável.
Nela e na sua vida, e à semelhança e continuidade de Jesus, vemos as palavras do profeta Isaías, essas palavras que nos garantem que o servo esmagado pelo sofrimento, a partir do momento em que se entrega e oferece como resgate verá a luz e será saciado da sabedoria, encontrará a justificação para si e para os demais.
Peçamos ao Senhor que nos continue a dar o desejo de nos sentarmos no seu reino, que nos continue a dar forças para nos libertarmos das nossas possessões e o servirmos em radical entrega.

domingo, 11 de outubro de 2009

Homilia Domingo XXVIII do Tempo Comum

Este encontro do jovem rico com Jesus que acabámos de escutar é dos trechos mais tocantes do Evangelho de São Marcos. É um texto que por mais que o leiamos não deixa de nos surpreender, de nos interrogar, de nos colocar na pele daquele jovem que corre a lançar-se aos pés de Jesus. Por esta razão tem sido lido e é de facto um dos textos evangélicos mais vocacionais, um texto que nos interroga a todos, seja qual a seja a nossa condição e vocação, sobre o seguimento de Jesus.
Neste sentido, temos que ter presente que desde o primeiro momento do relato, da história, o autor do texto coloca o acento na pessoa de Jesus. Jesus está de partida e é nesse momento que o jovem vem, se lança aos pés de Jesus, e o interroga, nomeando-o desde o primeiro momento como bom e como mestre. Podemos ver nestes elementos a referência à partida de Jesus deste mundo e ao compromisso que cada um é chamado a viver face ao encontro e à descoberta daquele mestre que é bom.
Face ao tratamento recebido da parte do jovem, Jesus responde-lhe remetendo a bondade para Deus, porque só Deus é verdadeiramente bom. Contudo, ao fazê-lo, Jesus não está só a falar de Deus, do Pai, está também a remeter o jovem para o fundo mais profundo da sua busca. A interrogação do jovem denota uma busca de sentido para a vida, para o cumprimento dos mandamentos aos quais era fiel. Afinal de contas o que o jovem verdadeiramente busca é a Deus, o Deus que os mandamentos ainda não lhe tinham possibilitado conhecer. Os mandamentos e o seu cumprimento eram insuficientes.
A resposta que o jovem procura é dada por Jesus, com o olhar de ternura e amor com que o olha. É pena que a tradução do nosso Leccionário use a palavra simpatia para descrever a forma como Jesus olhou o jovem, porque o olhar de Jesus foi muito mais forte, foi de verdadeiro amor, paixão, podemos dizer de encantamento. É um olhar que não é de satisfação ou simpatia por ter diante dele um verdadeiro cumpridor dos mandamentos, mas por ter alguém que busca para além do cumprimento dos mandamentos, alguém que aspira a mais do que vive zelosamente.
E o desastre deste jovem é que não tenha cruzado o seu olhar com o olhar de Jesus, que se tenha deixado ficar apenas pelas palavras exigentes de Jesus de se desprender de tudo o que tinha e que o seguisse na pobreza e não tivesse visto o amor com Jesus o olhava e o esperava disponível e pobre.
Com a retirada entristecida do jovem, o autor do Evangelho mostra-nos imediatamente que Jesus não falava apenas para aquele jovem, que as suas palavras se dirigiam também aos discípulos que assistiam a toda a cena. Uma vez mais Jesus confronta aqueles que o seguem com as suas aspirações e desejos de poder e glória. Uma vez mais Jesus coloca em questão a fidelidade que lhe devotavam, uma fidelidade que não pode estar dependente de compensações, de retribuições, fundada em cumprimentos escrupulosos, mas que tem que estar fundada e radicada no amor, naquele olhar de encantamento que os fez um dia abandonar tudo e segui-lo.
A resposta de Jesus ao jovem rico mostra-lhe, bem como a nós e aos seus discípulos, que no seguimento de Jesus, na resposta ao chamamento de Deus, não conta muito a quantidade, não há necessidade de mais mandamentos ou formas escrupulosas de cumprimento, bem pelo contrário há uma necessidade de simplicidade, de um abandono confiante na palavra de Deus, há uma necessidade de pobreza natural para que o seguimento seja efectivo e verdadeiro.
À luz das palavras de Jesus a pobreza não conta por si mesma, não vale por si mesma, ela é apenas válida e deve apenas ser vivida na medida em que Jesus Cristo é o centro da vida e portanto há necessidade de nos esvaziarmos de nós, das nossas coisas, das nossas riquezas para que Ele possa estar e habitar connosco.
Um dominicano do século XIV, o Mestre Eckhart, diz que a possibilidade da habitação de Deus em nós, do nosso conhecimento de Deus, é equivalente à nossa pobreza, neste sentido de capacidade de nos desprendermos de tudo, desde o material às concepções mentais do próprio Deus. Só na medida em que nos esvaziarmos de tudo, na medida em que formos verdadeiramente pobres, Deus se poderá dar a conhecer.
A pobreza evangélica tem assim uma dimensão positiva, libertadora, eleva e disponibiliza para o acolhimento das realidades escondidas do Reino de Deus. Se não for assim, se tiver uma dimensão negativa e restritiva, a pobreza que vivamos não será evangélica nem nos possibilitará o encontro com Deus.
Neste sentido, escolher cristãmente a pobreza é escolher e optar por meios que nos possibilitem uma comunhão mais íntima com Deus, é participar dessa sabedoria de que fala a primeira leitura.
Neste domingo em que o Senhor nos convida a segui-lo livres de tudo, pobres, saibamos libertar-nos do que nos impede de cruzarmos o nosso olhar com o seu olhar de amor.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O Rosário e os Dominicanos - I

É comum quando se fala do Rosário da Virgem Santa Maria relacioná-lo com os dominicanos e mais precisamente com São Domingos. A tradição diz-nos que foi São Domingos que fundou o Rosário.
Para uma verdadeira compreensão e um debate sério sobre esta matéria, que já foi alvo de grandes discussões, temos que temos presente que não se pode fazer tal debate se não fizermos a separação do que é tradição, com o que ela comporta de lenda, do que é a história que se documenta em Bulas papais, diplomas e outros textos oficiais da Igreja e mesmo da própria Ordem.
No que diz respeito à tradição, e salientando uma vez mais que não se deve confundir com a lenda que é uma coisa diferente, é inegável que no século XV existia já uma tradição que atribuía as origens do Rosário a São Domingos. É uma verdade assumida por todos, desde o simples povo analfabeto aos intelectuais, e ninguém colocava essa tradição em causa. A lenda tinha-se de tal modo misturado com a tradição no decorrer dos séculos que era impossível fazer a destrinça de uma e de outra.
Para nós a realidade é bem diferente, pois também os métodos de investigação histórica são outros e permitem por isso outras abordagens e outras buscas da verdade. Neste sentido, temos que ter presente, antes de mais, que o Rosário como todas as devoções se elaborou lentamente, sofreu um processo evolutivo que permitiu o aparecimento daquilo que hoje conhecemos e identificamos como Rosário. Não podemos exigir a formação integral do Rosário desde o primeiro momento em que se fala dele, assim como não podemos pensar que São Domingos o recebeu da Virgem Maria e o rezava da mesma forma como hoje o rezamos. Temos assim que admitir que há uma certa origem obscura, uma evolução hesitante e criativa até ao fruto madura e consistente que no século XV já estava disseminado por toda a Europa.
No que diz respeito à relação do Rosário com São Domingos temos que assumir que os seus contemporâneos e testemunhas do seu processo de canonização, bem como os primeiros escritores da Ordem, não mencionam o Rosário como uma das devoções da Ordem. Pelo contrário o seu grande interesse é mostrar e transmitir as origens da Ordem e da sua consolidação como estrutura da Igreja. E ainda que falem da oração de Domingos e dos primeiros irmãos fazem-no sempre no sentido da disciplina e da austeridade que existia então.
O Rosário quando aparece referido pela tradição aparece sempre referido não no âmbito da oração, mas sim da pregação, dizendo-nos que São Domingos se servia do Rosário como método para chegar com o seu ensinamento aos cátaros e albigenses. A oração e o ensino partilhavam o mesmo objecto, a mesma forma.
Perante estes dados, temos que ter presente que o Rosário desde o princípio era uma oração individual, não oficial, e presente em quase todos os meios monásticos e religiosos. As regras monásticas determinavam as grandes linhas da Liturgia comunitária mas deixavam para a devoção particular e individual alguns costumes e tradições que depois acabaram por enquadrar a observância regular. A cada individuo era deixada a liberdade para buscar e seguir a forma mais pessoal de desenvolver a sua vida espiritual.
Com os dominicanos também assim acontecia, pelo que podemos ver nas Constituições primitivas, que eram breves e sucintas, redigidas segundo o modelo primitivo da Regra de Santo Agostinho, que a Liturgia comum ocupava um grande espaço e estava bem determinada, mas as devoções particulares não têm qualquer lugar. O Rosário era assim uma devoção particular e individual que o tempo e a história assimilaram até o encontrarmos já plena e completamente definido e assumido no século XV. Podemos dizer que a Ordem de São Domingos foi o seu berço e nela se desenvolveu até à plenitude.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Festa de Nossa Senhora do Rosário

A Igreja, e de modo particular a Ordem de São Domingos, celebra hoje a festa de Nossa Senhora do Rosário. Festa instituída em 1572 por uma Bula do Papa Pio V e inicialmente intitulada de Nossa Senhora da Vitória devido à derrota da armada dos turcos pela Liga Católica neste mesmo dia 7 de Outubro em Lepanto no ano de 1571.
É da forma rica e cheia de pormenores bélicos que em 1712 Frei Manuel de Lima, no “Agiológio Dominicano”, descreve o sucedido:
“É já tempo de contarmos o terceiro triunfo, que deu motivo à solenidade do presente dia, e foi a vitória naval no mar de Lepanto, conseguida com a Liga, que fez e afervorou o nosso Pio V.
Tinha o grande imperador Selim tomado tiranamente aos venezianos o reino de Chipre, que havia cem anos possuíam, e quebrado a paz jurada, mandando sitiar Nicósia, por terra e mar, com um terrível exército, roubando as ilhas vizinhas que a Republica tem no arquipélago, com a escravidão de mais de sete mil cristãos. Foi isto no ano de 1570, e no de 71 pôs a mais poderosa armada, que nunca viram os mares, porque, conforme alguns, constava de trezentas galés, que com cento e vinte mil soldados, foram sitiar Famagusta.
O nosso Santo Pontífice, como Pai afectuoso do cristianismo, tratou de pôr remédio a tantos danos e reprimir o orgulho do turco, ligando-se com os Príncipes cristãos contra este comum inimigo. Achou mais dispostos entre todos, o Católico rei Filipe II e a Republica de Veneza. Ajustaram que as galés seriam duzentas e cinquenta navios, com cinquenta mil infantes e quatro mil e quinhentos cavalos ligeiros, dos quais metade correria por conta do monarca das Espanhas e a outra metade se dividiria em três partes, duas por conta dos venezianos, e uma à custa do Papa; e que da presa que se fizesse haveria divisão entre todos da mesma forma.
Nomearam como General da Liga o valoroso D. João de Áustria, filho natural de Carlos V e irmão de Filipe II. General da Igreja, Marco António Colonna; e da Republica de Veneza Barbarigo.
Acharam-se prestes no porto de Messina, no primeiro de Setembro duzentas e oito galés, seis galeotas, vinte navios e mais de sessenta barcos. Saíram do porto a 16 do dito mês e foram dar fundo ao golfo, que chamavam de São João, a esperar notícias da armada inimiga. Constava ela de trezentas galés, e entre elas mais de quarenta reais; e com tudo isto tiveram ânimo os nossos para os investir.
Chamou o Príncipe D. João a conselho os seus capitães e depois de vários pareceres, ajustaram prosseguir a empresa. Saíram com vento contrário duzentas e quatro galés, seis galeotas e quarenta e cinco barcos, e entrando dentro do canal, no domingo de manhã, sete de Outubro, com duas horas de sol, começaram a descobrir a armada inimiga, que logo reconheceram por maior do que publicava a fama. Procuraram sair do estreito e pôr em ordem de peleja sem perder tempo.
Dividiram-se em esquadras e João André Dória tinha a da mão direita, composta de cinquenta e três galés, com galhardetes e bandeiras verdes. Governava o corpo da batalha o Sereníssimo D. João de Áustria e era a sua esquadra composta de sessenta e seus galés, com galhardetes e bandeira de cor de fogo. A esquadra da mão esquerda constava de cinquenta e cinco galés, com galhardetes e bandeiras cor de ouro, e era governada pelo General veneziano Barbarigo. O Marquês de Santa Cruz ia na retaguarda, com trinta galés, de bandeiras e galhardetes brancos, uma milha atrás do corpo da armada. D. João de Cardona com dez galés fazia o ofício de descobridor, com ordem de se incorporar depois à parte mais fraca.
Disposto tudo nesta forma, saiu o Príncipe em um barco animando os soldados, que já se tinham confessado e comungado; e lhes ordenou que rezassem em alta voz o Rosário implorando o patrocínio da Senhora. Repartiram os Agnus Dei bentos pelo Santo Pontífice Pio V para lançarem ao pescoço, e os Comissários publicaram a Indulgência Plenária concedida aos que pelejassem. (….)
Estando as armadas distantes um tiro de canhão, mandou o Príncipe arvorar o estandarte da Liga, bento pelo Santo Pontífice Pio V, no qual estava pintada uma devota imagem de Cristo crucificado. Levantaram as mais galés suas bandeiras, em que se viam imagens da Rainha dos Anjos, e ao aparecerem estas sagradas insígnias, todos os soldados e oficiais se prostraram de joelhos. O Sereníssimo General disse então em voz alta, respondendo os mais com os corações: Peço à Majestade de Deus, que tendo compaixão do seu povo, e não se lembrando das culpas, lhe dê por sua misericórdia vitória de seus inimigos. Dada a bênção pontifícia aos soldados e invocando todos os Santíssimos nomes de Jesus e Maria fizeram o sinal costumado para o conflito. (….)
Foi esta vitória milagrosa concedida ao cristianismo por intercessão da Imperatriz do Céu, e por meio do seu Santíssimo Rosário; pois sendo invocada na armada pelos soldados, e em todo o mundo pelos cristãos, que naquela hora em ponto faziam as costumadas procissões do primeiro domingo do mês, a ela e a esta devoção se atribuiu todo o bom sucesso, felicidade da Igreja e seus católicos.
Assim foi revelado ao Santo Pontífice Pio V, a quem o Senhor manifestou tudo em Roma, na mesma hora em que sucedeu no Mar de Lepanto, como fica dito na sua vida no 1 de Maio. Por esta causa ordenou se solenizasse para sempre este dia, com o título de Santa Maria da Vitória, que depois confirmou Gregório XIII, seu sucessor, atribuindo o triunfo ao Santíssimo Rosário. Gregório XIII decretou se solenizasse no primeiro domingo deste mês”.[1]
[1] LIMA, Frei Manuel de – Agiológio Dominico, TomoQuarto, Lisboa Oficina de António Pedrozo Galram, 1712, 54-55.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O silêncio a viver

A Igreja celebra hoje a memória de São Bruno o fundador dos Cartuxos, essa forma de vida religiosa tão austera e tão estranha às nossas formas de vida tão mundanas e ruidosas.
O filme de Philip Gröning “O Grande Silêncio” trouxe ao nosso mundo as imagens dessa vida estranha e silenciosa, saciando essa curiosidade que todos nós desenvolvemos por aquilo que nos escapa, que não faz parte do nosso mundo quotidiano.
Contudo, para nós religiosos, o silêncio, o da grande Cartuxa, o dos mosteiros ou conventos, não devia ser algo estranho, uma extravagância, mas uma realidade na qual nos movemos ou devíamos mover, uma realidade constante da nossa vida.
Todos os fundadores de Ordens religiosas prescreveram o silêncio como alma e guarda da observância regular, porque se o religioso observa bem o silêncio, se vive na sua cela, não a abandonando senão para o Oficio Divino ou para os seus trabalhos comunitários ou de apostolado, se no silêncio se ocupa na oração e no estudo, acaba por se tornar num homem de oração que recebe de Deus todo o tipo de graças e consolações espirituais.
A insistência que os fundadores e grandes mestres espirituais colocam no silêncio radica nessa expressão do Livro dos Provérbios “o homem que não pode guardar o silêncio é semelhante a uma cidade aberta, continuamente exposta às incursões dos seus inimigos”. A falta de silêncio permite todos os desmandos e desatinos, todos os desvarios.
Para os Frades Pregadores o silêncio é ainda uma realidade mais premente e exigente, pois o seu fundador São Domingos guardava perfeitamente o silêncio, não falando senão com Deus ou de Deus. E as Constituições desde o primeiro momento não deixam de apelar à guarda desse silêncio como ambiente natural às casas de pregação. Convém aqui recordar que as primitivas Constituições não prescreviam o recreio, ou convívio após as refeições, bem pelo contrário recomendavam que após cada refeição os irmãos se retirassem para o estudo ou para a oração. O silêncio devia imperar e marcar todas as acções pessoais e comunitárias.
Numa sociedade da comunicação e do ruído de fundo como é a nossa, ruído esse que ataca mesmo os conventos, aqueles que deviam ser espaços por excelência de silêncio, é cada vez mais difícil conservar o silêncio, fazermos silêncio. Quando vimos do mundo exterior e procuramos integrar-nos numa vida conventual esse desafio é ainda maior e a grande tentação é distrairmo-nos, é fugirmos a esse silêncio que inevitavelmente e quase por graça acaba por existir.
Nestes momentos, e como diz São Basílio, a observância mais rigorosa é o melhor caminho para não nos afastarmos, para aprendermos a guardar e a fazer silêncio. Não há receitas mágicas, há apenas tentativas e lutas, um combate individual que não pode deixar de se exercitar. Procuremos fazê-lo, eu e tu, porque necessitamos ambos dele.
A fotografia é do claustro da Cartuxa de Évora. Espero que nos ajude a partilhar nem que seja por momentos o silêncio prenhe de graça que ali se respira.

domingo, 4 de outubro de 2009

Homilia Domingo XXVII do Tempo Comum

O Evangelho de São Marcos deste domingo apresenta-nos uma vez mais um momento de conflito de Jesus com os fariseus, esse grupo ideológico religioso do qual Jesus até era bastante próximo.
Desta feita a questão colocada, ou a resposta pretendida, era algo que qualquer judeu podia dar, pois, e como eles próprios afirmam estava estabelecida na lei de Moisés toda a regulamentação jurídica para estas situações de adultério. Eles sabiam muito bem o que se devia fazer ou deixar de fazer.
A questão colocada pelos fariseus tem no entanto outro objectivo, é uma vez mais uma armadilha para apanhar Jesus na coerência das suas afirmações. Se Jesus defende o repúdio estipulado pela lei, os fariseus podiam dizer que ele não ensinava nada de novo e por isso não havia motivo para aquelas gentes andarem atrás de Jesus e terem por ele tanta admiração. Pelo contrário, se Jesus se manifesta contra o repúdio manifestar-se-ia contra a lei e contra Moisés e portanto devia ser condenado, não devia ser seguido por ninguém pois era alguém que se colocava fora da normalidade da lei.
Esta polémica compreende-se se nós assumirmos e presumirmos que Jesus no seu ensinamento, que nas palavras que dirigia à multidão, antes de ser interrompido bruscamente pelos fariseus, falava do matrimónio, da dignidade que lhe é inerente e da igualdade em que se situam o homem e a mulher nessa realidade humana. As palavras que se seguem e que são a resposta de Jesus podem confirmar-nos de certa forma que de facto era esse o tema em questão, o tema do seu ensinamento, e que estava a extrapolar os esquemas assumidos pela lei de Moisés.
Colocado com esta questão perante uma situação de necessidade de uma resposta verdadeira e coerente, Jesus enfrenta os fariseus remetendo a fundamentação da sua doutrina e do que ensinava para o momento da criação. Era ali que estava a verdade do que ensinava e da natural relação entre o homem e a mulher. Não era a lei de Moisés que vinculava o homem à mulher, mas era a própria obra da criação, era a acção criadora de Deus.
No relato da criação apresentado pelo livro do Génesis é interessante nós notarmos que num primeiro momento o homem, depois de ter denominado todos os animais, procura uma auxiliar semelhante a ele. Estamos, se assim o podemos dizer, num primeiro estágio evolutivo, em que o homem age e procura pela necessidade que tem de uma auxiliar. Neste contexto a mulher é ainda algo inferior, como um objecto que se quer e do qual se pode tomar posse.
Depois do sono profundo e da criação da mulher da sua própria carne, o homem já não reconhece a mulher como um objecto, como uma propriedade, mas verdadeiramente como parte de si próprio e portanto reconhecível e denominável como mulher. A mulher é igual a ele, mas é igual na diferença que os distingue e os torna complementares. Por esta razão o homem e a mulher deixarão os seus pais, os seus núcleos familiares e tribais, para se unirem um ao outro e formarem uma só carne, uma unidade que nasce da diferença.
Para nós e na nossa sociedade esta dinâmica tornou-se complexa e bastante difícil pois a união de um homem e uma mulher passou a conceber-se de uma forma puramente contratual, uma união fundada sobre o livre arbítrio de cada uma das partes e o voluntarismo, que só por si não é suficiente para garantir o sucesso da mesma. Para além do individualismo que marca a nossa cultura e sociedade e que tem inevitavelmente um peso condicionante na forma como as pessoas se unem.
Perante este panorama temos que ter presentes as verdades antropológica e teológica que marcam o relato bíblico da criação e as palavras de Jesus e resgatá-las para a nossa actualidade e vivência quotidiana das relações e muito particularmente da relação homem mulher.
Antes de mais temos que ter presente e não esquecer a dimensão sexual, ou de género como agora se quer dizer, que marca cada homem e mulher. É uma dimensão inalienável do nosso ser e forma de estar com os outros, é de facto um dom que inevitavelmente conduz à comunhão, e por isso não pode ser deixado de cultivar e cuidar. Se o não fizermos estaremos a encerrar-nos num casulo doentio de narcisismo que jamais nos possibilitará a comunicação verdadeira com o outro. Na união matrimonial esta dimensão viabiliza o dom e o conhecimento total, bem como nos celibatários pois também estes não deixam de ser sexuados e com necessidade de se comunicarem com o outro e de se entregarem para se realizarem.
Depois temos que ter presente o outro como criatura de Deus, como um dom à vida pessoal e por tal digno de todo o respeito e consideração, de toda a liberdade e verdade. Sem liberdade e sem verdade não há verdadeira relação, nem verdadeiro amor, pois como disse Bento XVI o amor desprovido de verdade é puro sentimentalismo. O outro e uma relação que se quer que exista não podem abdicar dessa verdade e liberdade. Verdade de cada um dos componentes, liberdade para estar, verdade e liberdade da própria dinâmica da relação.
Por fim não podemos deixar de referir, e tendo presente o acolhimento que Jesus faz das criancinhas e como as apresenta como modelo, que na relação é importante este reconhecimento da dependência e interdependência de cada um de nós, que é importante a dimensão da humildade no acolhimento do outro. Nenhum de nós está sozinho no mundo e portanto necessita tanto de ser acolhido como de acolher o outro. Jesus convida-nos a fazê-lo com a humildade e o sentido de dependência que é natural às crianças, porque desta forma estaremos também a manifestar e a construir o reino de Deus. O reino de Deus é um acolhimento humilde do Outro nos outros.
Peçamos assim ao Senhor que nos conceda a humildade de acolher os homens e as mulheres na liberdade e autonomia, nas suas diferenças, e que através das nossas mutuas diferenças saibamos construir a complementaridade que leva à união e à aliança que manifesta a própria natureza e presença de Deus entre nós.