sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Solilóquio de Luís da Costa Correia ao Santíssimo Sacramento


Solilóquio ao Santíssimo Sacramento incluindo o Mistério da Coluna de Luís da Costa Correia

Cidade de Hóstia Sagrada / Da Divindade aposento
Cadeia donde Amor quis / Prender o maior estremo.
Esfera de Sol divino / Das almas cândido objecto
Venda dos humanos olhos / Confusão do entendimento.

Dos amantes doce prenda / Puro afecto dos afectos
Correspondência dos firmes, / Dos constantes justo prémio.
Dos puros casto cuidado /Dos diligentes acerto,
Dos cuidadosos alívio, / E dos rendidos alento.

Desse Sol que em vós se encerra / Aurora vos considero
Porque diante de seus raios / Vossa claridade vejo.
A esse amante que encobris / Vosso Circulo sem preço
Lhe está dando uma memória / Por prenda de seus empenhos.

Sois flor da árvore da vida / Que nos dá sustento eterno.
E com seres flor trazeis / O gostoso fruto dentro.
Vossa cristalina forma / É dos céus um claro espelho
Porque a fé nos certifica / Que Deus em vós se está vendo.

Poder sobre humano tendes / Que nesse lugar pequeno
Cingis o que se não mede / Compreendeis o que é imenso.
Pois esse divino amante /Que em vós se encobre supremo
Servido dos acidentes / Por sitial de respeito.

Por me livrar amoroso / Esteve já descoberto
Procurando meus alívios / À custa de seus tormentos.
Em uma dura coluna / O prenderam meus excessos
Que por eu andar muito solto / Ele quis estar tão preso.

Tomou de açoites a pena / Que mereceram meus erros
E para que eu os lavasse / Saiu o Sangue correndo.
Dos arroios que manaram / Se formou um mar vermelho
Que a pé enxuto passei / Livre de meu cativeiro.

Nesse vivo Pão recorda / Este amoroso tormento
Que sempre vivem relíquias / Aonde Amor interveio.
Com as divinas palavras / Se ata nesse Sacramento
Para dar o Corpo, e Sangue / De seu amor justo prémio.

Aí o injusto, o indigno / O cruel, e o mais perverso
Com sacrílega ousadia / Lhe está perdendo o respeito.
Aí para regalar-nos / Pelicano verdadeiro
Em seu sangue precioso / A seus filhos dá sustento.

Meu Deus já que vosso amor / É tão liberal, tão terno
Que por não poder dar mais / Vos chega a dar a vós mesmo.
Já que vos lembrais Senhor / Nesse manjar encoberto
Dos tormentos que passastes / E deles fazeis mistério.

Como Senhor, amparai-me, / Como amante, dai-me o peito
Como Rei, dai-me favores, / E como Pai, o remédio.
Dai-me enfim vossa graça / Porque se ma dais de certo
Que nem vós deixeis de amar-me, / Nem eu deixe de querer-vos.[1]


[1] FALCONI, Francisco – Rosário do Santíssimo Sacramento, Lisboa, Domingos Carneiro, 1662.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Pedir e receber...

Pedi e dar-se-vos-á” são as palavras com que se inicia o Evangelho desta quinta-feira da primeira semana da Quaresma. São palavras do Evangelho de São Mateus e estão intrinsecamente relacionadas com a oração, oração que pouco antes Jesus tinha ensinado aos seus discípulos. Se pedirmos coisas boas Deus conceder-nos-á essas coisas boas que pedimos, porque Deus quer verdadeiramente que sejamos felizes.
Paralelamente, se olharmos para as nossas relações humanas, sobre as quais na sua beleza e verdade, na sua grandeza, se funda a relação com Deus, encontramos também esta mesma realidade. Quando pedimos alguma coisa a alguém, e se é para o nosso bem, esse alguém concede-nos o que lhe pedimos. Portanto o que pedimos acaba por nos ser dado, ainda que às vezes esta lógica não seja assim tão clara nem tão linear.
Mas se isso acontece é porque há algo nas nossas relações que não está bem, há uma falha de confiança e por isso não ousamos pedir nem ousamos oferecer. Porque em qualquer de um dos papeis, oferecer ou pedir, é extremamente importante a nossa humildade, a nossa capacidade de nos assumirmos necessitados, carentes, e por outro lado com capacidade de ajudar e socorrer, mas sempre desde que não seja da realidade da violação, desde que não seja por superioridade, por afirmação de posse e autoridade.
Pede quem é humilde, recebe quem é humilde, mas também só quem é humilde pode dar. Estamos no mesmo patamar, no mesmo nível de reconhecimento da necessidade, minha, do outro e nossa. Todos somos ser frágeis e necessitados.
Na nossa relação com Deus não podemos passar ao lado deste esquema porque só na medida em que nos reconhecemos humildes necessitados, fracos e carentes é que Deus pode vir em socorro das nossas necessidades, e das nossas necessidades expressas.
Este tempo da Quaresma abre-nos esta possibilidade de nos revelarmos e assumirmos frágeis e de humildemente expressarmos as nossas necessidades a Deus, como um filho amado as expressa ao Pai que ama.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Também outros lêem...

Estou de regresso a Lisboa depois de ter estado em Coimbra, no Colégio de São José, das Irmãs Dominicanas de Santa Catarina de Sena, para conversar um pouco com o grupo dos Amigos da Madre Teresa de Saldanha.
Foi a resposta a um convite e a um desejo que a Irmã Humberto me tinha apresentado o ano passado, depois do retiro anual do Ramalhão. Até ontem não tínhamos conseguido coincidir nas datas e nas agendas. Finalmente conseguimos e foi com muito prazer que estive com o grupo, ontem à noite, a conversar um pouco sobre São Domingos, a Ordem dos Pregadores, algumas realidades da sua história e de alguns desafios que se nos colocam face àquilo que São Domingos viveu e quis que os seus filhos vivessem.
Cabe-me assim, e como ontem dizia ao grupo, agradecer a oportunidade de ter estado com eles, e de uma vez mais poder exercer a minha missão de pregador. Sobretudo numa noite de temporal e tão pouco agradável para saídas nocturnas como foi a de ontem.
Quero também desde aqui agradecer o acolhimento afectuoso das irmãs que compõem a comunidade. Depois de um dia duro de trabalho no colégio e do cansaço inerente a esse trabalho, a alegria estava-lhes espelhada no rosto, a alegria como a de Domingos.
E ao fazer este agradecimento quero reparar uma falta que cometi quando no domingo passado respondi a algumas perguntas que me tinham sido colocadas. Nesse texto em que agradecia aos frequentadores e amigos do blogue, no que diz respeito às Irmãs de Santa Catarina limitei o meu agradecimento às irmãs do Ramalhão, esquecendo assim outras irmãs e comunidades. A irmã Graça Maria, prioresa de Coimbra, recordou-me assim que cheguei à Atenas lusitana que também ali seguem as minhas aventuras no mundo da comunicação cibernética.
De modo muito particular quero desculpar-me perante a irmã Humberto, que me esqueci de mencionar e que, ainda que não frequente os ciberespaços, segue fielmente o blogue. A prova disso é os dossiers com todos os textos e imagens que tem arquivado e que os amigos lhe vão retirando e imprimindo, para que possa ter acesso. Se algum dia perder o material publicado irei ter consigo irmã Humberto para o encontrar.
A todos, os que sei e os que não sei, certamente a alguns que deveria ter mencionado e não mencionei por distracção, desde aqui o meu agradecimento e expressão de alegria por saber que o trabalho não é em vão.
Que o Senhor continue a ajudar-nos a servir a sua Palavra de Salvação.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Resposta a alguns comentários e pedidos

Um fim de tarde de domingo e o tempo chuvoso que se faz sentir lá fora permitem-me o tempo e a tranquilidade para responder a alguns dos comentários mais recentes aos textos publicados no blogue.

Contudo, e antes de mais, quero agradecer aos amigos e assíduos frequentadores que deixam a sua palavra fraterna e os seus ecos, como os fiéis GVA e MJS; não são apenas um incentivo a continuar o trabalho mas também a confirmação de que este meio de comunicação nos permite exercer o ministério da pregação de uma forma como nunca imaginámos; chegamos onde de outra forma nunca nos seria fácil chegar e deixamos algo que sabemos que permanece.

Neste sentido e respondendo ao Rodrigo Ruiz, que me escreveu do Brasil, queria dizer-lhe que no Google pode descarregar uma Vida de São Domingos do Padre Lacordaire em português. Há também uma edição impressa em português, há dois ou três anos, da obra de Lacordaire, mas como neste exacto momento não a tenha comigo não posso fornecer as referências bibliográficas.
Quanto ao pedido sobre liturgia dominicana, alguma publicação no blogue, quero dizer-lhe que na medida da minha disponibilidade tentarei colocar alguma coisa. É um tema que me exigirá leituras e investigação e a agenda sobrecarregada não permite muito. Ainda assim, e como sei que é do seu interesse e certamente também de outras pessoas tentarei colocar alguma coisa logo que possível.

Queria também responder às observações de MJS, que não entendeu o objectivo da publicação da Acta do Conselho de 1745 de Santarém, e gostava de comentar o texto de “Dominicanos…perspectivas”. Ainda que, como diz, não saiba muito sobre os dominicanos gostaria da sua opinião e comentários, por vezes quem está de fora consegue ver melhor do que quem está dentro, e aquele texto era uma reflexão pessoal, ideias que circulam na nossa cabeça e coração e por vezes é salutar partilhar. Aguardo as suas notas e comentários. Da partilha de ideias nascem por vezes soluções muito interessantes. Quanto ao texto da Acta de 1745 o objectivo foi apenas o da publicação, era um texto que tinha no momento no portátil. Acredito que o “post scriptum” gere algum sem sentido, mas foi meu objectivo realçar a operacionalidade que algumas vezes nos falta hoje em dia.

Ao Carlos Romero que me escreveu de Sevilha, sobre o Rosário do Santíssimo Sacramento, gostava de dizer que não sou nenhum especialista do Rosário e as publicações que tenho vindo a apresentar inserem-se na apresentação de um livro que segundo as informações que possuo não está referenciado, pelo menos não aparece nas bases bibliográficas da Biblioteca Nacional. Está já bastante comido pelo caruncho e assim que o tiver digitalizado colocarei algumas imagens dele. Creio que é uma raridade e por isso a divulgo aqui, para além de ser uma obra de um frade dominicano. Quanto às Confrarias do Rosário, sobre as quais me pede informações, não sei muito mas tentarei ver se existe algum trabalho de investigação sobre elas que lhe possa fornecer os dados que procura.

Para todos os demais que não deixam comentários, mas que sei que visitam e lêem como o Domingos e a Manuela, as irmãs do Ramalhão, alguns confrades, e tantos outros que desconheço, o meu muito obrigado e a promessa de continuar a colocar o que Deus for permitindo entre tantos outros afazeres e responsabilidades.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Homilia Domingo I da Quaresma

Depois do baptismo no rio Jordão e da manifestação celeste que ele era o filho muito amado, Jesus é conduzido ao deserto pelo Espírito e aí vive quarenta dias. É uma nova experiência na vida de Jesus, uma experiência que o vai confrontar com a sua liberdade e a sua opção de fidelidade à vontade do Pai.
No deserto e depois de quarenta dias de jejum, como nos relata o evangelista São Lucas, quando experimenta já os limites do sustentável humanamente, Jesus é tentado por três vezes pelo diabo. É mais um sinal, uma manifestação da sua encarnação e da humanidade que assumiu para a resgatar da sua condição pecadora.
Neste sentido, no âmbito do mistério da encarnação, ainda que as tentações sejam muito pessoais, sejam as tentações de Jesus, elas são afinal as tentações de todos os homens, são a mesma tentação que seduziu o primeiro homem e a primeira mulher, são as tentações da humanidade.
A primeira tentação prende-se com a instrumentalização das realidades, com a subjugação das coisas e objectos, realidades e pessoas aos nossos interesses e satisfações. E neste caso muito particular estamos perante a grande tentação da subjugação de Deus, da utilização de Deus para a nossa satisfação temporal e histórica, pois queremos um Deus que esteja ao nosso serviço e ao serviço das nossas necessidades.
No caso da tentação de Jesus o pedido é que as pedras se transformem em pão, mas no nosso caso o pedido pode ser que as nossas realidades mais quotidianas de injustiça e violência se transformem sem que tenhamos que mexer um dedo, sem que nos impliquemos na sua mudança, sem que entreguemos o nosso sangue e o nosso suor para que algo seja diferente.
Estamos perante uma concepção mágica de Deus, uma concepção automática e satisfatória e por isso Jesus responde ao diabo que não só de pão vive o homem. O homem para ser homem, para se realizar na sua verdade tem que deixar esse desejo de possuir, de subjugar, e aceitar pelo contrário ser possuído por Deus. O homem para ser homem tem que querer mais que o mágico, tem que querer a relação e o esforço que ela implica.
A resposta de Jesus acarreta consigo ainda a responsabilidade e a liberdade de aceitar a vontade de Deus, porque como dirá num outro momento o seu alimento é fazer a vontade do Pai. A resposta à nossa tentação de subjugação e instrumentalização deveria passar também por esse querer ser fiel à vontade do Pai, por desejarmos alimentar-nos da vontade do Pai do céu.
A segunda tentação que é feita a Jesus tem a marca inevitável do possuir, e do possuir a todo o custo, mesmo que para isso nos tenhamos que prostrar diante do que quer que seja. Estamos perante uma idolatria do material, de todo o necessário e do acessório e perante isto Jesus não poderia deixar de responder que só a Deus é devido a verdadeira prostração, a adoração. Só Deus é digno de nos prostrarmos e nos sacrificarmos para o possuir, para o querermos ter todo, ainda que nunca o tenhamos ou experimentemos na totalidade.
Esta tentação de Jesus, a proposta que é feita pelo diabo, enferma de uma imagem extremamente sádica, comercial, da realidade divina, porque o Deus que é apresentado é um Deus que só se compadece e retribui em função de uma entrega, de uma escravatura. Ora, Jesus sabia que o seu Pai e o nosso Deus não é assim, bem pelo contrário é um Deus cujo dom de liberalidade é extremamente grande. Deus oferece-se-nos e oferece-nos o seu Filho muito amado e não quer a nossa subjugação irracional mas o nosso amor humilde e verdadeiro, o nosso amor filial.
A terceira tentação de Jesus é a tentação do que podemos chamar a prova, a tentação do racionalismo em que se exigem provas e testemunhas para que se possa acreditar. É a tentação da menorização de Deus, do esquadrinhamento de Deus, um Deus que é credível na medida em que responde de forma satisfatória às nossas exigências de resposta e comprovação. Podemos dizer que estamos perante uma concepção pavloviana de Deus, facto que só poderia provocar a resposta de Jesus de que não tentaria o seu Deus, que não podemos colocar o nosso Deus à prova. O nosso Deus é irreconhecível e inqualificável, insubmisso.
Como na tentação de Jesus também nós somos muitas vezes tentados por esta ideia, por esta sedução diabólica de pedir provas da existência e do seu amor ao Deus em que acreditamos. Ao fazê-lo estamos contudo a esquecer-nos que a fé em Deus é uma realidade sem provas e sem exigência de provas, acreditamos por amor, por algo que em algum momento despertou em nós essa confiança de que há um Deus e que nos ama.
São estas as tentações de Jesus e as nossas tentações, as diversas formas distorcidas como concebemos Deus e concebemos a nossa relação com ele. São as tentações que desde sempre tentam dominar a humanidade, mas tal como Jesus também nós podemos vencê-las e sair vitoriosos. Para isso basta que como Jesus aceitemos na nossa liberdade viver a vontade de Deus Pai e reconheçamos que o nosso Deus está bem mais perto de nós do que é imaginável, está na nossa boca e no nosso coração e portanto apenas necessitamos invocar o seu nome para que Ele se faça presente e nos salve.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Solilóquio de D. José de Faria Manuel ao Santíssimo Sacramento

Solilóquio ao Santíssimo Sacramento, incluindo o Mistério da Oração do Horto de D. José de Faria Manuel

Senhor, quando nessa forma / Sacramentado vos vejo
Não sei em que forma, ou como / Fale de vossos extremos.
Porque são tão peregrinos / Nesse augusto Sacramento
Que embaraçado o discurso / Só toma pé no silêncio.

Aí Senhor fino amante / Vos entregais todo inteiro
Alma, ser, e divindade, / Corpo, Sangue, vida, alento.
E de qualquer à vontade / Tão facilmente sujeito
Que nem fugis dos agravos / Nem recusais os empenhos.

Tão hidrópico de penas / (Enfim sois amante eterno)
Que suposto que impassível / Nelas vos estais revendo.
Se este sois nesse retiro, / Se assim é, como confesso,
Como aquela noite infausta / Tivestes às penas medos?

Naquela, digo, em que o céu / Esteve sangue chovendo
Tanto que a corrente abriu / Na terra sulcos, e regos.
Não porque as nuvens o dessem / Em horroroso portento
Mas porque o Sol o suava / Pavoroso, ou estupendo.

Não esse sol material / Que eclipsado depois vemos
Mas vós meu Sol de justiça / Carregado dos meus erros.
Que como de minhas culpas / Éreis o resgate, e preço,
Chegada a hora da paga / Vos pôs a justiça o pleito.

Mas quem vos visse sair / Para este sucesso mesmo
Desde o Cenáculo ao Horto / Repetindo hinos, e versos.
Qual candidíssimo cisne, / Cantando da morte ao tempo
Tão sabedor da vossa hora, / Como amante desse excesso.

Ao monte das oliveiras / Que estavam todas tecendo
Capela a vosso amor / Para os triunfos mais certos.
E logo que ao Pai pedíeis / Com terníssimos afectos;
Cheia a alma de agonia, / E o coração de ânsias cheio.

Pai meu, Pai meu, se é possível / Revogar-se este decreto
Tão cruel, passe de mim / Este cálice de tormentos.
Mas se é contra a obediência / Este favor que vos peço
Não quero minha vontade, / Só vossa vontade quero.

Pedis e não alcançais? / É grande pena prevendo-o,
Pois sabeis, não há-de ter / Despacho o requerimento.
Um Anjo vem confortar-vos / Sendo vós dos Anjos prémio?
Não sei se lhe chame alívio / Pois vo-lo dá quem é menos.

Se isto não é buscar penas / Ou motivo ao sofrimento,
Sendo alívio o padecer, / Meu Senhor eu não o entendo!
Que é isto Senhor? Que é isto? / Não sei se vos desconheço!
Com finezas tão amantes / Há temores tão incertos?

Não sabe temer perigos / Esse amor que é verdadeiro
Pois sois verdadeiro amante / De quem são esses receios?
Ai ò humana enfermidade! / Mas ai ò favor supremo!
Que prevenindo este caso / Se antecipou nos remédios.

Pois Sacramentado aí / Torna o Amor por si mesmo
Deixando-se quando vivo / Da morte um vivo modelo.
Deu abonada fiança / Nesse Real Sacramento
Que daria pelos homens / A vida em tosco madeiro.

E que seria seu sangue / Herança de testamento,
Ainda que a vontade humana / Recusasse estes efeitos.
Dai-me pois Senhor vontade / Memória, e entendimento
Com que lembrando-me deles / Vos ame, como lhes devo.[1]

[1] FALCONI, Francisco – Rosário do Santíssimo Sacramento, Lisboa, Domingos Carneiro, 1662.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cinzas de Quarta-feira

Cinzas, pó fino e negro, restos das palmas de domingo de Ramos, que chegam até nós cada ano, cada quarta-feira em que iniciamos a Quaresma. Depois delas quarenta dias de caminhada de conversão até à Páscoa da ressurreição do Senhor.
Cinzas, o que resta do fogo que devorou os ramos já secos que acolheram e saudaram o Senhor Jesus na sua entrada triunfal em Jerusalém.
Cinzas do que foi alegria e festa, exaltação enlouquecida por uma esperança de revolta. Cinzas de um equívoco porque o aclamado não era um guerreiro mas manso cordeiro.
Cinzas, pó e poeira, levados no vento para longe, dispersos no vazio.
Cinzas, o pó que no final resta do culminar dos nossos corpos em cadáveres.
Cinzas, pó que os penitentes colocam sobre as suas cabeças como sinal de conversão.
Cinzas, pó que nos leva e nos traz memórias do que ardeu nas nossas vidas e no nosso coração.
Cinzas, pó que resta do nosso pouco amor, pó das nossas almas empedernidas na sua auto-satisfação, olvidadas da luz que brilhou para elas.
Cinzas, fina poeira que cobre o carvão ainda ardente, encarnado fogo, que teima apesar do peso do cinzento em manter a chama acesa, em aquecer essa mesma cinza fria.
Que venha o vento leste que despedaça as naus de Tarsis, que venha com toda a sua força e o seu ímpeto, que levante estas cinzas, que as leve para bem longe e as disperse pelos quatro cantos do mundo.
Que venha o vento e ateie a brasa que teima em manter-se viva, em manter-se vermelho encarnado, que o vento sopre e incendeie, e nesse fogo novo se devorem todas as escórias que há em nós.
Que venha o vente e ateie o fogo para purificar a nossa vida tal como a prata é purificada no crisol.
São quarenta dias, de caminhada, de possibilidade de o vento chegar e despertar o fogo.
Vem vento fogo e arde em nós!

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Acta de 1745 do Conselho Conventual de São Domingos de Santarém

Aos 31 dias do mês de Agosto, digo, aos vinte e nove dias do mês de Agosto de 1745, das duas para as três horas da tarde mandou o Reverendíssimo Padre Mestre Provincial Frei Manuel Coelho chamar à sua cela os Padres que pertenciam ao Concelho, e depois de juntos todos, estando também presente o Secretário da Província o Reverendo Padre Presentado Frei Nicolau da Assunção Becquer, propôs o Reverendíssimo Padre Mestre Provincial a todos, que na visita que acabava de tirar neste convento se tinham manifestado alguns defeitos graves com que o Padre Frei João do Espírito Santo actual Mestre de Noviços se havia na administração do seu ministério, ainda que nenhum deles tocava em coisa que ofendesse o seu bom procedimento; mas, que sendo omissões, e descuidos graves, com que se havia na educação dos Noviços, se via obrigado a depô-lo do dito cargo, e propunha para seu substituo (ser substituído) nele ao Padre Frei Pedro de Castilho, que actualmente estava exercendo o cargo de Mestre de Noviços no convento da Batalha, se os Padres do Concelho que se achavam presentes o julgassem com suficiente capacidade para exercitar tal emprego. E todos os Padres do Concelho uniformemente votaram que uma e outra coisa lhe parecia muito justa e conveniente: em fé do que fiz este termo. Dia, mês, e ano ut supra.
Frei João de Santo Alberto
Notário do Convento[1]

PS:
Desta Acta do Conselho do Convento de São Domingos de Santarém, realizado aquando da visita Canónica do Prior Provincial, percebe-se os problemas que havia relativamente ao Padre Mestre de noviços e a solução que foi tomada para os resolver. Ficamos também a conhecer alguns nomes de frades do século XVIII e os cargos que ocupavam.

[1] IAN-TT – Convento de São Domingos de Santarém, Livro dos Concelhos do Convento, fólios 50-51.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Homilia Domingo VI do Tempo Comum

A liturgia da Palavra através do Evangelho de São Lucas apresenta-nos neste domingo um dos textos mais impressionantes da história da humanidade, um texto que podemos dizer mudou a história, pois milhares de homens e mulheres tentaram viver de acordo com o enunciado nesse texto, enquanto que do lado oposto outros tantos tentaram evitar e impedir que esses enunciados fossem vividos. Estamos assim perante um texto verdadeiramente revolucionário e cheio de consequências.
O texto das Bem-Aventuranças apresentado por São Lucas, ao contrário do texto paralelo do Evangelho de São Mateus, é um texto limpo, depurado de todo o acessório, um texto simples para que possa ser rapidamente assimilado e compreendido. Na sua simplicidade é um texto radical, um texto que se assume como fonte e cume da vida cristã.
O texto de São Lucas, composto de quatro Bem-Aventuranças e quatro Lamentações, porque são lamentações o que encontramos e não condenações, contrapõe-se ao texto do Evangelho de São Mateus composto de oito Bem-Aventuranças e sem nenhuma lamentação. Esta diferença reflecte-se também na localização da proclamação das mesmas Bem-Aventuranças, porque se em Mateus, Jesus as profere no monte, Lucas coloca Jesus a proferi-las num vale, numa zona plana.
Numa leitura simbólica, metafórica, podemos ver este vale como um local de acessibilidade, de fácil acesso, ao contrário do monte que exige sempre um esforço físico para que se possa vencer. Neste sentido podemos ler a proclamação das Bem-Aventuranças de Lucas como um caminho que Jesus propõe aos homens, mas um caminho que não necessita de um esforço maior. A planura coloca as Bem-Aventuranças ao acesso de todos os que as quiserem viver.
As Bem-Aventuranças e a oposição com as Lamentações não podem no entanto ser lidas de uma forma literal, simplista, porque o que está em causa é mais profundo, é uma atitude fundamental que se reflecte em comportamentos e atitudes que depois podem ser bem-aventurança ou maldição lamentável.
A leitura do profeta Jeremias dá-nos a chave de interpretação do fundamento das Bem-Aventuranças porque através dele podemos perceber que a bênção recai sobre aquele que confia em Deus, enquanto que a maldição recai sobre aquele que confia apenas em si próprio, nas suas forças. É a confiança em Deus, na sua acção na nossa vida que nos ajuda a viver bem-aventurados, enquanto que a confiança em nós, a auto-suficiência, nos leva a viver a amargura das nossas limitações e frustrações, porque somos limitados e por isso não conseguimos nem realizamos tudo o que desejamos e nos propomos.
Temos que compreender também que as Bem-Aventuranças não são uma canonização ou exaltação da pobreza, ou uma diabolização e condenação da riqueza. Quando Jesus louva os pobres, os que choram, os que passam fome e são perseguidos não é porque isso é bom, é agradável ao olhos de Deus, mas é porque possibilita ao homem na experiência das suas limitações a entrega e a confiança em Deus, a manter uma esperança para além das suas forças e do seu poder finito. Quando Jesus lamenta os ricos, os que se fartam, os que riem e os que são elogiados, não é porque essas realidades ofendam a Deus ou sejam más, mas porque na sua natureza de satisfação e confiança pessoal não permitem, e até impedem, a abertura do homem ao outro, seja esse outro Deus ou os homens irmãos, impossibilitam uma esperança para além das nossas forças e poder.
Estas são realidades superficiais, tanto uma como outras, e Jesus interessa-se por algo mais profundo, algo mais essencial no homem e que é o que fundamenta a vida, a rocha base sobre a qual construímos a nossa vida, fazemos as nossas opções e até as nossas seguranças.
Neste sentido o texto das Bem-Aventuranças denúncia a mentira dos nossos tempos e do homem contemporâneo, homem que coloca toda a esperança em si mesmo, homem que se exalta a si próprio, homem que se instituí como norma e lei de si próprio. Perante esta realidade podemos perguntar qual o sentido desta vida, qual o seu objectivo. O homem contemporâneo vive para quê, quando a sua concepção de vida se recusa, ou nega, uma esperança para além desta vida e das nossas próprias limitações.
A verdade que Jesus nos transmite com estas Bem-Aventuranças é que a nossa autonomia não nos satisfaz, não nos realiza na nossa natureza em toda a sua totalidade, nem nas nossas potencialidades criativas, é necessário Deus, a fé em Deus e na sua capacidade de vir ao nosso encontro e nos satisfazer nas nossas mais intimas aspirações.
É por esta razão que São Paulo nos diz na Primeira Carta aos Coríntios que se não acreditamos na ressurreição, na ressurreição de Jesus Cristo, a nossa fé, e consequentemente a nossa vida, é vã, é uma vida inútil porque estará unicamente destinada à satisfação momentânea e ao fim poeirento e carcomido dos vermes. E viveremos nós apenas para isso? Triste fim o nosso se é só para isso que vivemos.
Acreditar na ressurreição é acreditar no amor de Deus, é inserirmo-nos nessa cadeia de amor e portanto é tornarmo-nos participes de uma realidade que vem desde toda a eternidade e caminha para a eternidade. E nessa participação, nessa cadeia, o fim não existe nem para nós nem para tudo o que fizermos ou vivermos, sejam as lágrimas ou os risos, seja a pobreza ou a riqueza, seja a fome ou a saciação. Tudo estará marcado pela eternidade do amor e nele permanecerá para a eternidade.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Patente de Admissão à Ordem de São Domingos de Manuel Marques e António Marques

Frei António de Santa Ana Osório, Mestre em Sagrada Teologia, Pregador Régio e Prior Provincial da Ordem de São Domingos
Pela presente damos licença ao Muito Reverendo Padre Presentado Prior e mais religiosos do nosso Convento de São Domingos de Benfica para receberem ao hábito da nossa Ordem em qualidade de Noviços do Coro, e por filhos do Convento de Amarante, aos dois irmãos Manuel Marques e António Marques, filhos legítimos de António Marques e sua mulher Ana Maria, naturais de Covelo, Comarca sobre Tâmega, Bispado do Porto; sendo recebidos por votos secretos, e com as mais condições de costume. Dada em São Domingos de Lisboa aos 13 de Julho de 1805; sob nosso sinal e selo desta Província.
Frei António de Santa Ana Osório
Prior Provincial

Reg f 26
Frei António José da Rocha
Mestre, Doutor e Secretário[1]

[1] ANTT- Convento de São Domingos de Benfica, Maço 5 (Antigo 117)

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Solilóquio de um devoto D.A.D.C. ao Santíssimo Sacramento

Solilóquio ao Santíssimo Sacramento, incluindo o Mistério do Nascimento.
De um devoto D.A.D.C.

Terno Deus, cujo amor / Sendo fogo tão ardente,
Quis fundar império novo / Sobre colunas de neve.
Ou para ocultar amante / Finezas com que amor cresce,
Ou para ficar comigo / Em custódia eternamente.

Em pão quisestes deixar-vos / Para que a vida tivesse
Sustento nessa iguaria / Alivio em ter-vos presente.
Como em nova profecia / Deste bem que me enriquece
Descestes do céu, à terra, / E em terra de pão nascestes.

Belém terra venturosa / Que o título só merece
De ser a casa do pão / Por nos dar o pão celeste.
Belém terra de Judá / Em quem se ceptro aparece
Do Rei de Israel, também / Do Sacramento as espécies.

As palhinhas do Presépio / Nos dão misteriosamente
Sinal que nascestes trigo / E Sacramento morrestes.
Por isso do pão da terra / Só tomastes acidentes
Que os acidentes de amor / Vos amortalharam neles.

Vivo estais nesta brancura / E morto ao que nos parece
Mas se vivo, amortalhado / E se morto, vivo sempre.
Tal vos viram os pastores / Nas palhas que amor acende
Vivendo Fénix em fogo / Morrendo porque eu vivesse.

Vivo se envolto em faxinhas / Prognóstico de acidentes
Que no Mistério da fé / São mortalhas, mas alegres.
Que disfarces tão estranhos / São estes que amor vos veste?
Que branco em anos crescidos, / E de encarnado nos verdes?

Creio, que para buscar-vos / O homem com maior sede
Vos disfarçastes, que amor / Segue, o que lhe foge sempre.
Assim na substância de homem / O ser divino escondestes,
Quando aquela terra Virgem / Sendo flor, fruto oferece.

Quando vós Sacramentado / Também como Omnipotente
O ser divino, e humano / Entre rebuços pusestes.
Por isso a Belém vieram / Todos para oferecer-se
Desde Palestina a Arábia, / Desde o rústico ao prudente.

Os Pastores vêm buscar / Cordeirinho, mas celeste,
Os Reis vieram a ver / Sol em mais belo Oriente.
Para créditos do amor / Que seus corações acende
Entre adorações humildes / Trouxeram ricos presentes.

Os pastores seus cordeiros / Ao Cordeirinho inocente,
Os Reis peitos abrasados / Entre aromas diferentes.
Tudo vos buscou Senhor, /E vós todos recebestes,
Que Rei amante, e menino / Faz tudo quanto lhe pedem.

Grande favor! Mas eu vejo / Que quando entre essas espécies
Do Pão vos depositais / Vos dais mais intimamente.
No Sacramento vós sois / Quem nos busca pretendente,
Quem nos requebra amoroso, / Quem nos brinda com banquetes.

Afectais nesta fineza / Estar em nós tão presente,
Que pela união das almas / Deus e homem não diferem.
Como no peito do Pai / Em nossos peitos quisestes
Entrar para nossa glória / Morar por vosso deleite.

Em tronos de majestade / Não estais tão gratamente
Como no peito do homem / Que por morada escolhestes.
As almas que em holocausto / De uma caridade ardente
Dão a tal Esposo a mão / E disfarçado o recebe.

É o maior sacrifício, / E tanto vos pagais nele
Que o quereis mais que o incenso, / Ouro, e mirra, do Oriente.
Pois Senhor, pelo Mistério / Gozoso, em que aparecestes
Homem nascido entre brutos / Deus adorado das gentes.

Vos peço humilde, e prostrado / Com lágrimas penitentes
Da Soberana Eucaristia / A união permanente.
Para que favorecido / Pelos auxílios celestes
Suba em vossa companhia / A reinar eternamente.[1]

[1] FALCONI, Frei Francisco – Rosário do Santíssimo Sacramento, Lisboa, Domingos Carneiro, 1662.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Oração de São Tomás para o estudo e a pregação

Criador inefável, que dos tesouros da tua sabedoria escolhestes três hierarquias de anjos e os colocastes numa ordem admirável sobre os céus, Tu que dispusestes com tanta arte as partes do universo, Tu que em verdade chamamos fonte de luz e de sabedoria, principio supremo, digna-te infundir sobre as trevas da minha inteligência um raio da tua claridade, expulsando de mim as duplas trevas nas quais nasci, as do pecado e as da ignorância. Tu que fazes clara a língua das crianças educa a minha língua e derrama nos meus lábios a graça da tua bênção. Dá-me penetração para compreender, a capacidade de reter, o método e a facilidade para aprender, a subtileza para interpretar e uma graça abundante para me exprimir. Instrui o começo, dirige o progresso e completa o final, Tu que és verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que vives e reinas pelos séculos dos séculos. Ámen.

P.S. - Hoje sabemos que esta oração para o estudo e a pregação, tradicionalmente atribuida a São Tomás, é de um autor anónimo. Como apareceu na edição das obras completas de São Tomás, editada em Parma na Itália em 1869, rapidamente foi assumida como sendo do grande mestre. Contudo, e ainda que não o seja, a sua beleza e tradição obriga-nos a deixá-la aqui para quem, uma vez mais, se quiser servir dela para pedir a Deus a ajuda necessária na procura da Verdade e na sua apresentação aos homens nossos irmãos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Dominicanos...perspectivas para estes tempos

Quando refundou a Ordem de São Domingos em França, Lacordaire escreveu que a “essência da Ordem de São Domingos é a salvação das almas pela doutrina e pela pregação, mediante as observâncias monásticas claramente determinadas pelas nossas Constituições, e uma hierarquia electiva em todos os seus níveis”. Determinava-se o fim, os meios principais e os meios secundários que regiam a Ordem.
Podemos recorrer ao momento fundacional de São Domingos para pensar e repensar a Ordem e a sua presença no mundo, ibérico como o nosso, nos nossos dias, mas creio que o momento de refundação de Lacordaire está mais próximo do nosso, ainda que também já bastante distante. Se no tempo de São Domingos os valores e referências religiosas e espirituais eram comuns, aceites por todos ainda que com incidências diferentes, no tempo de Lacordaire essa realidade tinha já mudado alguma coisa. O século da Luzes, a revolução francesa e o fim de Napoleão tinham trazido outros valores, outras referências, uma realidade social e religiosa diferentes. Hoje estamos ainda mais diferentes e quando falamos de algumas realidades religiosas, alguns conceitos estruturalmente cristãos, encontramo-nos com homens e mulheres que não sabem do que estamos a falar ou que não querem saber.
Assim, e face a estas realidades convém realmente reflectir sobre o que queremos para os nossos tempos, que ordem de São Domingos se adequa a estes tempos que são os nossos em universo ibérico.
Antes de mais, e é uma questão de fé, teologal e por isso basilar, estamos ainda convencidos da necessidade da salvação de almas? Acreditamos que há ainda almas para salvar, ou que valha a pena salvar, e com as almas os corpos dos nossos irmãos? Quando olhamos para alguma complacência com que vivemos podemos interrogar-nos se de facto ainda acreditamos nesta necessidade, neste fim da Ordem.
Acreditamos que temos essa missão, e vivemos para ela, ou pelo contrário o que fazemos quer socialmente ou intelectualmente serve apenas para nosso deleite e realização pessoal?
E se ainda acreditamos, como usamos os meios que a Ordem dispôs sabiamente para essa missão? Que doutrina assumimos e pregamos? E que pregação realizamos?
Neste sentido e num mundo de novos areópagos em qual deles nos situamos, porque não podemos estar em todos.
São Domingos escolheu a itinerância mendicante, Lacordaire o ensino esmerado, e nós o que podemos escolher? Onde nos podemos situar para pregar?
A Ordem sempre teve fama de intelectualidade, e para isso contribuíram os nossos antepassados da teologia como São Tomás. O século XX deixou-nos a memória de Lagrange, Congar, Chénu, Tillard. Pensaram a fé e contrastaram-na com os valores e desvalores do seu tempo. Poderemos nós fazer o mesmo, mesmo que isso implique pagar o preço que quase todos eles pagaram de serem mandados silenciar, de serem remetidos para a escuridão das bibliotecas. Mas foi nessa escuridão que brilharam.
Que ousadia nos habita hoje para pensar? É verdade que sempre estivemos na Igreja e com a Igreja, mas não foi o nosso serviço maior a essa mesma Igreja, questionar, levá-la a pensar sobre o que fazia e como o fazia?
Tudo isto no entanto só foi possível devido a uma outra realidade teologal, da fé, a experiência pessoal e comunitária de Deus. Os nossos irmãos que foram mandados silenciar, que foram perseguidos, as nossas comunidades que estiveram na vanguarda da teologia ou dos direitos do homem rezavam juntas, viviam em comum e partilhavam as suas fraquezas e virtudes. Não eram perfeitos, ainda que a ideia de perfeição nos acompanhe como um aguilhão desde que combatemos os cátaros, mas acreditavam nos irmãos e acreditavam que Deus estava com eles e naquilo que faziam.
Uma presença dominicana que queira ser significativa neste século XXI tem que regressar a estas experiências, a uma vivência sã e salutar daquilo que se diz serem as observâncias regulares. Não podemos viver sem rezar conjuntamente, sem partilhar a nossa fé e os nossos estudos, sem guardar um conjunto de disciplinas que ajudam a moldar o nosso ser e a testemunhar da experiência divina que fazemos.
Neste âmbito tem lugar reflectir sobre a visibilidade, sobre os sinais exteriores. Não podemos negar que o hábito branco e negro é a nossa melhor imagem de marca e que a sabemos utilizar muito pouco. Outros certamente a explorariam de uma forma mais comunicacional e produtiva, mas creio que nunca tivemos essa veia. Contudo, e para além do hábito e do sinal de pertença que ele pode traduzir, temos o nosso Oficio coral, esse momento comum que marca o nosso dia a dia e as nossas raízes monásticas. Quantas vezes o temos descuidado e dessa forma perdido uma oportunidade de nos conhecerem, de nos tornarmos significativos para homens e mulheres que andam em busca de um momento especial na rotina do seu dia a dia.
Desde sempre a democracia e o sistema electivo marcou o nosso governo e as nossas relações. Disso nunca abdicámos nem poderemos abdicar, mas nesta democracia cabe repensar a responsabilidade dos superiores, daqueles que foram eleitos para governar e da oportunidade de novos projectos, da criatividade e responsabilidade pastoral. Hoje e mais do que nunca necessitamos líderes, líderes que governem as comunidades em equilíbrio de diferenças promovendo e perseguindo a unanimidade, combatendo a uniformidade e a indiferença, líderes que sonhem com novas formas de presença, novos projectos e que com o seu sonho arrastem outros atrás.
Pouco depois de fundar a Ordem São Domingos dispersou os poucos frades que viviam com ele. No momento da partida João de Navarra recusou-se a partir para Paris sem levar dinheiro para a viagem. Não deve ter sido fácil para São Domingos mas por fim todos partiram e certamente João com o dinheiro que necessitava e considerava necessário para a viagem e instalação na cidade da universidade.
Hoje e no nosso contexto se queremos partir para algum lado, se queremos construir alguma coisa temos que saber o que os irmãos necessitam, que dinheiro pedem para a viagem e instalação, e com este dinheiro não queremos referir-nos ao vil metal, porque esse ainda vamos tendo, mas àquilo que pode levar os irmãos a querer recomeçar tudo de novo, com uma nova alegria e esperança. Que sonhos transportamos connosco para sermos outro Domingos, outros Lacordaire, ou até outro João de Navarra?

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Homilia Domingo V do Tempo Comum

As leituras deste quinto domingo do Tempo Comum apresentam-nos três histórias pessoais, três histórias bem diferentes mas com um denominador comum, o encontro pessoal com Deus. Podemos dizer que estamos perante um itinerário vocacional comum ainda que desenvolvido em três momentos e pessoas diferentes. Três experiências paralelas que são ou podem ser também os nossos itinerários e as nossas experiências.
Nestas histórias, de Isaías, de Paulo e de Pedro encontramo-nos perante a descoberta de Deus, mas de um Deus que é totalmente Outro, de um Deus que não corresponde aos nossos esquemas nem às nossas concepções, um Deus que nos revela como é surpresa e como estamos convidados a assumir também essa surpresa, como estamos convidados a transformar-nos de alguma forma em outros, em pessoas diferentes das que somos.
Na leitura do Livro de Isaías encontramos a visão que o profeta tem da liturgia divina, da sua beleza e magnificência, do esplendor que envolve o próprio Deus. Perante tal beleza e esplendor o profeta descobre a sua pequenez, a sua falta de pureza, descobre afinal a distância que o separa do próprio Deus em que acredita, descobre como é um homem de lábios impuros e vive no meio de um povo também impuro de lábios.
Para Isaías, para cada um de nós, para cada homem, e para os homens das histórias das três leituras que escutámos, esta consciência é o primeiro patamar para o encontro transformante com Deus, é a primeira etapa do itinerário vocacional. Não pode haver encontro transformante com Deus se não se descobre esta consciência.
São Paulo sofreu o mesmo processo, ele que tinha sido formado na escola de Gamaliel, que era um judeu zeloso do cumprimento da lei e da vivência de acordo com a sua fé. Quando escreve aos Coríntios, Paulo reconhece que tinha uma imagem e uma concepção de Deus, a imagem dada pela formação doutrinal e intelectual, uma imagem de que ele era senhor, mas que estava muito aquém da realidade de Deus, da experiência que depois pôde fazer a caminho de Damasco quando viu como andava cego fixado naqueles princípios que não eram experienciais mas fruto da tradição.
Foi esta experiência a caminho de Damasco que lhe permitiu perceber como era um abortivo, como estava tão distante do Deus em que dizia acreditar e servir. A caminho de Damasco Paulo percebe quanto Deus era Outro, totalmente Outro. Por isso pode dizer que apesar de todo o trabalho de apostolado, de toda a missão realizada ele era o mais pequeno dos apóstolos. De facto, todo o seu trabalho tinha sido feito pela graça, pela força do Espírito Santo que o tinha transformado, ele era em si mesmo insignificante.
Pedro sofreu também a mesma experiência de se encontrar com um Deus, na pessoa de Jesus Cristo, completamente diferente. Por essa razão pede que o Senhor se afaste dele, uma vez que é pecador. E o pecado de Pedro, o pecado que ele reconhece, prende-se com a sobranceria com que tinha respondido a Jesus quando este lhe mandou que lançasse as redes. Pedro era pescador, homem habituado ao mar e à pesca, como poderiam apanhar alguma coisa depois de uma noite de canseira em vão? E que percebia aquele carpinteiro de pesca e de peixes? Pedro lança as redes na expectativa de um fiasco, mas a rede vem carregada de peixes e então descobre que aquele homem tinha mais conhecimento da pesca e dos peixes que ele, era afinal o criador dos próprios peixes e podia reuni-los em qualquer rede. Pedro faz a experiência das limitações do seu conhecimento e da sua realidade.
Nestas três histórias encontramo-nos perante a realidade de que só face a Deus, só na sua presença descobrimos a nossa miséria e pequenez, o nosso pecado e a distância que nos separa de Deus, da sua santidade e beleza. Perante Deus somos esmagados pela nossa condição, pela nossa própria consciência que nos acusa da distância que nos separa. Nesta situação podemos ficar paralisados, bloqueados, incapazes de fazer alguma coisa porque realmente não há muito a fazer.
Por esta razão e pelas nossas limitações Deus toma a iniciativa e vem ao nosso encontro, parte da sua grandeza para vir ter connosco à nossa pequenez e miséria. Na história de Isaías é o querubim que traz a brasa acesa e purifica os lábios impuros, em Paulo é Ananias que recebe a missão de Deus de ir ao encontro daquele que antes perseguia os cristãos, em Pedro é o convite a não temer o sucedido nem o pecado porque Deus quer fazer dele um pescador de homens.
A experiência do encontro com Deus e da sua santidade transforma-se assim em encontro de chamamento, em encontro de outorga de missão, em encontro vocacional. Abatidos pela grandeza do encontro, no confronto da sua pequenez e miséria com a grandeza e santidade de Deus, Isaías, Paulo e Pedro surgem como novos homens, renascidos para uma nova realidade e vida. Por esta razão é que Saulo se passa a chamar Paulo e Simão se passa a chamar Pedro. Já não são os mesmos e ainda que continuem a ser os mesmos são os mesmos transformados pelo encontro, são outros à semelhança do totalmente Outro com que se confrontaram e perante o qual assumiram as suas limitações.
Podemos interrogar-nos sobre a nossa possibilidade de transformação, sobre a possibilidade de um encontro transformante com Deus na nossa vida e face às nossas misérias e limitações. Mas ao fazê-lo estamos a esquecer-nos que todos os dias essa possibilidade está à nossa disposição, que dentro de pouco ela vai estar ao nosso alcance. A Eucaristia é essa possibilidade real, factual, e se uma brasa trazida pelo querubim pôde purificar os lábios de Isaías quanto mais poder não terá o Corpo e o Sangue de Jesus ressuscitado de que nos alimentamos, esse Corpo e Sangue que nos transforma não só naquilo que somos mas também em outros Cristos vivos sobre a face da terra. E como Cristo não podemos esquecer que temos uma missão, a de resgatar os homens do mundo da mentira e da morte e trazê-los para o reino da luz e da verdade.
Que o Senhor nos possibilite a graça de irmos cumprindo a nossa missão.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Solilóquio de D. José de Faria Manuel ao Santíssimo Sacramento

Solilóquio ao Santíssimo Sacramento, incluindo o Mistério da Encarnação de D. José de Faria Manuel

Omnipotente Senhor / Rei dos Reis, e Rei da glória
A quem o céu, terra, inferno / Treme, ajoelha, e adora.
Vós meu amor infinito / Que nessa divina hóstia
Estais disfarçado amante /Na fineza mais notória.

Vós tão valente no Amor / Com quem tendo certa história
Por amor de umas palavras / Estais metido em Custódia.
Vós oceano de luzes / De que o mesmo sol se assombra,
Cujos raios, por milagre / Oculta neve formosa.

Vós que de finezas tantas / Por conservar a memória,
Vos estão dando acidentes / De amores todas as horas.
Vós extremo dos extremos / Que sem mais causa forçosa
Que vosso Amor, nos quisestes / Tomar tanto à vossa conta.

Vós que de encarnado, e branco, / Aí sois a mor lisonja,
Vestindo encarnado puro / Em Nazaré venturosa.
Aonde vos conhecemos / Pérola daquela concha
Que com orvalho celeste / Gerou a melhor Aurora.

Aquela de graça cheia / Donde a fonte dela mora
De cuja certa verdade / Um Paraninfo dá novas.
Aonde lograis o efeito / Daquelas ânsias custosas
Em o sim de uma Donzela / Puríssima sobre todas.

Vós que fabricando o mundo / Com palavras que são obras
Para ser homem, esperais / Palavra de sua boca.
Cujo angélico recato / Ao Anjo resiste, e nota
(Sem ser Donzela) o ser mãe / Do mesmo Deus em pessoa.

Aquela que com tal graça / Soube juntar prodigiosa
O ser Mãe, e o ser intacta, / Maravilha mais que nova!
Aquela tão grande humilde / Que depois de ser Senhora
Se confessa por escrava / Sendo do Impireo Patrona.

A quem o Espírito amante / Cândida se bela pomba
Ao conceber com tal graça / Rodeia, arrulha, e namora.
A quem por vós lograsse / Sol divino sem soçobra
No incêndio de tantos raios / O Altíssimo vos faz sombra.

Por quem, e por cujo Filho / Vossa grandeza blasona
Que na casa de Jacob / Impérios, e tronos logra.
Vós, que tão enamorado / Ficastes daquela hora,
E assim vos mostrais amante / De prendas tão poderosas.

Que repetindo este afecto / (Já que não podeis ter outra
Encarnação) ordenais / Essa fineza amorosa.
Donde sois, por consagrado / Um, repetido em mil hóstias,
Extensão da Encarnação / Homem Deus, em breve forma.

Assim o crê, e confessa / Minha alma amante, e disposta
A dar a vida mil vezes / Por esta fé prodigiosa.
Por aquela Encarnação / E por esta misteriosa
Que sendo cópia daquela / É maravilha de todas.

Por aquela acção tão grande, / (Mas em fim, era acção vossa)
Com que saístes do Pai / A buscar Mãe, e Mãe própria.
Por aquele grande desejo, / Se não foi ânsia amorosa,
Que de consagrar-vos tínheis / Por satisfazer as nossas.

Meu Senhor Sacramentado / Branco, das almas esposas
(Mas encarnado também, / Que esse Pão é carne vossa.)
Por um, e outro Mistério, / Espero com fé ditosa
Por aquele, o bem da Graça, / Por esse, a prenda da Glória.[1]

[1] FALCONI, Francisco – Rosário do Santíssimo Sacramento, Lisboa, Domingos Carneiro, 1662.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Santa Catarina de Ricci

A Ordem de São Domingos celebra hoje Santa Catarina de Ricci, uma santa que viveu no século XVI em Itália.
Catarina nasceu a 23 de Abril de 1522 em Florença e recebeu de baptismo o nome de Alexandrina Lucrécia Rómola. Seu pai chamava-se Pietro Francesco de Ricci e sua mãe Catalina Panzano, que Catarina perdeu aos cinco anos de idade, sendo por isso educada num mosteiro de monjas beneditinas.
Apesar da educação beneditina Catarina desde muito cedo desejou ser monja dominicana e fez todo o possível para o ser. Para este sucesso contribuiu não só o seu tio paterno, frei Timóteo de Ricci, superior do convento dominicano do Prato e confessor das monjas do mosteiro onde professou, como também uma doença grave que a levou quase à morte e pela qual obtém do pai a formal autorização para a entrada no mosteiro.
Assim em 1535, com treze anos entra no mosteiro de São Vicente das irmãs da Terceira Ordem de São Domingos na cidade de Prato, mosteiro que ainda hoje está habitado por monjas dominicanas. No momento da profissão Alexandrina muda o seu nome para Catarina.
Este mosteiro tinha sido fundado em 1503 no contexto do movimento de reforma religiosa promovido por Savonarola. Era um mosteiro dependente da Congregação de São Marcos de Florença e levava uma vida religiosa de estrita observância. Catarina de Ricci e a sua espiritualidade é desta forma filha do movimento reformista que se estava a viver na Igreja.
Favorecida com graças especiais, Catarina de Ricci durante doze anos, entre 1542 e 1554, sofreu desde o meio-dia de quinta-feira até às primeiras horas da tarde de sexta-feira os tormentos da paixão de Jesus. A visão do crucifixo absorvia-a completamente, até ao ponto de se manifestarem as chagas da crucifixão.
Muitos destes fenómenos foram testemunhados por outras religiosas e povo da cidade, mas Catarina manteve sempre uma reservada suspeita, temendo que não fossem graças de Deus mas uma pura ilusão como acontecia em outros casos. Por este aspecto podemos perceber o equilíbrio espiritual desta mulher, um equilibro que contrasta com as manifestações extraordinárias de que era objecto. Este equilíbrio é visível também na imensa correspondência que trocou, à semelhança de Santa Catarina de Sena, com diversos membros da hierarquia da Igreja, da Ordem dominicana e da sociedade política italiana, como Francisco de Médicis, grande Duque da Toscânia.
O dia de Páscoa de 1542 foi o dia do seu desposório místico com Jesus Cristo, pelo qual passou a usar um anel que lhe tinha sido oferecido pelo noivo e colocado no dedo anelar da mão esquerda. Esta graça foi no entanto seguida por outras, como a do abraço de Cristo crucificado a 24 de Agosto desse mesmo ano de 1542.
Apesar de todas estas manifestações de graças Catarina foi priora do seu mosteiro por sete vezes, entre 1552 e 1590 e exerceu sempre o seu cargo com profunda humildade, recusando sempre qualquer louvor pela sua santidade e trabalho.
Durante o governo defendeu com desnudo os interesses e direitos do seu mosteiro, promoveu o seu progresso e fidelidade à missão da pregação. Para tal não se cansou de procurar de reformar a vida regular inspirando-se de modo muito particular no seu grande mestre, frei Jerónimo Savonarola, a quem venerava com afecto.
Catarina de Ricci morreu no seu mosteiro da cidade do Prato a 2 de Fevereiro de 1590, foi beatificada por Clemente XII em 23 de Novembro de 1732 e canonizada por Bento XIV a 29 de Junho de 1746.
O seu corpo ainda hoje se encontra à veneração dos fiéis na igreja de São Vicente Ferrer na cidade do Prato.