A questão que colocam
a Jesus, no Evangelho que acabámos de escutar, sobre a quantidade daqueles que
se salvam é uma questão que certamente algumas vezes nos interpela, nós que
somos dados a contas, a estabelecer hierarquias, a querer garantias.
É uma questão que
igualmente nos interpela quando somos confrontados, por alguns leitores mais
literalistas do livro do Apocalipse, com o número dos cento e quarenta e quatro
mil que estão diante do Cordeiro. Afinal, são muito poucos os que se salvam, e
portanto somos convidados por esses leitores a tudo fazer para integrar esse
número.
Estes leitores, e
leituras, esquecem o que se diz imediatamente a seguir no livro do Apocalipse
sobre os milhares de milhares que lavaram as suas túnicas no sangue do Cordeiro,
bem como a resposta de Jesus à questão da quantidade reduzida dos que se
salvam.
Face a uma questão
numérica, contabilística, Jesus responde com uma proposta de acção, com uma
missão que consiste em passar pela porta estreita, pois haverá muitos que o
tentarão mas não o conseguirão, o que deixa desde já supor que a salvação ainda
que conte com a nossa colaboração não está na nossa mão.
Esta noção de porta
estreita torna-se paradoxal quando a confrontamos com o capítulo décimo do
Evangelho de São João, no qual Jesus se assume como a verdadeira porta, a porta
pela qual as ovelhas saem e entram no aprisco, pela qual têm acesso às
verdadeiras pastagens.
Se Jesus é a porta,
podemos e devemos interrogar-nos como ela se estreita, como ela se torna impossível
de transpor, quando Jesus se nos oferece como passagem, como resgate da nossa
vida e nosso salvador.
Temos assim que
assumir que a porta se mantem larga e aberta, poderíamos dizer escancarada
desde o momento que foi aberto o lado de Jesus no alto da cruz, e somos nós que
a vamos encerrando e estreitando na medida da nossa infidelidade, do adiamento
do nosso transpor verdadeiro da porta que se nos oferece.
A crítica de Jesus
face àqueles que batem à porta e reclamam que comeram e beberam com ele, que o
escutaram nas praças, mas ainda assim não foram capazes de abandonar a sua iniquidade,
vem reforçar esta ideia de que a porta se estreita na medida em que nos recusamos
ou negligenciamos a passagem verdadeira, a configuração com Jesus e com a sua
palavra.
O problema do
estreitamento da porta não se coloca assim do lado de Deus, que a todos se
oferece e quer acolher, mas do nosso lado e na nossa fragilidade e preguiça em
prosseguirmos perseverantes no caminho que o mesmo Jesus nos oferece.
Também nós poderemos
um dia dizer que não faltámos a nenhuma Missa, que recebemos todos os
sacramentos e rezámos todos os dias, que fomos até solidários com aqueles que
passavam necessidade e socorremos, mas tal mostrar-se-á de pouca utilidade na
medida em que tivermos estado ainda assim distantes de Jesus, na medida em que
não nos tivermos colocado no caminho que leva à cruz e à sua aceitação, ao
acolhimento amoroso da vontade do Pai do Céu.
Este caminho e este
acolhimento passa obrigatoriamente pela aceitação das contrariedades e das
dificuldades, das correcções paternas de que nos fala a Leitura da Epístola aos
Hebreus. Não é que Deus deseje o nosso sacrifício e o nosso sofrimento, mas a
nossa vontade conforma-se por vezes muito pouco com aquilo que nos convém e
serve à nossa salvação.
De facto, é na medida
em que nos vamos deixando moldar, corrigir, aperfeiçoar pelo amor paterno de
Deus que nos vamos aproximando da soleira do Reino de Deus, que vamos
transpondo a porta assemelhando-nos a ela. As dificuldades serão certamente
muitas, os obstáculos a ultrapassar bastante duros, mas com fé e confiança no
amor de Deus não serão inultrapassáveis.
É esta esperança que
encontramos também manifesta na leitura do Profeta Isaías, quando nos diz que
Deus reunirá todos os povos para contemplar a sua glória. Esta promessa também
nos está dirigida e é por intermédio de Jesus que temo acesso a ela.
Procuremos pois com
diligência e amor libertar-nos de toda a iniquidade e configurar-nos cada vez
mais e melhor com Jesus, pois é só passando por ele, entrando por ele que
possuiremos as chaves que abrem todas as portas, que nos alimentaremos da glória
que Deus nos tem a todos destinada.
Ilustração: “Cristo e os
pecadores arrependidos”, de Gerard Seghers, Rijksmuseum, Amesterdão.