domingo, 31 de maio de 2020

Homilia da Solenidade de Pentecostes - Ano A


Caríssimos Irmãos
É com grande alegria que hoje estamos aqui reunidos, não só porque passados cinquenta dias sobre a ressurreição do Senhor Jesus celebramos a solenidade do Pentecostes, mas porque depois de três meses de ausência devido ao confinamento e isolamento a que fomos obrigados por causa da epidemia do Covid-19 nos voltamos a encontrar, como nos dizia São Paulo na leitura da Carta aos Coríntios, como membros do mesmo corpo, como uma construção que não pode dispensar nenhuma das suas peças e necessita da argamassa do encontro dominical para se manter estável e firme.
E tal como aconteceu com os discípulos também podemos estar temerosos, sem saber muito bem o que fazer, o que pensar e o que dizer, afinal tal como também aconteceu com eles também nós fomos bombardeados com uma experiência dolorosa, com mensagens que nos assustam, mas também com outras mensagens que parecem querer dizer-nos que há algo de novo e temos que arriscar. Podemos dizer que nos encontramos numa nova madrugada de Páscoa.
O Evangelho de São João que escutámos diz-nos que o Senhor soprou sobre os discípulos enviando-lhes o Espírito Santo, para que eles partissem em missão, tal como Jesus tinha estado em missão desde que saíra do seio do Pai, para que pudessem perdoar os pecados. Contudo, antes de soprar e lhes enviar o Espírito, Jesus desafia-os à paz, convida-os à sua paz e mostra-lhes a mãos e o lado feridos na morte sofrida na cruz.
Os Actos dos Apóstolos contam-nos que na sequência deste envio, os discípulos não só perderam o medo, mas foram capazes de falar de modo a serem entendidos por todos os povos, desde os colonos de Roma até ao elamitas e habitantes da Mesopotâmia.
Ao celebrarmos e recordarmos o Pentecostes não podemos confinar-nos à ideia de que este acontecimento maravilhoso ficou reservado aos discípulos de há dois mil anos, seria estar a negar a acção do Espírito Santo, a sua luz e dinâmica transformadora, porque ele acontece hoje, aqui e agora, nos mais diversos momentos em que fazemos uso da palavra, da nossa palavra humana e da Palavra de Deus.
No Pentecostes dos discípulos o Espírito Santo fecundou as suas palavras, as suas experiências de vida, os caminhos que tinham percorrido com Jesus, iluminou também as suas feridas e chagas, as suas expectativas goradas e o bem que tinham feito, confirmou-nos na alegria e na paz que tinham sentido sempre que participavam da missão e vida de Jesus. Ainda hoje o Espírito Santo continua a fazer o mesmo, a fecundar de vida divina a nossa vida humana, à semelhança do momento da anunciação do anjo Gabriel a Maria.
Ao partirmos em missão, tal como Jesus nos envia, partimos com a nossa vida, a nossa história e a nossa experiência pessoal, e quando nos propomos e dispomos a falar da nossa vida com Deus e de Deus, de certa maneira propomos uma linguagem que é nossa, pessoal, que até nos pode envergonhar pela intimidade com que vai carregada, que pode parecer indecifrável para o outro. Como é que o outro nos pode entender? E quantas vezes nos damos conta que o outro entendeu tudo ao contrário do que queríamos dizer!  
No entanto, também experimentamos que algumas vezes o outro entende perfeitamente o que queremos dizer, ouve até o que não dizemos, e a nossa história, a nossa palavra faz eco no seu coração, torna-nos transparentes, luminosos, a nossa palavra começa a ter efeito no outro.
Tal como aconteceu em Jerusalém, o Espírito Santo exerce esse ministério, essa função de tradutor simultâneo, torna perceptíveis as nossas palavras, o que desejamos dizer, e faz com que o outro as acolha e escute na sua própria língua, na sua história e coração, e seja capaz de as devolver de uma outra forma perceptível também para nós. O Espírito Santo continua a alterar a nossa linguagem, não para a perverter ou tornar ilusória, bem pelo contrário, para a tornar bem real, quase palpável pelo outro que nos escuta.
Ao retomarmos a nossa vida de comunidade, as nossas celebrações comunitárias, as missões a que o Senhor nos envia, no testemunho, na palavra, na caridade, não podemos esquecer nem procurar passar por cima da experiência que tivemos nestes últimos meses, tal seria, e má a comparação, como se os discípulos não quisessem pensar mais na paixão de Jesus na cruz.
À luz do Espírito Santo necessitamos olhar para o que vivemos e sentimos, para o bom e para o mau, para as alegrias e prazeres, mas também para o negativo e o que nos custou e fez sofrer, e perspectivar à luz do Espírito Santo quais vão ser as mudanças na nossa vida, o que vamos fazer de diferente daqui para a frente. Tivemos uma oportunidade para parar. Agora que avançamos, como o fazemos?
Creio que uma das coisas que todos aprendemos com esta experiência dolorosa da pandemia foi o valor da presença do outro, da necessidade que temos do outro, afinal não podemos viver sozinhos.
O futuro coloca-nos o desafio de como vamos cuidar uns dos outros, dessa nova forma de vida transfigurada pela experiência da dor, mas também pela luz e a graça do Espírito Santo, na família, nas nossas relações sociais e profissionais, na nossa comunidade espiritual e paroquial.
O Espírito Santo desafia-nos a construir relações fundadas na nossa experiência e atentos à experiência do outro. Como tantas vezes Jesus nos diz no Evangelho, quem tem ouvidos ouça, ouça a voz do Espírito de Deus, na nossa história e na história dos nossos irmãos.

Ilustração:
1 – Pentecostes, de Antonio Palomino, Museu do Prado, Madrid.
2 –Pentecostes, de El Greco, Museu do Prado, Madrid.


domingo, 24 de maio de 2020

Homilia Domingo da Ascensão do Senhor - Ano A


Caríssimos Irmãos

Celebramos hoje a Ascensão do Senhor Jesus aos céus, passados quarenta dias da sua ressurreição e as leituras dos Actos dos Apóstolos e do Evangelho de São Mateus apresentam-nos duas versões diferentes do mesmo acontecimento, dois contextos distintos, mas o mesmo mistério e o mesmo desafio para cada um de nós.
Na narração do Evangelho de São Mateus encontramos dois elementos, duas realidades humanas, justapostas, duas realidades difíceis de conciliar quando se referem ao mesmo sujeito. O texto diz-nos que os discípulos ao verem Jesus o adoraram, mas alguns ainda duvidavam.
Como é possível na mesma pessoa, em cada um dos discípulos, e como escutávamos na leitura dos Actos dos Apóstolos, depois de terem partilhado a vida de Jesus, de terem testemunhado os seus milagres, de fazerem a experiência da sua presença no meio deles após a morte, o acto de adoração e a dúvida, o reconhecimento da divindade de Jesus, expressa nesse gesto da prosternação para a adoração, e a incerteza e as dúvidas do coração que sentiam?
A nossa experiência humana e de crentes ajuda-nos a encontrar e a compreender esta atitude, esta duplicidade de sentimentos. Quantas vezes nós estamos intelectualmente convencidos de uma coisa, de uma coisa boa para nós e para a nossa vida, mas ainda assim somos incapazes de tirar dessa certeza as consequências práticas para a nossa vida, para o nosso agir do quotidiano. Quantas vezes fazemos declarações, propósitos, estamos seguros do que é melhor para nós, mas depois hesitamos, vacilamos e acabamos por não levar à prática o acertado, o correcto.
A questão dos discípulos, “ é agora que vais restaurar o reino”, é bem reveladora da situação em que se encontravam e em que nos encontramos; temos diante dos olhos o horizonte da vida nova que Jesus nos inaugurou, mas é muito mais fácil ficar preso ao passado, ao imaginário e às expectativas criadas, como se a obra da redenção e a ressurreição de Jesus fosse um mero restauro do passado, uma justa compensação por tudo o vivido e sofrido.
A ressurreição e a ascensão de Jesus aos céus são assim um convite a crescer, a amadurecer, a gerar em nós a plena estatura que devemos ter em Cristo, um convite a não nos deixarmos acomodar ao passado, ao vivido, ao que deveria ser, mas não é, e ao que nunca será. Temos muita dificuldade em nos abrirmos ao que ainda não vivemos e de fazer confiança nessa novidade, e por isso vamos adiando mudanças, vamos procrastinando, incapazes de perceber que o vivido plenamente é a única pista de aterragem da nossa vida.
E é nesta dinâmica, nesta realidade, que se insere a resposta de Jesus “não vos compete saber os tempos e os momentos, mas ides receber uma força do alto quando o Espírito Santo vier sobre vós e então sereis minhas testemunhas em Jerusalém e até aos confins da terra”.
Podemos imaginar a surpresa e até desilusão dos discípulos. Tal como para nós, bastaria uma vida normal, com uns mínimos olímpicos para viver no nosso quotidiano, facilmente alcançáveis. Mas temos ainda de esperar, que ficar suspensos de algo que virá? E com essa responsabilidade de ser testemunhas e enviados nessa imensidão do mundo, até aos confins do mundo? Não é de admirar que muitos perante este quadro desistam!
Jesus não tem para os seus, para aqueles pelos quais deu a vida, planos e projectos miseráveis, minimalistas, simplórios, bem pelo contrário quer que cada um experimente a incomensurável grandeza do poder de Deus, que cada um goze dos tesouros de glória entre os santos, que cada um viva a esperança  a que foi chamado, como nos fala a Carta de São Paulo aos Efésios que escutámos. E para que tal aconteça, para que seja mais fácil, Ele intercede por todos nós junto do Pai, para que realizemos essa renovação radical na nossa forma de amar e acreditar. Não foi para restaurar as rotinas e costumes que Jesus subiu aos céus, isso não lhe é suficiente nem o satisfaz.
A ascensão de Jesus aos céus evidencia-nos que a nossa relação com Deus não pode estar confinada aos nossos sentidos corporais, não pode estar condicionada ao que vemos, ouvimos e gostamos, ela deve crescer ao ponto de sentirmos e percebermos que nada nos poderá separar dele, nem o frio nem a espada, nem outras realidades, como diz magnificamente São Paulo.
Neste sentido, devemos estar conscientes do que vivemos nas últimas semanas, um período sem precedentes na vida da Igreja e dos cristãos, e que tudo vai evoluir lentamente, aprendendo em cada passo dado, construindo a adaptando-nos à nova realidade. Não podemos contentar-nos em regressar às celebrações sacramentais como o fazíamos antes. O sofrimento que experimentámos na ausência das celebrações da Eucaristia, por exemplo, não deve nem pode ser esquecido, bem pelo contrário deve ser um estimulo, um incentivo a abrir antes de mais o nosso coração aos mistérios que celebramos.  
Como Paulo dizia aos Efésios, que o espírito de sabedoria e de revelação nos ilumine para termos um conhecimento mais profundo, para que os nossos olhos não se fixem no meramente exterior, mas nos conduzam ao invisível, para que o nosso coração se abra à novidade de Deus, com paciência, confiança e humildade na acção vivificante do Espírito Santo.
Como dizia Santo Agostinho, quando comungamos não somos nós que apenas recebemos o corpo de Deus, é o próprio Deus que nos comunga e recebe, é Ele que nos faz seus, que nos integra em si, e por isso a Eucaristia e a comunhão nunca podem ser uma propriedade nossa, uma satisfação pessoal, são um dom de Deus para vivermos nele e para os irmãos.
Que a promessa de Jesus feita aos discípulos de que estaria com eles até ao fim dos tempos nos liberte de todo o espírito de propriedade, de divisão e mesquinhez, da murmuração, e saibamos, como nos recordava o Papa Francisco na mensagem Para o Dia Mundial das Comunicações, ser narradores da beleza da vida humana, da vida de cada um de nós, e da beleza da vida de Deus que nos habita a todos.

Ilustrações:
1 – A Ascensão de Jesus ao céu, de Gustave Doré, Petit Palais, Paris.
2 – A Ascensão de Jesus, de Francisco Bayeu y Subias, Museu do Prado, Madrid.


domingo, 17 de maio de 2020

Homilia VI Domingo da Páscoa - Ano A


Caríssimos irmãos
Escutámos o Evangelho de São João e podemos dizer que ficámos com vertigens, meio perdidos no meio de tantas palavras, tantas recomendações, de tantos conceitos, que na nossa formação e vida cristã sabemos que são palavras fundamentais e incontornáveis: mandamentos, Espírito, verdade, amor.
É um trecho denso, compacto, o que a leitura do Evangelho nos oferece hoje, e por isso dentro da nossa lógica e do nosso pensamento, numa tentativa de sobrevivência, de nos mantermos à tona da corrente da água, procuramos estabelecer uma hierarquia, uma sequência lógica. O que vem primeiro, o que é mais importante, a partir de qual posso planificar as prioridades, tal como numa dieta, como oriento o meu regime através da pirâmide alimentar?
A incapacidade de estabelecer esta pirâmide hierárquica, que me gera uma certa confusão e perplexidade, tem, no entanto, uma grande virtude, poderíamos dizer uma estratégia pedagógica e funcional fundamentais; não conseguimos distinguir o mais importante, hierarquizar os elementos, porque as diversas realidades funcionam em rede, sustentam-se equitativamente.
Na iminência da separação parece que Jesus nos quis dizer muitas coisas. Como uma mãe, atrasada para o trabalho, que sai porta fora e dá instruções aos filhos que ficam em casa, da comida que ficou no forno, da roupa que devem meter na máquina, de não se esquecerem de levar o cão a passear, assim parece Jesus ao despedir-me dos discípulos. Contudo, Jesus não disse muito, pelo contrário, agiu como uma mãe que diz confiante aos seus filhos, “meninos está tudo aí, já sabem como é, orientem-se”. Ao sair porta fora, a instrução que Jesus nos deixa é de observar os seus mandamentos, de amar e acolher o Espírito da verdade, é uma instrução de uma tal simplicidade e redundância que nos surpreende e desconcerta. O que é isto?
E as recomendações de Jesus não são mais que o cumprimento do Evangelho, o culminar da sua missão, a abolição da religião como obediência cega a leis indecifráveis e a instauração de uma obediência esclarecida, uma obediência que é regida pelo amor e não pelo medo e o temor de se ser punido e castigado. E temos de o assumir, é para todos nós muito mais fácil viver a docilidade da submissão do que a liberdade do amor. Este tem muitos riscos.
E é devido a estes riscos, que o amor comporta, que Jesus nos promete um defensor, o Paráclito, para nos apoiar e sustentar, para nos defender, para nos iluminar, para que não nos equivoquemos no objecto e nos frutos dos amor. Se o nosso amor for apenas palavras doces, piedosas, convenientes, poderíamos dizer politicamente correcto, não teremos necessidade nenhuma de qualquer apoio ou defensor, não correremos nenhum perigo; mas se o nosso amor for verdadeiro, reflexo do amor de Deus, necessitamos intrinsecamente do Espírito, do seu apoio, uma vez que o amor vai confrontar-se e chocar com o mundo, com os seus valores e estratégias, com essa apetência do domínio e do poder sobre o outro.
As recomendações de Jesus partem da sua experiência de amor com o Pai, desse fluxo amoroso que circula entre ambos e oferece-o a todos aqueles que o quiserem e procurarem amar, a todos os que procurarem amar os seus irmãos reconhecendo neles a imagem e a presença de Deus, a habitação do Espírito divino. No Evangelho amar é deixar-se conduzir pelo Espírito e deixar-se conduzir pelo Espírito é amar a Deus e aos irmãos. E qualquer homem ou mulher conduzido pelo Espírito da verdade, amando no Espírito e pelo espírito, realiza naturalmente a observância dos mandamentos de Deus.
Como todos sabemos este ano tivemos uma Quaresma diferente, na qual tivemos de jejuar de muitas das nossas rotinas com o isolamento social a que fomos obrigados; também não pudemos celebrar a grande festa da Páscoa da Ressurreição de Jesus e continuámos numa espécie de quaresma prolongada que se mantém até ao presente. Contudo, dentro de duas semanas celebraremos o Pentecostes, com o qual termina o tempo pascal e com o qual terminará também o nosso tempo de jejum das celebrações comunitárias.
Temos duas semanas para nos prepararmos , para entrar no nosso coração, olhar a nossa vida e tentar perceber o que Deus quer de nós, a liberdade que nos oferece, essa circulação de vida que nos é oferecida, para não voltarmos com medo, nem num espírito de servidão, mas profundamente convictos que a fé, que a nossa fé reside na relação, numa teia de relações com os outros e com Deus, e não num sistema de crenças.
As crenças desaparecem, mudam-se com os tempos, mas as relações permanecem, mais fortes ou mais ténues, mas permanecem, porque o outro deixa sempre uma marca em nós, uma marca indelével. E o outro que é Jesus Cristo, deixou-nos uma marca que fortalecemos e alimentamos em cada domingo, fazendo memória na comunidade reunida, celebrando o tempo presente como tempo da eternidade.
Como nos diz a leitura da Carta de São Pedro, que saibamos dar razões da nossa esperança, da nossa fé, da caridade que procuramos que nos alimente, ao retomarmos a nossa vida sacramental e celebrativa nas nossas comunidades. Que o nosso regresso seja sinal de uma vida nova que aprendemos a viver e aspiramos viver melhor em união com Deus e com os nossos irmãos.

Ilustrações:
1 – Cristo do campo de trigo, de Thomas Francis Dicksee, Christie’s London, 13 Dez 2012.
2 – Deixai vir a mim os pequeninos, Baixo Relevo em mármore, de Ligier Richier, Biblioteca Nacional de França.

domingo, 10 de maio de 2020

Homilia V Domingo da Páscoa - Ano A


Caríssimos irmãos
O Evangelho que escutámos apresenta-nos um excerto da conversa de Jesus com os discípulos durante a última ceia, um trecho do chamado discurso da despedida. São um conjunto de exortações e recomendações, poderíamos dizer uma espécie de testamento espiritual, que nos dão bastante matéria para meditar, contemplar, iluminar o nosso discernimento sobre a vida que Jesus nos convida a viver.
Mas para além do conteúdo, das exortações e recomendações, há um tom, uma forma de dizer as coisas, e de modo muito concreto no trecho que lemos neste quinto domingo da Páscoa, que não nos pode passar despercebido, que não podemos deixar de anotar.
Se lermos pausadamente estas linhas vemos que Jesus se dirige aos discípulos com um sentido de responsabilidade elevado, associado a uma grande intimidade, de uma forma bastante afectiva, com um carinho maternal que nos toca no coração, e que vamos voltar a sentir quando no momento da oração do jardim das oliveiras Jesus se dirige ao Pai para lhe dizer que não perdeu nenhum daqueles que lhe tinha sido confiado. Jesus está a trabalhar para que nenhum se perca, porque o risco era grande, muito grande, havia até já alguém no grupo que se tinha perdido, o filho da perdição como Jesus lhe chama.
Estamos numa ceia que Jesus mandou organizar de modo particular, na qual Jesus partiu o pão e realizou a bênção de forma solene, na qual Jesus se coloca a lavar os pés aos discípulos, para estupefacção de todos e até uma certa revolta, na qual Jesus começa a despedir-se dizendo que tinha chegado a sua hora, que já vai estar pouco tempo com eles, criando desta forma uma tensão que podemos dizer se palpava no ar.
Como crianças perdidas na angústia do desconhecido, da novidade, Tomé e Filipe colocam questões, Tomé procura compreender, quer conhecer o caminho, Filipe procura ver, quer que Jesus lhes mostre o Pai porque isso bastará. Como as crianças que à noite temem o escuro, e tudo fazem para que a mãe ou pai não saia do quarto e apague a luz, assim estão os discípulos a tentar ganhar tempo, a tentar superar a angustia da separação que se vê iminente.
É ancestral esta angústia, esta ansiedade face ao desconhecido, face à separação, natural nas crianças que ainda não desenvolveram a sua confiança, mas é também natural nos adultos o serviço de conforto, a transmissão de confiança, de sossego face à separação e ao desconhecido. Como uma mãe que cuida dos seus filhos, Jesus procura transmitir confiança aos discípulos.
A forma como o faz, o tacto maternal, a sua confiança interna, mostra que Jesus alimenta e tem fundamentada a sua confiança bem longe, bem distante dos poderes da terra e da força dos homens; a sua confiança está radicada no coração do Pai e por isso todo o discurso, toda a exortação é enquadrada no principio e no fim pelo Pai, eu vou para o Pai, eu volto para o Pai, acreditai e tende confiança, não se perturbe o vosso coração.
Este convite maternal, este apelo de Jesus a que não se perturbe o coração, é-nos dirigido a cada um de nós hoje, nas circunstâncias em que nos encontramos, podemos dizer na situação de retoma das nossas actividades. Estamos cansados do isolamento social, sentimos falta da proximidade dos outros, estamos bastante apreensivos relativamente à situação económica, já para não falar da incerteza da evolução da epidemia, sentimos a falta das nossas celebrações comunitárias, da nossa vida como membros de um corpo que é a Igreja, que é a família, que é a sociedade.
Temos diante de nós um desconhecido, um tempo novo, para o qual ninguém nos preparou, que não veio com livrinho de instruções como o último aparelho electrónico que adquirimos, e a cada dia temos de dar um passo em frente, abrir caminho, acreditar que é possível, acreditar como Jesus nos pede, ter fé.
Quando Tomé diz que desconhece o fim para o qual Jesus se dirige e o caminho que segue, Jesus responde-lhe que é o caminho, a verdade, e a vida, que ele não é apenas um guia, um mestre, alguém que envia os outros, mas é uma presença, uma dinâmica, uma força operante capaz de entregar-se e alterar a vida dos outros; que é um caminho que não é apenas meio, mas é uma viagem em si mesma; uma verdade que não é um dogma, mas uma constante descoberta, uma vida que se faz de entregas confiantes, de passos convictos no desconhecido apenas conhecido de Deus Pai.
Se à semelhança de Jesus procurarmos ter o nosso coração enraizado no coração de Deus Pai, se a confiança divina habitar o nosso coração, poderemos enfrentar os desafios dos novos tempos com esperança, retirando da experiência destes dias os instrumentos para a vida nova dos tempos novos. Qual o valor das pequenas coisas, como a saúde, o sol, o poder sair à rua? Como as vamos valorizar no futuro? Que aprendemos com aqueles com quem vivemos tão intensamente? Vão ser eles meus companheiros de caminho no futuro ou meus adversários? Estamos em competição e guerra uns com os outros, ou aprendemos que somos todos essenciais para a vida de cada um?
Não nos podemos esquecer que somos pedras vivas da mesma construção, como nos recordava a Carta de São Pedro na segunda leitura, e que Deus nos pede que entremos confiantes na construção do templo espiritual do tempo novo que temos a desafiar-nos. Um tempo que vai ser exigente em termos de caridade, de solidariedade, e de partilha, no qual não nos podemos deixar enredar em divisões e calúnias, murmurações e críticas destrutivas.
Tal como nos desafia a leitura dos Actos dos Apóstolos temos de servir os irmãos de forma justa não deixando de cuidar igualmente a nossa oração e testemunho, pois só dessa forma ultrapassaremos as dificuldades, animados e confiados em Cristo, animando a confiança nos outros e dos outros nossos irmãos. Procuremos acreditar, para que se cumpram em nós as palavras de Jesus, faremos ainda obras maiores.

Ilustração:
1 – Última Ceia, de Jacopo Tintoretto, Igreja Saint François-Xavier, Paris.
2 – Quo Vadis, de Andrey Mironov.

domingo, 3 de maio de 2020

Homilia IV Domingo da Páscoa - Ano A

Caríssimos Irmãos
A leitura que escutámos do Evangelho de São João, a parábola do bom pastor, se assim a podemos chamar, oferece-nos um prolongamento, uma continuidade de reflexão face ao Evangelho que escutámos no domingo passado e que nos falava do encontro de Jesus com os discípulos que iam a caminho de Emaús.
Recordemos-nos que os discípulos enquanto caminhavam com Jesus não o tinham reconhecido, era para eles um perfeito estrangeiro, um desconhecido, que nem tinha conhecimento da tragédia vivida em Jerusalém. É no momento do partir do pão que o reconhecem, mas é também nesse momento, e após o desaparecimento de Jesus do meio deles, que reconhecem como lhes ardia o coração enquanto o escutavam pelo caminho.
No capítulo dez de São João, e nesta parábola do pastor, Jesus enuncia este princípio extremamente importante e fundamental para todos os homens e cristãos: as ovelhas seguem o pastor porque conhecem a sua voz. E a importância deste princípio é de tal ordem, que Jesus vai sublinhá-lo por diversas vezes neste capítulo.
Hoje, e tal como há dois mil anos, é extremamente importante e necessário reconhecer essa voz, reconhecer a voz do pastor para não seguirmos nem salteadores nem ladrões, para não nos perdermos nos ecos das palavras dos nossos próprios desejos e expectativas.
A parábola do bom pastor, das ovelhas que escutam a voz do seu pastor, manifesta, no entanto, uma tensão que não podemos perder de vista e que é necessário manter para nos encontrarmos perto da verdade, para podermos passar verdadeiramente pela porta que é Cristo.
Esta tensão está expressa nesse detalhe que nos pode passar despercebido, e que é o facto de o pastor chamar todas as ovelhas, mas chamar cada uma pelo seu nome. Deus chama-nos a todos e a cada um a seguir o seu Filho Jesus Cristo. Este chamamento coloca-nos um desafio, apela-nos a uma profunda responsabilidade, porque temos de responder como rebanho, como comunidade única, mas ao mesmo tempo como uma ovelha, como um sujeito único e particular. 
E todos nós sabemos que não é fácil, que temos muita dificuldade em articular estas duas respostas de forma equilibrada, que na maioria das vezes nos deixamos levar ou pelo nosso orgulho, pelos nossos interesses pessoais, ou então pelo conformismo e submissão ao grupo, pois dessa forma tenho de dar menos corpo ao manifesto.
Temos de dizer que neste momento da história estamos a viver um momento especialmente difícil nesta questão e no encontro deste equilíbrio, um momento difícil para a Igreja, para a sociedade em geral e para a vida da fé de cada um de nós.
Neste sentido, é necessário procurarmos individual e comunitariamente o resultado desta equação: se eu apenas tenho uma relação com Deus individual, centrada no meu umbigo e na minha satisfação pessoal e espiritual, enclausurado na minha sensibilidade, quem me vai dizer que o Deus que eu procuro é maior que a minha experiência, que não é mais que um reflexo de mim próprio no espelho? Mas, se pelo contrário eu estou apenas ligado à fé dos outros, se me contento em seguir indiferente o rebanho, pelas tradições em que fui educado, como posso fazer a experiência de que Deus me chama a mim, pelo meu próprio nome?
Um cartoon, que circula nestes últimos dias pelas redes sociais, apresenta-nos um Jesus pastor a esforçadamente impedir que as ovelhas saiam de casa, pois ainda não é hora, e sabemos pelo que nos foi comunicado pelas autoridades que não vai ser tão cedo que vamos poder sair, que vamos poder retomar comunitariamente as nossas celebrações. Podemos indignar-nos, revoltar-nos, manifestar-nos contra, pois outros já puderam fazer aquilo que não nos é ainda permitido a nós fazer. Temos esse direito, temos direitos e devemos exigi-los, e também não queremos que nos tomem por tontos.
No entanto, e como nos recorda a Carta de São Pedro que escutámos na segunda leitura, se nós fizermos o bem, se suportarmos o sofrimento com paciência, estamos a viver um tempo de graça, estamos a viver a razão pela qual que fomos chamados, para seguir os passos de Cristo que suportou as afrontas, os insultos, os maus tratos, e que em tudo isso se entregava confiante Àquele que julga com justiça.
Deus trouxe-nos ao deserto nestes dias de pandemia e isolamento social, poderíamos dizer para sermos tentados nos nossos desejos de poder e grandeza, mas sobretudo e como aconteceu com o profeta Oseias, para que o Senhor nos fale ao coração, para que escutemos a sua voz. Será que já nos silenciámos verdadeiramente para escutar o que Deus nos quer dizer, para escutar a voz do bom pastor?
Não nos podemos esquecer que o Senhor, bom pastor, vela sobre nós, quer estejamos confinados em casa ou andemos desgarrados pelos montes. Ele sabe ser e quer ser o pastor de todos e cada um de nós, guarda-nos para que não nos sintamos aprisionados, mas protegidos, cuidados por aquele que deu a sua vida por cada uma das ovelhas.
Confiemos, pois, naquele que sabe verdadeiramente o que necessitamos, mesmo antes de lhe pedirmos.

Ilustração:
1 – Jesus Bom Pastor, Vitral da igreja de São João Baptista de Ashfield, Austrália.
2 – Immunità di gregge, vinheta de don Giovanni Berti, www.gioba.it