domingo, 12 de dezembro de 2021

Homilia do Domingo III do Advento - Ano C

Caros Irmãos

Neste domingo “Gaudete” em que a leitura do profeta Sofonias e a Carta de São Paulo nos convidam à alegria, o Evangelho de São Lucas confronta-nos com um momento marcante da pregação de João Baptista, com palavras da sua pregação que ressoaram para além do lugar e do momento.

O texto diz-nos que vários grupos de homens e mulheres se dirigiram a João para receber o baptismo, atraídos pelo seu apelo à conversão, convictos de que podiam fazer algo de diferente, podiam ser diferentes, e por isso diante das palavras e dos gestos do profeta do deserto perguntam o que podem fazer.

É uma pergunta natural, poderíamos dizer intrínseca ao nosso próprio ser, quase inscrita no momento da criação quando Deus confia ao homem o cuidado da obra da criação. Está nos nossos genes procurar saber o que fazer, uma vez que nos foi confiada uma obra e a sua continuação e preservação.

Experimentamos isso no nosso dia a dia, e assim o que devemos fazer ou o que podemos fazer é uma questão que colocamos quando chegamos novatos a um local de trabalho, quando somos convidados para casa de uns amigos e queremos partilhar do trabalho da organização da festa. Estamos disponíveis para fazer algo, para colaborar, poderíamos dizer que é o nosso estado natural.

As respostas de João Baptista a cada grupo não são nada extraordinárias, como poderíamos supor à luz das expectativas e do burburinho gerado à sua volta. João não pede nada para além do possível e à mão de cada um dos interpelantes. À multidão em geral pede que partilhe o que tem, uma túnica com aquele que não tem nada que vestir, aos publicanos que não sejam mais exigentes do que o estipulado, aos soldados que não se deixem levar pela violência e se contentem com o seu salário.

Se transpusermos estas recomendações de São João para a nossa vida verificamos que apenas nos é pedido que procuremos e saibamos viver na simplicidade, na partilha, alegres com o que somos e o que temos. Como nos recordava há tempos o Papa Francisco, de que nos serve um relógio de ouro se as horas são as mesmas num relógio simples e banal, um carro de alta cilindrada se chegamos ao mesmo lugar com um outro de baixa cilindrada e consumo? E porque nos desgastamos e violentamos com expectativas e objectivos que estão fora do nosso alcance e condição, se podemos ser mais felizes fazendo o que está ao nosso alcance, acolhendo o que somos, pondo a render os nossos talentos de acordo com as nossas capacidades como nos recorda Jesus na parábola?

É perante esta simplificação das coisas, da redução ao seu devido valor e lugar, que poderia gerar alguma frustração e desilusão, que a multidão começa a questionar se João não é o Messias, pois na expectativa messiânica está enxertada essa simplicidade e paz de que falava João, esse equilíbrio perdido com o pecado e que João convidada a reconquistar e a viver.

Ameaçado na sua missão, por estas expectativas e ilusões messiânicas a seu respeito, João assume radicalmente o seu papel e lugar, e proclama umas palavras que vão ter uma tal amplitude e impacto que os quatro Evangelhos, assim como São Paulo, não puderam deixar de as registar, na medida em que são verdadeiramente revolucionárias e precursoras, “eu não sou digno de desatar as sandálias”!

Para compreendermos o peso total destas palavras temos que ter presente que a multidão trata João por Mestre e que à época aquele que se oferecia para ser aprendiz de um mestre, ser discípulo, estabelecia uma espécie de contrato em que ficava assumido que o aprendiz trataria da casa, da roupa, da comida, iria às compras, mas jamais se ajoelharia para desatar as sandálias do seu mestre quando este regressasse da rua, pois essa era uma tarefa de um escravo, e um aprendiz, um discípulo, não é um escravo.

Esta realidade ajuda-nos a compreender a dificuldade de Pedro na última ceia em aceitar que Jesus se ajoelhe e lhe lave os pés, uma vez que era um gesto, um serviço que estava destinado aos escravos, não a um discípulo e muito menos a um mestre.

Assim, ao proferir estas palavras, ao dizer que não é digno de desatar a correia das sandálias daquele que vem depois de si, João está a colocar-se abaixo da própria condição de escravo, ele nem desse estatuto se considera digno. Há aqui uma espécie de aniquilamento, um desaparecimento, para que o outro possa aparecer e existir, tal como dirá em outro momento, é necessário que ele cresça e eu diminua.

Este desaparecimento, esta espécie de aniquilamento, visa, no entanto, mostrar a total e completa dependência do precursor em relação ao que vem depois de si, do discípulo em relação ao Mestre. João contenta-se com o seu papel, não vai para além do que lhe está prescrito, partilha da sua pobre missão com aquele que ainda não é identificável apesar de já estar presente. João manifesta a sua bondade, sem inquietação, alegremente, como nos desafia São Paulo na leitura da Carta aos Filipenses que escutámos.

Nesta caminhada de Advento que vivemos, que seja esta a nossa marca nos tempos difíceis que vivemos, homens e mulheres confiantes, alegres, que acolhem o que são e têm como dom de Deus para fazer crescer e frutificar, sem pretensões de grandiosidade ou espectacularidade, cientes que Deus caminha com eles, faz com eles mais do que é possível imaginar.

Que a paz do Senhor guarde os nossos corações e pensamentos!

 

Ilustração:

A pregação de João Baptista, de Alexander Ivanov, Tretyakov Galeria, Moscovo.

 

 

 

domingo, 7 de novembro de 2021

Homilia do Domingo XXXII do Tempo Comum - Ano B

Caríssimos Irmãos

 

As leituras que escutámos do Livro dos Reis e do Evangelho de São Marcos apresentam-nos em cada uma delas uma viúva, mulheres frágeis e pobres, figuras bíblicas da total dependência dos outros.  Contudo, apesar desta pobreza e fragilidade, cada uma delas apresenta uma riqueza e um poder que escapam aos exploradores, aos escribas que exploram a sua fé e coração e que Jesus acusa no início da leitura do Evangelho deste domingo.

A viúva que o profeta Elias encontra em Sarepta é uma mulher castigada e amargurada, uma mulher sem esperança, condenada a uma morte mais ou menos próxima. É uma mulher que possui apenas um punhado de farinha e um pouco de azeite, sem esperança de mais, na medida em que não chove para poder haver uma renovação do ciclo agrícola e da vida.

Mas é a esta mulher sem esperança, com uma possibilidade de morte próxima, que o profeta pede, não só que lhe dê de beber, mas ousadamente, que lhe faça um pãozinho para ele do pequeno punhado de farinha que ainda resta. Poderíamos ver alguma insensibilidade à situação da mulher, algum egoísmo, alguma da exploração que Jesus critica no Evangelho.

No entanto, este pedido do profeta visa manifestar algo mais importante, como é o poder de alimentar que a viúva ainda tem, visa mostrar como no desespero há ainda alguma coisa que nos pode salvar, que pode fazer recobrar o sentido da vida. Quando parece que já não temos nada, ainda temos algo para partilhar com os outros.

Nos dias que vamos vivendo, se olharmos à nossa volta, quer para o mundo quer para dentro da própria Igreja, encontramos muitas situações que conduzem à falta de esperança, ao desânimo. O futuro parece incerto, o trabalho é precário, as dificuldades acumulam-se e as notícias colocam diante dos nossos olhos casos de violência e injustiça. A alegria parece que desapareceu, deixamo-nos dominar pela intolerância e somos vencidos pela lassidão ao querer fazer algo de novo ou diferente.

É perante esta realidade que ecoam as palavras do profeta Elias à viúva de Sarepta, “não tenhas medo”, confia na palavra que te dirijo, porque o pouco que podes fazer com o pouco que possuis tem capacidade de transformar-se em algo grandioso. E assim, não faltou nem a farinha nem o azeite até que a chuva voltasse, até que a vida retomasse os seus ciclos normais. Quando nos momentos sem esperança fazemos o que podemos com o pouco que temos, algo de extraordinário acontece.

A Palavra de Deus coloca-nos assim perante o convite ao cuidado do pouco, do modesto e do humilde, das pequenas realidades que fazem a diferença, porque o muito sem amor é pouco e o pouco com amor é muito. E como exemplo desta dinâmica podemos tomar os jantares que os casais realizam fora de casa, à luz das velas, com grandes investimentos emocionais e de cenários, mas que depois se diluem na rotina do dia a dia em que o cenário paradisíaco desapareceu e tem que se escutar as queixas do parceiro, contornar os seus atrasos e esquecimentos, viver os detalhes nos quais parece que se perde o amor e o brilho. E é aqui que o amor verdadeiramente se manifesta, na permanência, na resistência a desistir porque as estrelas não brilham como desejávamos.

O reparo que Jesus faz junto do tesouro do templo da pequena dádiva da pobre viúva é uma manifestação e um convite a esta simplicidade e humildade, ao acolhimento da pobreza quotidiana, porque os sinais exteriores e o aparato rapidamente se desvanecem perante a crueza da realidade. Jesus convida-nos a olhar atentamente o pequeno, o impercetível, o dom silencioso onde se manifesta o amor, o dom total que ambas as viúvas realizaram ao entregar o pouco que tinham, mas que era tudo o que tinham.

E quando somos confrontados com a dificuldade desta entrega, desta humildade e simplicidade, da nossa pobreza não podemos deixar de olhar para Jesus preso na cruz, para o seu sacrifício total, de que nos fala a Epístola aos Hebreus que escutámos. Ele entregou tudo, entregou-se todo, por todos, e por causa disso não ficou preso na cruz, mas fez a experiência da ressurreição. Em cada entrega há uma fronteira de libertação, há uma liberdade que se manifesta e nos abre horizontes de plenitude e realização.

Nesta semana que vamos iniciar vamos procurar estar atentos, aos detalhes, aos mais pequenos, aos frágeis, à nossa pequenez e fragilidade, para encontrarmos as pequenas moedas que podemos lançar na construção de um futuro, no despertar da alegria de algum dos nossos irmãos. O nosso pouco com Deus é muito.

 

Ilustração:

Elias e a viúva de Sarepta, de Bernardo Strozzi, Kunsthistorisches Museum, Viena.

domingo, 31 de outubro de 2021

Homilia do Domingo XXXI do Tempo Comum - Ano B

Caros Irmãos

A leitura do Evangelho de São Marcos que acabámos de escutar narra-nos o encontro de Jesus com um escriba, um homem que apresenta a Jesus uma questão pertinente, poderíamos dizer uma questão que habita o coração de cada um de nós, qual é o primeiro dos mandamentos?

Este encontro é precedido por outros semelhantes, outros escribas, doutores da lei e fariseus colocaram igualmente a Jesus questões pertinentes, embora enviesadas de segundas intenções, armadilhas para apanharem Jesus, que não encontramos neste homem desejoso de saber o que o Mestre tem a dizer sobre o primeiro dos mandamentos.

Esta questão não nos pode escandalizar, nem podemos julgar este escriba no seu questionamento, pois habituado a estudar a Lei este homem estava consciente dos 613 preceitos ou mandamentos que deviam orientar a vida social e religiosa do povo eleito, bem como da discussão que geravam sobre a precedência de uns sobre os outros. À data o primeiro mandamento que era considerado era “não matar”, era ele que ocupava o topo da hierarquia.

Conhecedor desta discussão Jesus apresenta ao escriba o que era do seu conhecimento, o mandamento do Deuteronómio que apresenta Deus como único e a consequente obrigação de o amar com todo o coração, alma, entendimento e forças. Mas porque não se resolve tudo nesse único andamento, Jesus apresenta imediatamente o mandamento de amar o próximo como a si mesmo, uma referência do Levítico, o livro das coisas sagradas, se assim podemos dizer.

À questão de um mandamento como primeiro ou cabeça de toda a hierarquia de mandamentos e preceitos Jesus apresenta dois, entrelaçando-os de tal modo que a partir daquele momento não se pode querer amar a Deus sem amar os irmãos e nem se pode amar verdadeiramente os irmãos se não se amar a Deus. Tarefa de equilíbrio difícil de realizar, mas que nos pode ser facilitada se não perdermos de vista a introdução do próprio mandamento de amar a Deus, o primeiro elemento do mandamento, “escuta Israel!”.

Este convite, ou ordenação, aparece-nos constantemente ao longo da revelação de Deus, contrapondo-se ao desejo humano de ver a Deus. É escutando que se pode conhecer Deus, porque ninguém pode viver contemplando-o face a face. Jesus perante o elogio da sua mãe por parte da mulher da multidão responde-lhe que felizes são os que escutam a Palavra de Deus e a colocam em prática. É na escuta que está o segredo, porque escutar é já obedecer, viver o mandamento.

Neste sentido é importante que nos detenhamos sobre a nossa escuta, quer da obra da criação, quer dos nossos irmãos e de nós próprios em primeiro ou último lugar. Como escutamos o que Deus nos vai dizendo pela beleza e harmonia da obra da criação? São Tomás de Aquino apresenta a obra da criação como uma das vias para o conhecimento de Deus. Como escutamos as realidades dos nossos irmãos, que tempo lhes dedicamos e como percebemos neles a presença de Deus, eles que foram feitos à imagem e semelhança de Deus? E como nos escutamos a nós próprios, nos nossos desejos, nas nossas paixões, nas alegrias e nas frustrações? Se não nos conhecermos nem nos amarmos dificilmente poderemos conhecer e amar o outro, dificilmente poderemos entrar em relação com alguém e com Deus, uma vez que não temos o terreno sólido do conhecimento da nossa escuta para lançar os alicerces da relação.

É face a este mandamento de via dupla que Jesus apresenta ao escriba, amor humano versus amor divino, que encontramos a revalorização do lugar dos sacrifícios e holocaustos na vida pessoal, com os outros e com Deus. Amar a Deus com todo o coração, com todo o entendimento e todas as forças e amar o próximo como a si próprio vale mais que todos os sacrifícios e holocaustos. A partir desta revalorização podemos e devemos olhar os modos como amamos e se de certa forma eles não estão adulterados por uma dimensão sacrificial aniquiladora.

Olhemos antes de mais o amor do “eros”, que tantas vezes nos domina e não controlamos, que nos enche de fantasmas os sonhos da noite. Deixamo-nos dominar por ele, como um bicho furioso e indomável, ou pelo contrário reconhecemo-lo como uma força vital, que nos habita e possibilita estar uns com os outros na nossa identidade, que assumimos no seu devido lugar como fonte de prazer que todos necessitamos para viver?

Outra forma de amor, tão querida aos clássicos gregos, é a “philia”, a amizade, predileção, que domina as nossas eleições e preferências, ou as nossas repulsas e aversões, tantas vezes de forma incontrolável, inconsciente e injustificada, conduzindo em algumas circunstâncias a desastres e perversões cujos efeitos são irreparáveis e irreversíveis. As nossas amizades, predileções, estarão bem orientadas para o bem comum, ou pelo contrário são uma manipulação do outro e satisfação do nosso narcisismo?

A estes modos de amor intrinsecamente humanos, Deus oferece o amor oblativo, o chamado “agapê”, um amor que se recebe, um dom, para ser entregue e partilhado com outros sem apropriação nem subversão, um amor que dignifica tanto aquele que o dá como aquele que o recebe; um amor que nasce dum sacrifício e holocausto perfeitos que é a entrega do próprio Deus às mãos dos homens. É com este amor que podemos iluminar e elevar os nossos amores humanos, a nossa dimensão erótica e as nossas amizades, que passarão a estar ao serviço de um bem maior, a glória de Deus na sua obra da criação, em cada um dos nossos irmãos e na nossa própria corporeidade.

Freud perguntou um dia se o amor se podia ordenar como um mandamento. Temos inevitavelmente que responder que sim, porque Deus o oferece a cada um de nós para o crescimento e a plenitude de todas as nossas dimensões existenciais, e tal só acontecerá se acolhermos o amor de Deus e o procurarmos imbuir em tudo o que somos e fazemos. O amor é uma missão, uma tarefa a desenvolver cada dia, para nos elevar divinamente. Na nossa liberdade cabe comandá-lo, ordená-lo, orientá-lo, dar-lhe existência comprometida.

 

Ilustração:

O Amor Divino derrota o Amor Terrestre, de Giovanni Baglione, Gemaldegalerie, Berlim.

domingo, 10 de outubro de 2021

Homilia do XXVIII Domingo do Tempo Comum - Ano B

Caros irmãos

Há umas semanas atrás, alguns dos nossos irmãos sorriram, enquanto outros ficaram perplexos, quando falei do boxe e das suas técnicas ao comentar uma leitura do mesmo Evangelho de São Marcos que hoje escutámos. Certamente acontecerá o mesmo hoje, ao querer falar-vos de salto em altura e salto à vara, modalidades do atletismo, face a este trecho do Evangelho tantas vezes utilizado para o questionamento e discernimento vocacional.

Certamente já todos vimos e alguns até praticaram o salto em altura, em que corremos para ganhar impulso, elevamos o corpo numa determinada inclinação de modo a ultrapassar a fasquia. Contamos connosco próprios, com o nosso corpo, com o nosso esforço, a técnica aprendida e bem utilizada.

O homem que se apresenta diante de Jesus é um atleta, como dirá São Paulo, todos corremos para ganhar o prémio; e este homem atleta deseja saltar mais alto, ultrapassar uma fasquia que sabe bem elevada, a vida eterna, e para isso veio pedir ajuda, instrução junto de Jesus.

Surpreendentemente Jesus diz-lhe que tem que mudar de modalidade, de exercício, tem que deixar de saltar em altura e passar a saltar à vara e mais surpreendentemente diz-lhe que essa vara são os homens e mulheres seus irmãos, a vara que o impulsionará para ultrapassar a fasquia bem elevada.

No enunciado que Jesus apresenta ao homem desejoso de prémios encontram-se os mandamentos que dizem respeito ao cuidado do outro, à relação com o outro, como o não matar, não levantar falso testemunho, honrar pai e mãe, realidades tantas vezes frágeis e desafiantes.

O homem atleta pratica já estas técnicas, e desde bem cedo, desde a sua juventude e, no entanto, a fasquia continua alta e aparentemente inacessível. Verdadeiramente há algo que lhe falta, e que Jesus lhe vai apresentar como segredo para a realização do seu objectivo.

Acredito que já todos vimos alguma vez um atleta praticar o salto à vara, e acredito também que todos ficamos surpreendidos como a vara se verga ao peso do atleta e não quebra, e como o impulsiona para o salto final que o leva a ultrapassar a fasquia. É quando parece que a vara se vai partir que o atleta coloca a maior confiança, se deixa levar pelas forças que lhe são externas.

E é disto que Jesus fala ao homem rico que deseja a vida eterna ao dizer-lhe que venda tudo, dê aos pobres e o siga, ou seja, que mais que levar os outros consigo, que ter cumprido escrupulosamente os mandamentos, se deixe levar pelos outros num despojamento total, numa entrega confiante, no risco da fragilidade em que parece que o apoio se vai quebrar.

A este homem que deseja a vida eterna Jesus não apresenta preceitos ou mandamentos novos, mas apresenta os homens e as mulheres, com as sua fragilidades e virtudes e a confiança depositada em cada um deles, como o meio para alcançar os objectivos e ultrapassar a fasquia mais elevada.

Face à incompreensão da proposta por parte do homem rico, Jesus afirma a grande dificuldade de um rico entrar no reino de Deus, não como uma sentença fatalista contra a riqueza ou o património, mas como um alerta necessário e condutor ao despojamento, à liberalidade, à confiança em Deus e nos irmãos.  

Numa cultura em que a riqueza e os filhos eram considerados como bênção de Deus, Jesus inverte a relação de forças e diz que a bênção é verdadeiramente a liberdade de não possuir, de acolher as coisas como se não fossem suas, assumindo desta forma as palavras do livro da Sabedoria que escutámos na primeira leitura na qual nos é dito que todos os bens e riquezas nos chegam pela mão da sabedoria, por esse despojamento e esvaziamento para que Deus possa estar presente.

É um processo verdadeiramente difícil, mas que não podemos deixar de tentar praticar, como qualquer atleta que se sujeita aos treinos e disciplina, que procura superar-se a si mesmo, para alcançar os mais altos prémios. Nesta preparação e treino, a leitura e compreensão da Palavra de Deus é fundamental, pois como nos diz a Epístola aos Hebreus, a palavra é penetrante, viva e eficaz, capaz de ir até aos pontos mais íntimos para nos revelar a graça de Deus nas nossas vidas.

Então perceberemos as riquezas que nos são concedidas, os irmãos e pais que deixámos e nos foram devolvidos, as riquezas que possuímos sem que elas nos possuam, porque vivemos na liberdade da confiança em Deus. Deixámos tudo por Jesus, mas nele tudo nos foi devolvido com outra dimensão, numa relação de liberdade.

 

Ilustração:

Salto à vara de Théo Mancheron, Campeonato de Atletismo de França, Stade Charlety, Paris, 2013. Wikimedia Commons.

domingo, 19 de setembro de 2021

Homilia Domingo XXV do Tempo Comum - Ano B



A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos apresenta-nos uma situação delicada, constrangedora, pois os discípulos são questionados por Jesus sobre o que conversavam no caminho e nenhum deles lhe responde, nenhum tem a coragem de lhe dar uma satisfação.

Pode parecer-nos, de facto, uma situação estranha, mas se tivermos em conta que pouco antes, uns versículos antes no mesmo capítulo do Evangelho, Jesus coloca a mesma questão, e face à resposta dos discípulos os corrige de forma um pouco ríspida, compreendemos este silêncio.

No momento anterior Jesus desce do monte, após a transfiguração, e encontra os discípulos a discutir devido à incapacidade de curarem um jovem epilético que lhes tinha sido apresentado, agora discutem entre si a primazia entre eles, inconscientes da sua pequenez e limitações, das suas incapacidades, feridos na sua susceptibilidade e no seu ego.

E todos sabemos como as feridas no ego, na nossa susceptibilidade, são bloqueadoras do diálogo, da palavra que liberta e cura. Todos nós já fizemos essa experiência, já passámos por situações que nos encerram no silêncio e no mutismo, algumas vezes bastante expressas nas feições do nosso rosto.

Perante este impasse, este silêncio, simpaticamente Jesus não volta a interrogar os discípulos, mas sentando-se no meio deles apresenta-lhes uma criança e começa a ensiná-los sobre a primazia a partir da humildade e do serviço, ao contrário do poder que eles anteriormente tinham manejado e sobre o qual tinham ancorado a sua discussão. Quem quiser ser o primeiro deverá ser o servo de todos.

Pode parecer estranho, mas nesta narração e no seu desenvolvimento encontramos aquilo que encontramos na prática do boxe, um conjunto de técnicas ou exercícios que Jesus pratica e que ensina aos seus discípulos a praticar, ajudando-os a perceber a necessidade de se esquivar, proteger, de encaixar, aguentar, e responder de forma precisa e com impacto.

Neste sentido, o texto diz-nos que Jesus caminhava pela Galileia, mas não queria que se soubesse, como se Jesus se esquivasse aos encontros e golpes que o poderiam impedir de realizar o bom combate que deveria realizar. Os Evangelhos não deixam de nos apresentar este cuidado de protecção pessoal de Jesus e aos próprios discípulos Jesus recomenda que quando não forem bem recebidos numa cidade ou forem perseguidos devem partir para outro lugar. Como nos recorda o Eclesiastes há um tempo para tudo, para combater e para se preparar para o combate.

Por outro lado, Jesus manifesta de forma perfeita o seu poder de encaixe, de modo particular nas discussões e contendas com os fariseus e os doutores da Lei. Jesus aguenta as questões, faz corpo com os seus adversários, não desarma. E mesmo com os discípulos tão pouco desarma e deixa de fazer corpo, quer interpelando-os sobre o que discutem, quer aguentando o silêncio e a falta de resposta. Por vezes é necessário dar um passo atrás, para dar dois em frente.

E por fim Jesus responde, de uma forma impactante, derrubadora do outro, mas não com violência, nem agressividade, mas tantas vezes de uma forma suave como uma pluma que derruba o peso e a brutalidade da força do outro. Uma criança sem qualquer força ou poder colocada no centro da roda do ávidos de poder é um murro no estômago, um golpe que leva ao tapete.

Por isso, aos discípulos Jesus pede que deixem ser o Espírito a falar por eles, ou seja, que deixem o Espírito gerar as palavras que podem de facto afectar o outro, provocar no sentido de chamar à palavra, de ser um apelo à mudança, porque a sabedoria que vem do alto é pura e pacífica, compreensiva e cheia de misericórdia, como nos recordava a Carta de São Tiago que escutámos na segunda leitura.

Fazer caminho com Jesus, procurar ser fiel e justo à sua imagem, ser o mais pequeno de todos no serviço, provoca inevitavelmente a inveja e a cobiça, maquinações e rivalidades, como nos alertavam o Livro da Sabedoria e a Carta de São Tiago. São frutos das paixões e desejos mundanos que habitam o coração do homem, forças que inviabilizam a paz no coração e a recta apreciação dos dons e graças de cada um, oferecidos por Deus não só para a realização pessoal, mas também para a participação na realização dos outros.

Procuremos pois, como também nos recorda o Mestre Eckhart, ser cada vez mais humildes, na medida em que ao crescermos em humildade crescemos também em espaço para Deus habitar, e consequentemente beneficiamos em maior grau dos seus dons e graças; mas procuremos igualmente estar conscientes que há um tempo para tudo debaixo do sol, um tempo para recuar, um tempo para aguentar, um tempo para responder e dar um passo em frente, e em todos os momentos e para todos os momentos uma necessidade enorme de paz no coração.

 

Ilustração:

Jesus Cristo e a criança, de Carl Bloch, Igreja de São Nicolau, Holbaek, Dinamarca.

 


domingo, 12 de setembro de 2021

Homilia Domingo XXIV do Tempo Comum - Ano B

Queridos irmãos

Uma vez mais encontramos Jesus a norte do território de Israel, uma zona de confluência de povos, culturas e religiões; e uma vez mais em caminho, como se não tivesse um lugar onde reclinar a cabeça e o procurasse.

E é neste caminho, neste processo constante de mudança, que Jesus coloca a questão sobre a sua pessoa, do reconhecimento da sua identidade, porque afinal é num processo em desenvolvimento, é sempre a caminho, que se colocam as questões fundamentais e se encontram as respostas.

Esta itinerância da vida de Jesus é para nós um exemplo e um incentivo a não perder de vista esta necessidade de nos pormos e nos encontrarmos em caminho, porque o sedentarismo e o fixismo acarretam consigo algo de mortal. Sabemos pela medicina como o sedentarismo físico conduz a doenças graves e mortais. O sedentarismo espiritual provoca o mesmo. E se para combater o sedentarismo necessitamos mover-nos, praticar desporto, para o sedentarismo espiritual necessitamos dispor-nos à dinâmica da conversão.

E é desta dinâmica que a leitura do Evangelho de hoje de São Marcos nos dá um bom exemplo, na medida em que apresenta algumas ideias que são populares sobre a pessoa de Jesus, a noção que Pedro tem e apresenta mais ou menos como porta-voz do grupo dos apóstolos, e a verdade que Jesus revela e entra em confronto com o que foi apresentado.

Quando Jesus pergunta aos apóstolos o que a multidão diz dele, não está interessado num resultado de uma sondagem de popularidade, mas podemos dizer que procura definir a base a partir da qual pode avançar para a revelação da sua verdadeira identidade.

Quando pergunta a Pedro e este responde que Jesus é o Messias, dá um passo mais no sentido da verdade dessa identidade, mas porque a afirmação de Pedro pode conduzir a compromissos ambíguos, Jesus imediatamente proíbe que seja revelado a outros o que tinha sido proclamado pela boca de Pedro. Este cuidado de Jesus prende-se com a imagem e expectativas gerais do Messias, uma imagem monárquica, revolucionária, uma espécie de substituto de César.

Quantas vezes tal não acontece connosco e na nossa relação com Deus; procuramos um Deus, um Jesus que nos satisfaça, que responda às nossas expectativas, que nos conforte nas nossas frustrações e desaires, como um analgésico ou um multivitamínico que nos alivia as dores ou colmata as carências vitamínicas.

Mas a verdade da identidade de Jesus, da sua condição de ungido e enviado por Deus Pai, é bastante diferente, uma identidade que se manifesta em processo, em caminho, em encontro e despojamento, e que apenas se revelará na sua total verdade em Jerusalém. E Jesus anuncia e prepara os discípulos para tal, ainda que seja um estrangeiro, um pagão centurião romano que irá proclamar que aquele supliciado na cruz é “verdadeiramente filho de Deus”.

É no desastre total, no aniquilamento total, que acontece a revelação plena da pessoa e identidade de Jesus, quando entrega a sua vida por amor, porque não são os outros que lha tiram, mas é ele que a dá, de forma soberana e plena.

Face a este mistério da revelação da pessoa de Jesus, da sua verdade, também nós somos confrontados com os espaços e os modos de revelação da verdade de nós próprios e das nossas vidas e compromissos. É no despojamento das expectativas, das falsas imagens e das máscaras, que nos encontramos verdadeiramente uns com os outros no que verdadeiramente somos. A verdade da nossa identidade e pessoa passa inevitavelmente pela cruz na qual nos encontramos uns com os outros.

Quanto nos falta descobrir e desvelar de nós próprios e dos nossos irmãos nos encontros e desencontros da vida, e quanto nos falta encontrar da pessoa de Jesus nos nossos irmãos para podermos dizer por nós próprios quem ele é para nós.

E neste sentido não podemos passar ao lado das palavras de São Tiago, que nos confrontam com a necessidade de equilibrarmos a nossa fé com as obras e as nossas obras com a fé. Uma e outras estão profundamente ligadas, na medida em que a fé nos faz descobrir a presença de Cristo nos irmãos, com as suas misérias e fragilidades, que tantas vezes são espelhos das nossas, e com os irmãos descobrimos a presença amorosa de Deus que vem ao encontro das nossas mesmas fragilidades e misérias com a sua misericórdia.

É neste acolhimento mútuo, num caminhar conjunto de descoberta e desvelamento, que somos capazes de dizer quem é o ungido de Deus, o nosso Messias Jesus, numa resposta pessoal e única, numa resposta que não deixa de estar em construção e desenvolvimento constante até vermos Deus face a face.

 

Ilustração:

Jesus conversa com os seus discípulos, de James Tissot, Brooklyn Museum, Nova York.

 

domingo, 9 de maio de 2021

Homilia Domingo VI da Páscoa - Ano B

Caros Irmãos

Estamos a celebrar o sexto domingo da Páscoa, um domingo que podemos denominar do Amor, pois a leitura da Primeira Carta de São João diz-nos que Deus é amor e depois o Evangelho, igualmente de São João, convida-nos a viver nesse amor.

São textos extremamente ricos, cada versículo permite-nos uma meditação longa, uma reflexão profunda sobre a nossa vida e a forma como estamos a viver o amor e no amor, e por isso, porque nos podemos dispersar, convém que nos centremos em algumas notas, em apenas alguns elementos para iluminar e orientar a nossa vida destes dias.

Assim, e antes de mais, olhamos para o texto dos Actos dos Apóstolos e para essa grande e maravilhosa constatação que Pedro faz sobre a acção do Espírito Santo, uma acção que precede os gestos formais e rituais que acreditavam necessários para a sua recepção. Na casa de Cornélio o apóstolo Pedro verifica que o Espírito Santo tinha já actuado naquele pagão, sem qualquer intervenção da sua parte. O Espírito Santo precede-os, tal como Jesus lhes tinha anunciado que os precederia na Galileia depois da ressurreição.

O Evangelho de São João ao dizer-nos que não fomos nós que escolhemos Jesus, mas que foi o Pai que nos escolheu para amigos dele, somos confrontados com a mesma ideia e precedência, o amor de Deus, o Espírito Santo, precede-nos na nossa missão, na nossa vida, nos nossos gestos e palavras.

E desta realidade e afirmação resultam consequências inevitáveis para a nossa vida, e sobretudo quando vivemos momentos de sofrimento, de instabilidade, de insegurança ou incerteza; Deus vai à nossa frente, precede-nos e de todas as maneiras espera que o encontremos, que no meio da tempestade façamos a experiência do seu amor presente e actuante. Como temos que abrir bem os olhos e o coração para nos encontrarmos com o seu amor.

Um amor que é o maior mistério da nossa condição de cristãos, um amor que revoluciona todas as nossas concepções e imagens de Deus. Quem poderia imaginar que Deus é amor? Só alguém que pôde fazer a experiência desse amor, que o pôde sentir quando encostou a sua cabeça sobre o peito do mestre na última ceia, só ele nos poderia fazer esta afirmação e revelação.

Mas o discípulo amado, que conhece o coração de Jesus, que o sentiu bater, conhece também o coração dos homens e o que eles são capazes de fazer com o amor, de como são capazes de rebaixar ao seu nível mais medíocre as realidades mais elevadas e sublimes. A experiência da condenação de Jesus e da sua morte, a morte de um inocente, é a prova cabal para o discípulo amado do que se pode fazer com aqueles que amam e vivem na verdade.

O amor pela sua sublimidade e fragilidade é aquela realidade que mais facilmente pode ser transformada à nossa proporção e dimensão, que mais facilmente pode ser adulterada, que pode resultar numa contrafacção. E quer queiramos ou não, mais ou menos todos vivemos alguma espécie de contrafacção do amor; quer seja pelo sentimentalismo passivo, que não nos leva a empenhar em transformar a realidade; quer seja pelo activismo sem alma, em que realizamos o trabalho sem paixão, sem sentido de cooperação na obra de Deus; quer seja pela vagabundagem afectiva, procurando ternura e afecto em qualquer outro sem qualquer compromisso comum; quer seja pelo sensualismo desenfreado, explorando o prazer que no dá o nosso corpo sem qualquer dignidade; quer seja pela possessividade narcisista, em que buscamos o outro como uma propriedade e para nossa única satisfação.

Todas estas experiências de amor, contrafacções do amor levam à destruição do verdadeiro amor, tanto naquele que está chamado a dá-lo como naquele que é convidado a recebê-lo. São as experiências do amor na nossa dimensão finita, mortal, e que Jesus no convida a ultrapassar, a procurar que se assemelhem cada vez mais ao amor de Deus, que se entrega sem qualquer exigência, sem esperar nada em troca, apenas para o bem do outro, para o crescimento e plenitude do outro, para que o outro seja amigo e não servo, para que a alegria habite em nossos corações de uma forma completa como habitava no coração de Jesus.

Este convite de Jesus a permanecer no seu amor, a que nos amemos uns aos outros como ele nos amou, é um convite à transformação, porque ou nos deixamos transformar pelo amor, pelo amor de Deus, e com ele nos dignificamos e alcançamos a alegria plena, ou rapidamente transformamos o amor, adulterando-o, e dessa forma conduzimo-lo às dimensões mais vis e aviltantes da nossa condição de homens e mulheres.

E se o mandamento do amor que Jesus nos apresenta é exigente, é porque menos que tudo é intolerável tanto para nós como para Deus; no amor não nos contentamos com pouco e Deus também não, afinal fomos feitos à sua imagem e semelhança e as nossas exigências amorosas não são mais que espelho das amorosas exigências de Deus.

O cardeal suíço Charles Journet escreveu que se Deus nos dá mais um dia de vida é porque tem necessidade ainda de um acto de amor nosso. Procuremos, pois, nestes próximos dias aproveitar cada ocasião para viver e realizar esse acto de amor, imbuindo o nosso trabalho, as nossas amizades, a nossa ternura, os outros que partilham a vida connosco, com o amor de Jesus, o amor que nos alegra desde o mais fundo do coração.

 

Ilustração:

1 – A Última Ceia, Anónimo, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.

domingo, 18 de abril de 2021

Homilia Domingo III da Páscoa - Ano B

Queridos irmãos

As leituras que escutámos na Liturgia da Palavra são hoje trespassadas pela mesma ideia do testemunho, como nos dizia o Evangelho de São Lucas no seu términus, “vós sois testemunhas de todas estas coisas”. Mas testemunhas de quê?

Podemos pensar numa dimensão histórica e perceber que os discípulos de Jesus foram e são testemunhas da sua vida pública, que sabemos foi bastante curta, à volta de três anos. Nesta vida pública eles foram também testemunhas, como dizia São Pedro, nos Actos dos Apóstolos, da sua condenação, do facto de ser trocado por um assassino e condenado inocentemente, foram testemunhas do seu suplicio e da sua morte.

No entanto, quando passamos aos momentos seguintes, à experiência da ressurreição, o testemunho é difícil de discernir, afinal o que os discípulos puderam ver foi apenas o túmulo vazio, o desaparecimento do corpo daquele que tinha sido crucificado. Temos também as palavras e as experiências das mulheres que dizem ter visto Jesus, mas sabemos igualmente como esse testemunho foi tido em pouca conta, assim como o dos discípulos que o percebem ao partir do pão.

Há assim a necessidade de um outro tipo de experiência, para passar da mera recordação, das memórias vividas com saudade, para ultrapassar a frustração de um vazio onde parece que flutua um espírito, um fantasma. E é assim que Jesus se faz presente no meio do cenáculo, na reunião dos discípulos medrosos e incrédulos, para proporcionar essa experiência.

E tal como acontece com Tomé, o Evangelho de São Lucas que escutámos hoje, mostra-nos um Jesus que convida ao toque, um Jesus que não só se dá a ver, mas que se oferece igualmente ao tocar, convidando-nos deste modo a ultrapassar a concepção de uma ideia, de uma memória ou recordação que se pode ter dele. Jesus faz-se presente de modo a poder ser tocado.

E paradoxalmente o convite de Jesus ao toque passa pelas feridas, como se o seu corpo necessitasse ser novamente entregue aos homens, tal como foi entregue na cruz, ali à violência e ao ódio, aqui à carícia da ternura e do amor. A proximidade física que Jesus oferece abre essas duas possibilidades, a da agressão ou a da carícia. Como os discípulos têm dificuldade em acreditar no que ouvem e veem, de facto esses sentidos podem enganar, a oferta do tocar abre à dimensão da verdade da realidade, dá a possibilidade de uma relação, uma nova relação, um outro testemunho.

Tal como aconteceu com Tomé, que não sabemos se tocou ou não as feridas de Jesus, também São Lucas não nos diz se os discípulos ousaram tocar o corpo do mestre, apesar da alegria, e por isso a necessidade e o pedido de Jesus de lhe darem de comer, expressão de um aprofundamento da compreensão, da relação, para o verdadeiro testemunho poder acontecer.

É a esta compreensão que conduzem as palavras de Jesus, que certamente não tocaram no corpo ressuscitado do Mestre, mas que foram capazes de ler o que estava escrito no corpo de Jesus. Ao explicar-lhes que tudo o que tinha acontecido estava escrito nos livros de Moisés, dos Profetas e dos Salmos, Jesus oferece aos discípulos o pergaminho do seu corpo para que eles possam pessoal e comunitariamente fazer a leitura dos acontecimentos e dar testemunho disso.

Ao oferecer aos discípulos as marcas que os carrascos imprimiram no seu corpo, as letras do ódio e da violência, daquilo que os homens podem fazer uns aos outros, letras escritas com sangue, Jesus oferece também as marcas do amor e da misericórdia, as letras impressas a ouro por Deus Pai sobre esse sangue inocente derramado para a salvação de todos. O Verbo feito carne da nossa carne, como nos diz São João, é agora carne que se faz palavra, testemunho de amor. O corpo de Jesus ressuscitado é assim um livro a ler, um livro de vida.

Estamos assim face a face à inevitabilidade da necessidade de entrar na intimidade de Deus pelas suas feridas, pelo lado aberto, do qual como nos diz também São João brotou sangue e água, como estamos face a face à necessidade de Deixar Deus entrar em nós pelas nossas feridas. Jesus não se apresenta aos discípulos como um herói cheio de cicatrizes das suas lutas, mas apresenta-se como um ferido, com as suas chagas abertas, para nos dizer que não espera outra coisa de nós. Deus nãos nos espera como super-heróis, mas como feridos do caminho, aos quais como bom samaritano coloca aos ombros para introduzir na casa de repouso do Pai.

Com isto, a oferta de Jesus não é a da exaltação da vulnerabilidade, nem uma ideologia da menoridade ou fragilidade, mas um convite à aceitação, ao acolhimento das nossas feridas, dos nossos falhanços, que podem ser perfeitamente, e muitas vezes assim acontece, encontros com Deus através das brechas do nosso orgulho e da nossa soberba. Deus deixa-se encontrar nas nossas feridas, faz-se presente e oferece-se, tal como aconteceu no cenáculo com os discípulos.

Quando contemplamos as rugas que marcam as faces dos nossos avós, dos nossos mais velhos, percebemos o passar dos anos, a degradação do corpo humano, mas somos incapazes de perceber o quanto encerram de amor, o quanto são marcas da obra da vida com tudo o que ela acarreta e comporta, alegrias e tristezas, dores e paixões. Impressiona como muitas vezes no momento da última despedida mascaramos os que nos são queridos, escondendo as suas rugas, as marcas que a vida deixou inscritas no pergaminho da pele, o seu testemunho, como se não tivessem vivido.

O Livro do Apocalipse recorda-nos que no fim dos tempos o livro da vida será aberto, o livro onde cada um terá inscrito o seu nome único e apenas conhecido do próprio de acordo com a sua vida; uma vida com uma dimensão dramática inevitável, mas também com uma grande dimensão de festa e alegria se soubermos e deixarmos Deus entrar nas nossas feridas, nos nossos desaires, se nos deixarmos tocar por Jesus ressuscitado como ele se nos oferece a ser tocado. E é de tudo isto que Jesus nos convida a ser testemunhas, das suas feridas e das nossas feridas, do seu amor e do nosso amor.

 

Ilustração:

1 – As dúvidas de Tomé, de Bela Iványi-Grunwald, Galeria Nacional da Hungria.  

domingo, 11 de abril de 2021

Homilia Domingo II da Páscoa

Queridos irmãos

Há uns tempos atrás, antes desta pandemia e da impossibilidade de circularmos livremente, um amigo, presente aqui entre nós, fez uma visita ao Mosteiro de São Miguel de Refojos em Cabeceiras de Basto. Durante a visita guiada, de que estava a usufruir, enviou-me algumas fotografias, (uma delas a que ilustra esta publicação) para me perguntar sobre a identificação correcta da figura dominicana representada no quadro ali existente do episódio que hoje escutámos no Evangelho; pois, não só na ficha de identificação do quadro, como nas palavras da guia, na representação pictórica estava representado São Domingos, quando de facto quem está lá representado é São Tomás de Aquino.

Podem imaginar como fiquei surpreendido, curioso sobre o primitivo e original espaço de proveniência daquela belíssima pintura, e diante da questão do meu amigo sobre o porquê da presença de São Tomás de Aquino naquela representação, a minha primeira associação foi a da semelhança de nomes em latim.

Contudo, hoje, e depois de ler um bocadinho do comentário de São Tomás sobre o Evangelho de São João e mais concretamente sobre este trecho que escutámos há associações que justificam a sua representação e que inevitavelmente quero partilhar convosco, para que ao visitardes São Miguel de Refojos e ao parardes diante daquela bela pintura possais ler o que ela desde o primeiro momento nos quis dizer.

No entanto, antes de entrarmos nesta leitura, observemos um pouco o que nos diz o Evangelho sobre a situação da comunidade dos discípulos, porque as palavras de Jesus na primeira aparição vão ser-nos importantes na leitura da representação do quadro.

Encontramos um conjunto de discípulos fechados em casa, com medo, uma comunidade bastante diferente da que nos é apresentada pelos Actos dos Apóstolos que escutámos na primeira leitura. Aqui ainda não temos um só coração e uma só alma, ainda não era tudo comum, ou se alguma coisa havia em comum era a suspeita, a dúvida, a divisão e a incredulidade.

Afinal quem tinha acreditado na palavra das mulheres que diziam ter encontrado Jesus? Alguns discípulos tinham até já feito uma debandada, como aqueles que vão reconhecer Jesus em Emaús. E a dúvida e o pedido de Tomé são o sinal mais evidente deste clima de suspeição, de necessidade de ver e tocar, do mal-estar que se vivia no conjunto do grupo e na comunidade.

É por causa deste mal-estar, desta divisão e suspeita, que a saudação de Jesus em cada uma das aparições é a saudação da paz, um convite a que a sua paz esteja no coração de cada um, porque só esta paz pode pôr fim à divisão e à suspeita, à falta de confiança uns nos outros. É uma saudação que nos é dirigida em cada domingo, cada dia que celebramos a Eucaristia, em cada momento como um convite a superar as nossas dúvidas e divisões, porque Deus sabe que o medo e a suspeita são instrumentos do mal.

E com o coração pacificado podemos receber o Espírito Santo, o espírito que o Senhor ressuscitado soprou sobre cada um deles, e desta forma, em paz e com o poder do Espírito podemos recuperar e garantir a unidade da comunidade, podemos construir a comunidade nova, a comunidade de um só coração e uma só alma, onde tudo é comum e que parte para a evangelização sem temor e com ousadia como aconteceu depois com os discípulos.

Uma ousadia que está patente em Tomé, não só quando questiona e duvida do testemunho dos seus companheiros, mas que já antes habitava o seu coração, pois não podemos esquecer que quando Jesus anuncia que vai ser morto em Jerusalém, Tomé é aquele que desafia os companheiros a ir com o mestre para também serem mortos. Tomé é um radical.

Contudo, o Evangelho diz-nos que Tomé é o Dídimo, ou seja, o gémeo, ainda que em lugar algum se diga qual é o seu gémeo, talvez porque somos todos nós, nos representa a todos nós, nas nossas dúvidas e petições, no nosso desejo de tocar Jesus.

E neste sentido, e retomando novamente o quadro de São Miguel de Refojos, podemos dizer que o gémeo de Tomé é São Tomás de Aquino, um dos muitos que Tomé pode ter, e por isso ali está representado naquele quadro. O grande teólogo medieval considera com grande admiração Tomé como um bom teólogo, o bom teólogo, à semelhança de São João Evangelista considerado também o teólogo, porque não se limitam ao que lhes é dado experimentar pelos sentidos, querem mais, vão mais longe na sua experiência de Deus.

O que é permitido tocar a Tomé são as feridas de um homem morto, mas que aparece vivo no meio dos seus amigos. Já por si é uma experiência extraordinária, excepcional, é a experiência pessoal do ressuscitado. Mas Tomé vai mais longe, mergulha numa profissão de fé ao dizer “meu Senhor e meu Deus”, que para São Tomás de Aquino são uma profissão de fé e uma confissão na verdade da humanidade de Cristo e ao mesmo tempo uma profissão de fé e uma confissão de fé na divindade de Jesus. O superficial leva ao profundo, os sentidos ao espírito.

E é interessante observarmos que no quadro de São Miguel de Refojos é a própria mão de Cristo que conduz a mão de Tomé a tocar a chaga do lado. No quadro certamente mais conhecido desta representação, o de Caravaggio, vemos o discípulo introduzir os dedos na ferida de Jesus. Tais pormenores levam-nos novamente a São Tomás de Aquino que considera o teólogo como aquele que não se satisfaz com o superficial, com a observação desde o exterior, mas quer aprofundar e conhecer o mistério desde o interior.

A mão que conduz à ferida de Jesus, os dedos que Caravaggio pinta no interior da chaga, são representações do Espírito Santo, conhecido também como o dedo de Deus, é ele que permite passar dos sentidos à fé, da experiência do ressuscitado à proclamação da fé “meu Senhor e meu Deus”. Só o Espírito Santo nos permite aprofundar nos mistérios de Deus, experiência que não exclui nem invalida a necessidade de sinais. Os discípulos necessitaram ver para acreditar.

E se São Tomás de Aquino aparece representado ao lado de Tomé é porque também ele ao cantar o mistério da Eucaristia não deixou de ter em conta esta necessidade de sinais, é por meio deles que nos podemos aproximar do mistério, necessitamos todos de sinais, para perceber e viver a Eucaristia, para perceber e viver a Igreja como corpo místico de Cristo.

E paradoxalmente fazemos esta experiência na nossa realidade humana quando depois de uma cirurgia mostramos as cicatrizes que nos ficaram na pele; como se o outro se não tiver oportunidade de ver lhe fique vedado o conhecimento real, de certa maneira a participação no nosso mistério de passar por uma experiência de morte.

Por isso ao celebrarmos a Divina Misericórdia neste domingo, esta porta que Deus nos abre de o conhecermos no seu amor infinito por cada um de nós, somos desafiados na nossa fé e caridade. Antes de mais nos juízos que tantas vezes fazemos sobre os outros. O que conhecemos das suas feridas, até onde as tocámos, para podermos dizer alguma coisa? Por outro lado, na unidade das nossas comunidades. Quantos medos e suspeitas nos impedem a unidade e limitam a missão? E por fim, na nossa própria formação. Quantas dúvidas e questões não deixámos que nos afastassem em vez de nos aproximarem do mistério de Deus?

Somos todos gémeos de Tomé, nas dúvidas e questões, na necessidade de ver e tocar, mas com a luz e a força do Espírito Santo possamos ser do grupo dos bem-aventurados que o Senhor chama porque acreditaram sem terem visto, porque à semelhança de Santa Catarina de Sena quanto mais aprofundavam mais desejavam aprofundar.

 

Ilustração:

1 – A Incredulidade de São Tomé, São Miguel de Refojos, Cabeceiras de Basto.

2 – A Incredulidade de São Tomé, Caravaggio, Sansscouci Picture Gallery, Potsdam.

   

domingo, 21 de março de 2021

Homilia Domingo V da Quaresma - Ano B

Queridos Amigos

A leitura que escutámos da Epístola aos Hebreus diz-nos que Jesus durante a sua vida mortal dirigiu preces e súplicas àquele que o podia livrar da morte. O momento que mais profundamente recordamos esta vivência e petição de Jesus é certamente o do momento da agonia de Jesus no jardim das oliveiras: Pai se for possível que se afaste de mim este cálice. Mas houve outros e o Evangelho de São João que hoje escutámos apresenta-nos outro.

Uma leitura e um momento que nos colocam perante um facto inevitável, uma realidade profundamente e intrinsecamente humana que todos nós vivemos e que Jesus não pôde também deixar de viver como verdadeiro homem.

Vivemos um processo de desenraizamento, usando uma imagem muito bíblica, vivemos em constante trabalho de parto. Desde que nascemos, ou melhor, desde que fomos concebidos vivemos num constante nascimento, num constante processo de partida, como se o lugar, o tempo e o modo em que nos encontramos fosse uma terra de exílio, um Egipto que temos que deixar para trás.

E paradoxalmente, vivemos este processo de forma descontinuada, como momentos de pausa para respirar fundo, e outros momentos para fazer força, muita força para que a vida nova veja a luz. As mães que estão aqui presentes sabem muito bem do que estou a falar. E há a dor, a angústia, o sofrimento, mas depois a alegria, a vida nova que se pode tomar nos braços. E nós homens, muitas vezes estamos lá ao lado para cair para o lado.

Jesus sabe como tudo isto funciona, como funcionamos, como somos capazes de fazer força, outras vezes como necessitamos de parar para respirar, de como estamos feitos para a vida e uma vida nova nos espera; mas para além disso, para além desse saber, ele sabe também que nenhuma dor lhe será poupada, que vai sofrer também as dores do parto de uma nova vida, que vai dar à luz, não um homem ou uma mulher, mas uma humanidade.

E por isso as suas palavras de que tem a alma em sofrimento, perturbada, em angústia; é uma manifestação da solidariedade para com as nossas dores, as nossas angústias e sofrimentos, mas é igualmente a manifestação da nossa profunda humanidade animal, que como bichos acossados, encerrados numa armadilha, procuram uma forma de escapar, um meio de sobrevivência. Face ao horror da morte como podemos escapar dela?

E paradoxalmente, inexplicavelmente, nós acreditamos num Deus que se deixou pregar numa cruz, que se deixou matar, que suportou o sofrimento. Como é que podemos acreditar? Jesus não nos livra da morte, da experiência da morte, coloca-a bem diante dos nossos olhos. Não é mais fácil escolher outro Deus, um ídolo que é um bezerro de ouro, dizermo-nos ateus?

E contudo, no meio desta trama da nossa vida, em resposta ao pedido para que o Pai glorifique o seu nome, uma voz que se faz ouvir do céu: já o glorifiquei e tornarei a glorificar. Na tua dor, na tua angústia, nesta terra de exílio e escravidão, és o meu filho muito amado, tens a garantia do meu amor de forma imutável, eterna, inquestionável.

Não são já os sacríficos antigos, os holocaustos, uma lei exterior que te governa e coloca em relação comigo, é a lei que inscrevi no teu coração, que gravei no mais íntimo do teu ser. Eu sou o teu Deus e tu és o meu povo, o meu filho, sois meus filhos. Eu amo-vos e espero apenas o vosso amor.

A assim, a vida perdida em amor, convertida em desapego e desenraizamento, em constante processo de nascimento, é uma vida válida, é uma vida para a vida eterna, como dizia o frei Bernardo uma vida vivida com dignidade garante-nos a dignidade eterna.

Jesus não nos propõe uma escapatória à morte, ele experimentou-a por cada um de nós e para cada um de nós, para nos propor uma caminhada de vida, para converter o nosso desenraizamento, para que a nossa partida deste exílio seja vivida sem amargura e azedume.

Não se trata de odiar a vida, mas amá-la com tudo o que ela encerra, vivê-la como única, irrepetível, inseri-la na longuíssima e eterna vida de Deus.

Como rezávamos no Salmo, Senhor, cria em mim um coração puro, um espírito firme, sustenta-me com um espirito generoso, para viver na tua presença, para viver o teu espirito de santidade, para ser luz nos caminhos dos homens nossos irmãos.   


Ilustração:

1 – Jesus ensinando a multidão, gravura de Heinrich Hofmann.

domingo, 14 de março de 2021

Homilia Domingo IV da Quaresma - Ano B

Queridos Irmãos

Continuamos a nossa caminhada quaresmal, a nossa preparação para a celebração da Páscoa, que em cada domingo da Quaresma se desenha no horizonte, tal como acontece hoje na leitura do Evangelho de São João e nesta cor festiva que quebra o roxo penitencial e nos convida a uma renovada alegria, a um espírito renovado da conversão. É a alegria, é a festa que nos espera ao fim desta caminhada.

A história de Nicodemos que escutámos na leitura do Evangelho de São João é a história de todos e cada um de nós, uma história de homens e mulheres que se encontram na noite, ainda que povoada de conhecimento e de sabedoria, mas obscura, sem a verdadeira sabedoria que dá a luz para o sentido da vida Nicodemos vem de noite, mas tal como lhe diz Jesus, ele é um mestre, é alguém que transporta um conhecimento que lhe deveria permitir dar um passo mais. Mas falta-lhe algo para que isso possa acontecer.

Nesta noite e neste encontro, que no seu términus parece não ter alterado muito a pessoa de Nicodemos, algo acontece, algo extraordinário, que leva à passagem da noite à luz, do encontro escondido à manifestação pessoal e convicta, ao testemunho presencial.

No Evangelho de São João, Nicodemos aparece por três vezes, neste primeiro encontro nocturno, às escondidas, no momento em que se decide a morte de Jesus e no qual Nicodemos sai em defesa de Jesus invocando a lei e o direito à defesa, portanto numa manifestação pessoal convicta que leva à acusação e suspeita de que possa ser dos influenciados por Jesus, e por fim no momento da sepultura do corpo de Jesus, em que aparece com as de mirra e aloés, uma quantidade de perfume e essências próprias para a sepultura de um rei.

Neste encontro de Nicodemos com Jesus que o Evangelho nos apresentou, a resposta de Jesus é feita de um conjunto de conceitos, expressões de vida, como o amor, o julgamento, a verdade e a luz, que estão de tal modo imbricados, torcidos, que tal como numa corda não poderão ser separados, pois tornar-se-iam demasiados frágeis e insustentáveis. E esta unidade, este entrançado, aparece num único nome que nos é proposto e poderemos assumir impronunciável, e que é o nome de Deus. É no nome de Deus que se unem o amor e o juízo, a verdade e a luz.

E é perante esta realidade, este nome que cada um de nós deve procurar a melhor atitude, a melhor resposta, que numa relação com a luz não poderemos deixar de apresentar como a lucidez. É esta atitude, esta virtude que em cada um de nós pode de certa maneira corresponder ao que Deus nos manifesta na nossa capacidade de acolhimento.

A lucidez é um trabalho, um processo de consciência que tende a colocar à luz, a iluminar, o que em nós não é fácil de iluminar, de se revelar. E Jesus, muito antes de Freud, revela esta dificuldade humana do nosso psiquismo que exerce o seu poder de esquecimento e de ocultamento daquilo que de uma maneira ou outra foi para nós doloroso, temeroso, humilhante, no conjunto das pretensões da nossa personalidade.

E por isso, como diz Jesus, nós preferimos as trevas à luz, pois ao mantermos na escuridão no profundo do nosso ser e do nosso medo as falhas e feridas, as frustrações das nossas ilusões, nós esperamos evitar a lâmina cortante da verdade e do julgamento

Contudo, como podemos encontrar sem a lucidez face a estas realidades fracturantes que conduz à verdade, ao julgamento e à luz e finalmente ao amor. Ao amor de nós próprios e ao amor dos outros. Como podemos verdadeiramente amar sem nos conhecermos, e conhecer nos ombros dos outros as nossas próprias sombras, falhas e faltas, nos seus julgamentos sobre cada um de nós as nossas próprias intransigências para connosco próprios?

Deus não enviou o seu Filho ao mundo para o julgar, mas para que o mundo seja salvo. A salvação vem de Deus como nos diz a leitura da Carta aos Efésios. O filho Jesus Cristo, é, portanto, essa luz que desde o prólogo do Evangelho de São João nos é apresentada como para a nossa salvação, para a nossa iluminação, que nos é oferecida para o nosso acolhimento.

Deus renuncia ao julgamento da condenação, porque o seu juízo é uma iluminação, é um colocar à luz do que é o seu amor, o seu desejo de realização, e as nossas potencialidades.

E no seguimento de Nicodemos, o que Jesus nos pede é de aceitar sem medo esta luz, esta iluminação, este deixar sair à luz os nossos medos e fracassos, porque a luz que nos é oferecida é amor, é o amor de Deus.

Como já dissemos, a experiência desta luz que Jesus nos traz, vai remodelar a vida de Nicodemos, não é num momento mágico que tudo se resolve, e a remodelação é de tal modo que o leva a não ter medo de se opor à forma como o pretendem condenar e depois, já elevado na cruz, de receber o seu corpo como um tesouro, como o corpo de um rei, poderíamos dizer como o corpo da eucaristia que cuida e recebe com a maior das devoções e consideração.

Que a luz de Jesus ilumine os nossos recantos escuros, os nossos medos, de modo a que o possamos acolher como vida, como luz, como verdade, que nos encoraja e seguir em frente, a lutar pelo bem que Deus coloca no nosso coração e espera de nós nas nossas obras.   

Ilustração.

1 – Nicodemos e Jesus, de Henry Ossawa Tanner. USA.