Caros Irmãos
Neste domingo “Gaudete” em que a
leitura do profeta Sofonias e a Carta de São Paulo nos convidam à alegria, o Evangelho
de São Lucas confronta-nos com um momento marcante da pregação de João
Baptista, com palavras da sua pregação que ressoaram para além do lugar e do
momento.
O texto diz-nos que vários grupos de
homens e mulheres se dirigiram a João para receber o baptismo, atraídos pelo
seu apelo à conversão, convictos de que podiam fazer algo de diferente, podiam
ser diferentes, e por isso diante das palavras e dos gestos do profeta do
deserto perguntam o que podem fazer.
É uma pergunta natural, poderíamos dizer
intrínseca ao nosso próprio ser, quase inscrita no momento da criação quando
Deus confia ao homem o cuidado da obra da criação. Está nos nossos genes
procurar saber o que fazer, uma vez que nos foi confiada uma obra e a sua
continuação e preservação.
Experimentamos isso no nosso dia a
dia, e assim o que devemos fazer ou o que podemos fazer é uma questão que
colocamos quando chegamos novatos a um local de trabalho, quando somos
convidados para casa de uns amigos e queremos partilhar do trabalho da organização
da festa. Estamos disponíveis para fazer algo, para colaborar, poderíamos dizer
que é o nosso estado natural.
As respostas de João Baptista a cada grupo
não são nada extraordinárias, como poderíamos supor à luz das expectativas e do
burburinho gerado à sua volta. João não pede nada para além do possível e à mão
de cada um dos interpelantes. À multidão em geral pede que partilhe o que tem, uma
túnica com aquele que não tem nada que vestir, aos publicanos que não sejam
mais exigentes do que o estipulado, aos soldados que não se deixem levar pela
violência e se contentem com o seu salário.
Se transpusermos estas recomendações
de São João para a nossa vida verificamos que apenas nos é pedido que
procuremos e saibamos viver na simplicidade, na partilha, alegres com o que
somos e o que temos. Como nos recordava há tempos o Papa Francisco, de que nos
serve um relógio de ouro se as horas são as mesmas num relógio simples e banal,
um carro de alta cilindrada se chegamos ao mesmo lugar com um outro de baixa
cilindrada e consumo? E porque nos desgastamos e violentamos com expectativas e
objectivos que estão fora do nosso alcance e condição, se podemos ser mais
felizes fazendo o que está ao nosso alcance, acolhendo o que somos, pondo a
render os nossos talentos de acordo com as nossas capacidades como nos recorda
Jesus na parábola?
É perante esta simplificação das coisas,
da redução ao seu devido valor e lugar, que poderia gerar alguma frustração e desilusão,
que a multidão começa a questionar se João não é o Messias, pois na expectativa
messiânica está enxertada essa simplicidade e paz de que falava João, esse equilíbrio
perdido com o pecado e que João convidada a reconquistar e a viver.
Ameaçado na sua missão, por estas
expectativas e ilusões messiânicas a seu respeito, João assume radicalmente o
seu papel e lugar, e proclama umas palavras que vão ter uma tal amplitude e
impacto que os quatro Evangelhos, assim como São Paulo, não puderam deixar de
as registar, na medida em que são verdadeiramente revolucionárias e precursoras,
“eu não sou digno de desatar as sandálias”!
Para compreendermos o peso total
destas palavras temos que ter presente que a multidão trata João por Mestre e
que à época aquele que se oferecia para ser aprendiz de um mestre, ser discípulo,
estabelecia uma espécie de contrato em que ficava assumido que o aprendiz
trataria da casa, da roupa, da comida, iria às compras, mas jamais se
ajoelharia para desatar as sandálias do seu mestre quando este regressasse da
rua, pois essa era uma tarefa de um escravo, e um aprendiz, um discípulo, não é
um escravo.
Esta realidade ajuda-nos a
compreender a dificuldade de Pedro na última ceia em aceitar que Jesus se
ajoelhe e lhe lave os pés, uma vez que era um gesto, um serviço que estava
destinado aos escravos, não a um discípulo e muito menos a um mestre.
Assim, ao proferir estas palavras, ao
dizer que não é digno de desatar a correia das sandálias daquele que vem depois
de si, João está a colocar-se abaixo da própria condição de escravo, ele nem desse
estatuto se considera digno. Há aqui uma espécie de aniquilamento, um desaparecimento,
para que o outro possa aparecer e existir, tal como dirá em outro momento, é
necessário que ele cresça e eu diminua.
Este desaparecimento, esta espécie de
aniquilamento, visa, no entanto, mostrar a total e completa dependência do
precursor em relação ao que vem depois de si, do discípulo em relação ao Mestre.
João contenta-se com o seu papel, não vai para além do que lhe está prescrito,
partilha da sua pobre missão com aquele que ainda não é identificável apesar de
já estar presente. João manifesta a sua bondade, sem inquietação, alegremente,
como nos desafia São Paulo na leitura da Carta aos Filipenses que escutámos.
Nesta caminhada de Advento que
vivemos, que seja esta a nossa marca nos tempos difíceis que vivemos, homens e
mulheres confiantes, alegres, que acolhem o que são e têm como dom de Deus para
fazer crescer e frutificar, sem pretensões de grandiosidade ou espectacularidade,
cientes que Deus caminha com eles, faz com eles mais do que é possível
imaginar.
Que a paz do Senhor guarde os nossos
corações e pensamentos!
Ilustração:
A pregação de João Baptista, de
Alexander Ivanov, Tretyakov Galeria, Moscovo.