domingo, 30 de agosto de 2009

Homilia Domingo XXII do Tempo Comum

Depois de nos últimos domingos termos escutado leituras do Capítulo sexto do Evangelho de São João, hoje retomamos a leitura do Evangelho de São Marcos, o Evangelho base deste ano litúrgico.
E se nas leituras do Evangelho de São João as palavras de Jesus se centravam sobre a alimentação, muito particularmente sobre o alimento que Ele tinha para dar aos seus discípulos, hoje e neste episódio do Evangelho de São Marcos a comida continua a ser o centro das atenções. Desta feita o problema em causa é a forma como se come, as questões higiénicas e rituais que rodeavam o gesto de comer.
Encontramos assim um litígio de Jesus com os fariseus sobre as tradições rituais que se deviam cumprir no momento da alimentação. Tradições desenvolvidas no âmbito da interpretação oral da lei que tinham recebido de Deus, mas que se tinham tornado mais importantes e significativas que a própria lei que lhe dera origem.
Para nós hoje, e face à apreensão de uma possível pandemia de gripe, a questão higiénica colocada pelos fariseus a Jesus é de todo aceitável e até obrigatória. Não criticaremos os fariseus pelas suas preocupações e cuidados higiénicos, nem pelo facto de serem gestos que se inserem em antigas tradições herdadas dos seus antepassados.
E não podemos pensar que a crítica de Jesus, ou o incumprimento das regras higiénicas por parte dos seus discípulos, são sinal de um desleixo e falta de higiene pessoal e comum. Portanto que são atitudes criticáveis e condenáveis.
Neste litígio apresentado por São Marcos a questão ritual e o incumprimento por parte de Jesus e dos seus prende-se com uma ideia religiosa que ultrapassa em muito a questão higiénica e alimentar. Estas práticas e ritos eram formas de preservar a identidade do povo eleito, estavam imbuídas de uma ideia preconceituosa de exclusão de todos os outros que não as praticavam. Ao cumprir-se estes rituais de limpeza e purificação preservava-se o estatuto do povo como povo sacerdotal, como povo destinado a prestar um culto puro e perfeito a Deus.
Jesus tem presente este preconceito, esta concepção, e socorrendo-se do profeta Isaías denuncia a ambiguidade destes mesmos rituais mostrando aos fariseus e ao povo que o escutava que aqueles preceitos não passavam de preceitos humanos, nada tinham de divino ou religioso pois não conseguiam realizar o que verdadeiramente realiza um rito ou gesto religioso, a ligação com Deus.
A prática de lavar as mãos e os pés, o copo e o prato, e tantos outros gestos rituais, não eram mais que sinais delimitativos da fronteira entre os judeus e os não judeus, entre o povo escolhido e o que tinha sido rejeitado. Jesus que se sentia e sabia como enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel, a todos os excluídos, não podia aceitar nem pactuar com estes ritos de exclusão, apenas os podia condenar e superar através do incumprimento. Ele não podia aceitar que Deus fosse envolvido em questões de segregação e separação, Ele que vinha para todos os homens de boa vontade.
Terminada a discussão com os fariseus Jesus dedica-se então à formação na verdade daqueles que o escutavam, e entre eles dos seus discípulos que comiam sem se purificarem. Fora do homem não há nada que seja impuro, que possa tirar o homem da sua condição de pureza. É o que nasce no coração do homem que o torna impuro e pode contaminar as coisas que estão nele e fora dele.
Esta centralização da pureza no coração do homem é extremamente importante para Jesus, que de uma forma velada se faz eco da profecia de Ezequiel. O coração do homem é que é o verdadeiro lugar de habitação de louvor de Deus. O coração do homem é o templo no qual habita Deus e por isso só aí verdadeiramente pode haver pureza, se pode procurar a pureza.
Ezequiel diz na sua profecia que Deus derramará uma água pura sobre o coração do homem e que desde esse momento o homem deixará o seu coração de pedra para se encontrar com o seu coração de carne. A pureza é desta forma algo que está fora do controlo do homem, das suas acções ou rituais de purificação, é uma acção de Deus que ocorre no íntimo do coração do homem.
Para nós cristãos esta purificação aconteceu no momento do baptismo, quando fomos purificados com a água do lado de Cristo, essa água que manou do seu peito aberto no momento da morte na cruz. Desde esse momento estamos purificados no nosso coração e qualquer pensamento imoral, perversão ou vício que possa nascer em nós é uma adulteração e violação desta pureza alcançada, é uma ofensa a Deus e à força do Espírito Santo que habita em nós e que alcançámos também no momento do baptismo, pois juntamente com a água do lado jorrou o sangue da Vida do Senhor.
Peçamos por isso ao Senhor que continue a purificar o nosso coração com a sua graça, através da força do Espírito Santo, e que nós através da escuta da sua Palavra e do seu acolhimento humilde, sejamos cada vez mais capazes de ir espelhando por meio da caridade a pureza que há em nós.

domingo, 23 de agosto de 2009

Homilia Domingo XXI do Tempo Comum

O Evangelho deste domingo continua a apresentar-nos o capítulo sexto do Evangelho de São João. Nele podemos constatar como o discurso de Jesus sobre o Pão da Vida, “quem não comer a minha carne e não beber o meu sangue não terá a vida eterna”, provocou um escândalo tremendo entre o grupo dos seus discípulos, ao ponto de muitos o considerarem como louco e por isso o abandonarem.
Perante este escândalo, e abandono de tantos, Jesus coloca a questão radical, interroga aqueles que não o tinham abandonado se também eles se querem ir embora. E esta questão é extremamente importante, é verdadeiramente radical, não só porque reflecte a grande crise que afectou o grupo dos discípulos e que encontramos referida também nos outros Evangelhos, mas sobretudo porque coloca em questão a identidade de Jesus. Não a sua concepção pessoal de identidade, de quem era, mas a concepção que os discípulos faziam da sua pessoa.
Para muitos discípulos Jesus era um profeta, para outros era o Messias esperado, para outros ainda era o terrorista que iria revolucionar o jugo romano, para uns outros era a possibilidade de uma ascensão política ou social, para alguns outros era alguém que estava possesso pelo demónio. Portanto cada um via Jesus de acordo com as suas expectativas, com os seus preconceitos, com os seus desejos mais mundanos.
E Jesus tem consciência disto, tem consciência destes interesses que giram na sua órbita, bem como do escândalo que provocou com as suas palavras. Não foi a possibilidade de comer a sua carne ou beber o seu sangue o que tinha provocado o escândalo, não é plausível aceitar uma compreensão literal das suas palavras por parte dos seus discípulos. O que provocou o escândalo foi a assumpção da sua identidade, da sua natureza divina, o contrariar de todas as expectativas geradas à sua volta.
Desta forma compreende-se que no momento da crise e perante a interrogação, nos Evangelhos Sinópticos Pedro se adiante e diga que Jesus é o Filho de Deus e no Evangelho de São João, que acabámos de escutar, diga “a quem iremos Senhor se só tu tens palavras de vida eterna”. Jesus provoca a crise entre os seus afirmando a sua natureza divina e face a essa crise só a afirmação de fé, colocada na boca de Pedro, é possível.
Jesus coloca o dedo no centro ferido da fé dos discípulos e no centro da nossa fé também ferida. Afinal quem dizemos nós que é Jesus? Quem é Jesus para nós? O que significa na nossa vida? Até que ponto não estamos também à beira de lhe virarmos as costas, ou já de costas voltadas, porque afinal não corresponde às nossas expectativas?
Encontramo-nos na mesma situação do povo de Israel junto ao poço de Siquém, ou seja confrontados por Josué e por Deus a fazer uma opção, ou adoramos os deuses do Egipto, ou os deuses da terra, ou servimos ao verdadeiro Deus que nos libertou. Diariamente, e na nossa fé, Deus convida-nos a fazer uma opção, a repetir as palavras de Pedro, “Senhor a quem iremos se só tu tens palavras de vida eterna”. Mas esta opção e esta adesão só podem ser realizadas pela força do Espírito Santo, pelo nosso consentimento na presença e na força de Deus nas nossas vidas. Não é uma resposta que está completamente na nossa mão, não é uma resposta que tem por fundamento as nossas simpatias, as nossas preferências. É uma resposta de fé e como tal só pela força e acção do Espírito Santo a podemos dar.
E aqui coloca-se outra questão, uma questão que pela falta de uma resposta verdadeira nos impede de optar e de aderir de uma forma mais plena e consciente. Interrogamo-nos muitas vezes se somos capazes, duvidamos dessa possibilidade e da nossa capacidade de acreditar. Perante isto, a resposta à nossa dúvida, e a essa questão da possibilidade, só pode ser que de facto somos incapazes e impotentes, mas em Cristo somos capazes de tudo, de uma opção e de uma adesão.
A nossa finitude não nos dá uma resposta, não nos deixa acreditar, mas se deixarmos de olhar para nós próprios e colocarmos os olhos em Deus e na sua obra quer criadora quer redentora, não podemos deixar de acreditar que de facto somos capazes, que de facto é possível optar por Deus e viver de acordo com a sua Palavra e o seu mandamento, a força do amor de Deus permite-nos tal, dá-nos essa capacidade.
São Paulo na Carta aos Efésios deixa-nos a afirmação deste mistério quando nos convida a amarmo-nos como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela. Ele quis santificá-la, purificá-la, para a apresentar a si próprio cheia de glória, sem mancha nem ruga, mas santa e imaculada. Nós somos esta Igreja pela qual Cristo se entregou e portanto devemos aproximar-nos de Deus cheios de confiança, dessa confiança que somos já obra sua e do seu amor.
Ao aproximarmo-nos do início de um novo ano laboral e académico, depois de um tempo de descanso retemperador das forças, peçamos ao Senhor que infunda em nós o seu Espírito Santo, para o buscarmos com confiança e o testemunharmos com empenho e convicção.

domingo, 16 de agosto de 2009

Homilia Domingo XX do Tempo Comum

Na leitura da Carta ao Efésios, que acabámos de escutar, São Paulo diz que os dias que correm são maus. É uma afirmação que ele faz não só devido às dificuldades da pregação da Palavra da Salvação, mas também devido aos problemas que enfrentava em cada uma das comunidades fundadas por si e às diversas perseguições de que era alvo.
Também nós hoje fazemos a mesma afirmação, a crise económica mundial com tudo o que ela acarreta leva-nos a dizer que os dias que correm são maus. Olhando para a sociedade e cultura e os valores que as orientam podemos afirmar o mesmo, os dias em que vivemos são maus.
Esta situação não é no entanto apenas exclusiva do tempo de São Paulo ou dos nossos dias, porque desde que o pecado foi introduzido no mundo e no projecto de Deus que as coisas deixaram de correr bem. Desde esse momento que há dias maus, que as coisas não correm bem, que podemos falhar e fazer o que não convém nem é o melhor.
Perante esta realidade São Paulo convida os Efésios e convida-nos a cada um de nós a viver de uma forma sensata e responsável, a aproveitar o tempo presente para construir obras de justiça e de verdade que são as obras de Deus.
Contudo, e tendo em conta a sociedade e cultura em que vivemos este convite de São Paulo torna-se algo difícil. A nossa cultura assenta no imediato, na satisfação e no prazer momentâneos, num consumo quer de produtos quer de pessoas de forma descartável. Tudo serve enquanto dura, enquanto nos satisfaz e não nos coloca problemas nem questões.
Perante esta cultura as grandes questões do homem não só não têm resposta como nem sequer são colocadas. Questões como quem sou, de onde venho e para onde vou, deixaram de ter lugar, pois tão pouco há respostas para elas. Nesta cultura do consumo e da satisfação tudo existe em função do momento presente. Existimos e movemo-nos para a satisfação imediata.
Para um cristão, para alguém que se quer afirmar como verdadeiro discípulo de Jesus Cristo as respostas para estas perguntas existem desde sempre, pois sabemos que somos filhos de Deus e herdeiros do Reino dos Céus, vimos de Deus, somos obras do seu amor, e vamos para Deus, porque só nele encontramos a verdadeira e total satisfação do nosso desejo de felicidade.
Viver de acordo com esta realidade, com as respostas cristãs às questões existenciais, implica viver com a prudência de que fala a Sabedoria na primeira leitura da Liturgia da Palavra deste domingo. Devemos viver prudentemente, usufruindo das realidades que este mundo e esta cultura nos proporcionam, mas sempre conscientes que elas são passageiras, que elas devem estar ao serviço da nossa realização total, e que devem ser imbuídas da marca cristã na medida em que temos e podemos agir sobre elas, criá-las ou recria-las.
Mas esta vivência, e a sua coerência só são possíveis na medida em que nos abrimos ao Espírito Santo. Para tal temos que uma vez mais seguir o convite de São Paulo, procurando dar tempo e espaço na nossa vida ao louvor de Deus com hinos, salmos e cânticos de acção de graças.
É a oração, esse acto ou modo de ser tão intrínseco ao ser religioso, e portanto ao ser cristão. Numa cultura do imediato e do consumo temos que fazer a experiência da gratuidade da oração, de como é bom termos algum tempo para Deus e nesse tempo para Deus um tempo para nós e para a nossa vida, porque o tempo dedicado a Deus é verdadeiramente um tempo dedicado à nossa vida e a nós próprios. Neste tempo de verão e de férias deveríamos aproveitar a oportunidade de estarmos mais livres e até mais tranquilo para nos dedicarmos a esse exercício.
Contudo, para nós cristãos a oração e a relação com Deus não é apenas algo individual, é fundamentalmente comunitário e por isso um momento a partilhar por todos e com todos.
A Eucaristia é neste sentido o centro da nossa vida, pois como nos diz Jesus no Evangelho de São João na Eucaristia alimentamo-nos do Pão do Céu, do verdadeiro Pão da Vida, que não é mais que a sua carne e o seu sangue, a sua vida, entregue por cada um de nós. Através deste alimento conseguimos não só alimentar e fortalecer a nossa relação com Deus, mas também a nossa vida social, familiar, e comunitária. A Eucaristia é a vida entregue de Jesus e nesse sentido de cada vez que participamos dela a nossa vida torna-se também entregue como a de Jesus, e podemos por isso conjuntamente e em união com Deus alterar os rumos dos acontecimentos e da história.
Peçamos assim ao Senhor Jesus que não nos falte este alimento celestial e que através da sua participação a nossa vida se torne significativa e verdadeiramente proveitosa para a construção do Reino de Deus.

Homilia Solenidade da Assunção de Nossa Senhora

O Evangelho de São Lucas que acabámos de escutar relata-nos um episódio da vida de Jesus que à primeira vista pode ser considerado como desprestigiante para a sua mãe. Perante o elogio de uma mulher da multidão ao ventre que o transportou e aos peitos que o amamentaram, ou seja à mulher que tinha sido sua mãe, Jesus responde de uma forma que retira a Maria, sua mãe, qualquer prestígio por esse mesmo facto. Para ele e para o Reino o importante não é a dimensão física, relacional, familiar, mas a adesão e o cumprimento da vontade do Pai.
Esta resposta de Jesus têm no entanto um alcance mais vasto, uma dimensão que não retira a Maria, sua mãe, qualquer prestígio, mas bem pelo contrário lhe dá uma dimensão pessoal e única que não podemos deixar de salientar.
Perante uma sociedade machista, patriarcal, em que a mulher era valorizada pela sua capacidade de gerar filhos, de dar uma prole ao marido e uma descendência à família, Jesus valoriza a sua mãe, Maria, não por esse aspecto, mas pela sua adesão livre e comprometida com o projecto de Deus. Jesus retira assim o valor da sua mãe da órbita da maternidade, para a colocar na órbita da autonomia e do respeito daquilo que ela é por si mesma, uma filha de Deus, um membro da comunidade, alguém com poder de decisão sobre a sua vida e a colaboração no projecto de Deus.
É isto que a torna bem-aventurada e feliz, esse compromisso livremente assumido com a proposta que lhe é feita por Deus através do anjo Gabriel de ser a mãe do Messias, do Salvador da humanidade.
E é por esse compromisso, e por tudo o que ele significou na sua vida e para a vida da humanidade e o próprio projecto de Deus, que a tradição da Igreja associou a Maria esta imagem da Arca da Aliança de que falava a primeira leitura do Livro das Crónicas.
David introduz na cidade santa de Jerusalém a Arca da Aliança, esse cofre no qual tinham sido guardadas as tábuas da lei. Ali estava presente e significada a aliança que Deus tinha estabelecido com o povo no deserto do Sinai, bem como a própria presença de Deus entre o seu povo. É por esta razão, e por tudo o que de bom a Arca tinha proporcionado àqueles que a tinham guardado, que David a traz para a cidade santa, para fazer presente no meio do povo a Aliança mas também para ter junto de si o próprio Deus e usufruir dos poderes milagrosos da própria Arca e dessa presença divina.
Quando a tradição da Igreja associa Maria à Arca da Aliança, fá-lo com este mesmo sentido, ou seja, de que Maria é esse cofre onde foi guardada a Nova Aliança que Deus estabeleceu com a humanidade, e através dela, da sua concepção virginal essa Nova Aliança e a lei que comporta foi introduzida na cidade humana. Por esta razão, tal como a Arca da Aliança foi construída de acordo com as medidas e as instruções dadas por Deus a Moisés, também Maria foi constituída, de acordo com o projecto de Deus, capaz de receber a Nova Aliança e a sua presença, ou seja foi concebida cheia de graça para poder ser a Mãe do Messias esperado.
Desta realidade e dimensão ontológica deriva a festa que hoje celebramos da Assunção de Nossa Senhora ao céu, porque não era possível que aquela que tinha sido preparada e cuidada para ser a mãe da presença encarnada de Deus, sofresse a corrupção, experimentasse a finitude aquela que tinha dado à luz a imortalidade e a Vida.
E não a podia experimentar, porque como nos diz São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, que escutámos, a corrupção e a morte são frutos do pecado. E Maria a mãe de Jesus não conheceu o pecado, uma vez que como diz Jesus na resposta à mulher da multidão Maria ouvia a Palavra de Deus e punha-a em prática, vivia da graça de Deus que ultrapassa qualquer lei, e quem vive na graça de Deus não pode viver em pecado ou ser condenado.
Pelo seu assentimento ao projecto de Deus, de uma Nova Aliança e Presença, Maria passou a ser a primeira a beneficiar dos dons dessa mesma Aliança e Presença e por isso após a sua morte foi também a primeira a usufruir da vitória sobre a morte alcançada pelo seu filho, pelo fruto do seu “fiat” à vontade de Deus.
Ao celebrarmos a vigília desta festa mariana da Assunção de Nossa Senhora, o Senhor convida-nos ao aproximarmo-nos de Maria, aquela que é feliz por ter escutado a Palavra de Deus e a ter posto em prática, a fazermos o mesmo se queremos alcançar a felicidade; e a trazermos Maria para junto de nós, para as nossas casas e comunidades, como Arca de Aliança através da qual podemos alcançar os benefícios de Deus.

domingo, 9 de agosto de 2009

Homilia Domingo XIX do Tempo Comum

A leitura que escutámos do Primeiro Livro dos Reis apresenta-nos a caminhada de Elias pelo deserto. Podemos dizer que estamos no centro de uma história da qual é necessário conhecer o princípio e o fim para compreendermos o seu cabal sentido.
Elias está no deserto, mas não é por sua livre vontade, ele está ali fugido, pois pouco antes tinha mandado executar os quatrocentos e cinquenta sacerdotes de Baal. Perante este acontecimento a rainha Jezabel colocou a sua cabeça a prémio, a sua vida à mercê da morte. Elias não tinha outro remédio senão fugir para o deserto, para escapar à morte que o espreitava.
E é nestas circunstâncias que ele vai fazer a experiência de Deus, a experiência radical do que Deus era, de quem Deus verdadeiramente era. Como profeta, Elias estava junto do povo para vigiar pela ortodoxia da sua fé; contudo, ao cometer o crime de matar os sacerdotes de Baal tinha ultrapassado em muito o que eram as suas competências, a sua missão de mostrar Deus presente. Com o seu crime Elias tinha revelado um Deus violento, um deus de ódio, uma imagem completamente contrária ao ser de Deus.
Esta viagem ao deserto vai trazer-lhe a experiência, e mostrar-lhe que Deus, o Deus de Israel, não era um deus de morte nem de violência, bem pelo contrário, era um Deus de paz, de ternura. Elias dá-se conta disso quando no monte, depois da tempestade, do vento revoltoso, descobre que Deus tinha passado e se tinha feito presente numa brisa suave, apenas numa brisa suave. Depois disso Elias pode voltar para a sua missão, pode mostrar a verdadeira face de Deus.
Face que, como diz São Paulo na Carta aos Efésios, nós ofuscamos e denegrimos quando permitimos que entre nós haja dissensões, discórdias, vinganças e maldades. De cada vez que nos permitimos essas desgraças, essas desordens, não revelamos a verdadeira face de Deus, ou pelo menos a face do nosso Deus, do que se nos foi revelando ao longo da história. E isso acontece, essa revelação acontece, quando nos tornamos imitadores de Deus a exemplo de Jesus Cristo.
Podemos dizer que Jesus é o critério pelo qual podemos aferir da nossa revelação ou não, do nosso conhecimento ou não, da face de Deus, porque de facto é ele a via mais perfeita e completa para o conhecimento de Deus, da sua face. E é interessante notar também que é a via mais perfeita e completa para o conhecimento do homem enquanto criatura de Deus, enquanto filho e herdeiro do Reino dos céus.
O homem é um ser de desejo, um ser que vive a experiência do amor, experiência sensível sem a qual ninguém sobrevive. O homem necessita assim alimentar-se de amor, de satisfazer o seu desejo, e por essa razão Jesus se apresenta no Evangelho de São João como o Pão da Vida, como aquela realidade que pode verdadeiramente satisfazer o desejo e matar a fome de amor. E isso é possível, porque ele, esse Jesus, é um acontecimento de amor, é uma manifestação e revelação da face de Deus, face que é amor e não ódio ou violência.
Contudo, e como o próprio Jesus nos avisa só nos podemos aproximar dele nesse processo dinâmico de satisfação se formos atraídos pelo Pai, pela força do Pai. Não é com debates nem questões ideológicas que nos podemos aproximar dele. Não o podemos interrogar como os judeus o fizeram sobre a sua natureza e filiação. Tal será ficarmos apenas pela superfície da revelação, pelo vento tormentoso que Elias experimentou mas no qual não estava Deus.
Será na brisa suave desse mistério de Deus que se fez homem como nós em tudo, menos no pecado, que podemos experimentar a presença de Deus, nesse mistério de amor e misericórdia.
E quando o fizermos podemos deitar-nos à sombra do junipero, como fez Elias, não esgotados como ele, mas tranquilos porque sabemos que o nosso alimento, a satisfação do nosso desejo e fome de amor, está a caminho e será trazida pelos anjos do Senhor à nossa presença.
Peçamos ao Senhor Deus que nos atraia até Ele, para que se nos manifeste e possamos através dos nossos gestos de amor e ternura manifestá-lo aos nossos irmãos, dá-lo e darmo-nos como alimento e satisfação do desejo que habita em cada homem e mulher.

sábado, 8 de agosto de 2009

Encontro da Familia Dominicana


Como tem vindo a acontecer nos últimos anos, também este ano a Familia Dominicana se organizou para fazer o seu passeio anual e encontro familiar. Desta feita foi no Convento de São Domingos de Benfica, antigo cenóbio dominicano cheio de história e de arte.

Foi um momento para conviver, para celebrar a fé, mas também para conhecer um pouco mais da nossa espiritualidade e história, dimensão do Encontro que a imagem registou para o conhecimento futuro.

Festa de São Domingos

A Ordem dos Pregadores, ou Dominicanos como também somos conhecidos, celebra hoje a festa do seu fundador São Domingos de Guzman.
Neste espaço, fazendo memória do nosso fundador e daqueles que o seguiram e nos precederam apresentamos o início de um Sermão pregado no Convento do Porto em 4 de Agosto de 1728 por frei Francisco de Mello, frade dominicano, Consultor Teólogo da Bula da Cruzada, Lente de Moral da Catedral do Porto e formado em Teologia pela Universidade de Coimbra.

Para ilustrar este texto e festa apresentamos uma imagem da estátua de São Domingos que se encontra na Capela de São Gonçalo de Amarante do antigo Convento de São Domingos de Benfica. É uma peça belissima do Barroco romano do século XVII, atribuida ao escultor Ercole Ferrata e trazida par Portugal e para a sua capela sepulcral por D. Frei Manuel Pereira, frade dominicano, Vigário Geral da Ordem em 1670, 1º Bispo do Rio de Janeiro, Secretário do Rei D. Pedro II e Consultor do Santo Oficio.


SERMÃO DE FREI FRANCISCO DE MELLO
Vos estis lux mundi. Matth. 5
O elevado objecto, que nesta hora ocupa as decorosas atenções deste nobilíssimo, e religiosíssimo congresso, é o esclarecido Patriarca, São Domingos de Gusmão, Pai e Preclaríssimo Príncipe dos Pregadores, timbre singular, e especial brasão, com que a Santidade de Gregório IX, soberanamente o distinguiu, entre os ínclitos Heróis, com que a Igreja Católica se exalta: Dominicus Dux, & Pater inclitus in populu Deis factus, novum Praedicatorum Ordinem instituit.[1]
A este grande Patriarca pois, aplica a Igreja no Evangelho, que hoje se canta, aquele honorifico titulo de luz do mundo, que Cristo Senhor nosso deus aos Varões Apostólicos: Vos estis lux mundi. Mas como este título é um nome genérico, que compreende em si as luzes de todos os Planetas, a do Sol, Lua, e Estrelas: é preciso, que examinemos, a qual deles se devem assemelhar nos luzimentos os Varões Apostólicos, ou luzes evangélicas. Da Escritura Sagrada consta, que estas hão-de ser como de estrelas: Qui ad justitiam erudiunt multos quasi stellae in perpetuas aeternitates.[2] E deve ser a razão, porque assim como as estrelas nem têm diminuições como a Lua, nem padecem eclipses, como o Sol, também as Luzes Evangélicas, nem hão-de diminuir, nem se hão-de eclipsar. E com este fundamento foi dizer o meu Cardeal Hugo, que convém se pareçam as Luzes Evangélicas com as estrelas: Oportet quod sint stellae.[3] E Cornélio Alapide diz também, que às estrelas se devem, assemelhar as Luzes Evangélicas: Insignes Evangelii Praecones sunt stellae.[4]
E se estas devem ser dos Varões Apostólicos, ou Luzes Evangélicas, as suas semelhanças: notem agora, como vem próprio para São Domingos de Gusmão este assunto. A Sibila Eritreia, que floresceu mil e trezentos anos antes da vinda de Cristo, depois de ter vaticinado o mistério altíssimo da Encarnação do Verbo Divino, no nascimento de um Sol, profetizou o de São Domingos no símbolo de uma estrela, que havia, de nascer em Espanha, e daí encher de luzes a todo o mundo.[5] A Sibila Erifile, que floresceu segundo a conta de Santo Agostinho, no tempo de Rómulo, quase dois mil anos antes de São Domingos existir: depois de profetizar os progressos de São Paulo no mundo, vaticinou o nascimento de São Domingos, simbolizando-o em uma estrela.[6]
O Venerável Joaquim Abade, que floresceu no século antecedente, ao em que a luz de São Domingos brilhou, também vaticinou o seu nascimento, no mesmo símbolo de uma estrela, que nasceria no Ducado de Espoleto território de Espanha, para pregar de novo o Evangelho, conta a seita dos Patarenos, a qual, segundo Espondano, teve princípio no ano de 1198.[7] Foi facção Valdense, raiz de seita Albigense, a que São Domingos se opôs em defensa da Igreja: levando a glória de ser o valeroso David, que prostrou aquele monstruoso gigante. Não faltou o céu, em manifestar o sólido, e verdadeiro de tão prodigiosos anúncios; porque quando São Domingos se baptizou, lhe divinizaram na testa uma resplandecente estrela: Stella micans in fronte parvuli. E com este fundamento lhe deu a Igreja o título de estrela: Novum sidus exoritur.[8]
[1] Greg 9, in Bull. Can.
[2] Daniel. 12.
[3] Hug. hic.
[4] Alap. hic.
[5] Bern. de Bust. I. p. Rosarii ter 14. L.O.
[6] Seraf. Thom. Vida de S. Doming. f. 529.
[7] Espondau. an 1198.
[8] Eccles in Officio.

domingo, 2 de agosto de 2009

Homilia Domingo XVIII do Tempo Comum

Como não? Como não procurar Jesus depois de Ele ter dado o alimento a uma multidão tão numerosa?
No domingo passado a leitura do Evangelho apresentava-nos esse milagre da multiplicação dos pães. E concluía dizendo depois de todos terem ficado saciados Jesus desapareceu do meio deles, pois sabia que o vinham procurar para fazer rei.
A leitura do Evangelho de hoje prossegue essa busca do povo, já não para o fazer rei, porque de facto já não é isso que hoje está em causa, mas para a instituição de uma fonte, de uma forma de não voltar a ter necessidade de procurar pão, de passar fome. Como no encontro com a Samaritana junto ao poço de Jacob, a busca de Jesus, a adesão à sua palavra, tem apenas por fito essa satisfação de não ter mais necessidade.
Jesus é bem consciente disso e portanto assim que é interrogado pela multidão que o busca Jesus responde-lhes que não o buscam por milagres, por ver nele algo mais do que a satisfação das necessidades mais básicas. A multidão procura Jesus porque comeu o pão, porque ficou saciada.
Mas essa não é a sua função, não é a sua missão e nesse sentido Jesus coloca diante daqueles homens e mulheres e diante de cada um de nós a verdadeira busca que devemos efectuar, a forma e a razão pela qual O devemos procurar. Procurai e trabalhai pelo alimento que dura para a vida eterna, o alimento que o Filho do homem vos dará.
É importante ter aqui presente outras palavras de Jesus, a sua resposta ao demónio, quando O tentou no deserto. O homem não vive apenas de pão, mas da Palavra que sai da boca de Deus. Não é assim o alimento físico o que deve preocupar o homem, cada um de nós cristãos, é esse alimento que verdadeiramente vivifica e que é a Palavra que sai da boca de Deus que nos deve preocupar.
São João começa o Evangelho, do qual foi retirada esta leitura, dizendo que a Palavra habitava junto de Deus mas veio até nós para que nós nos pudéssemos aproximar de Deus. A palavra encarnou e ao encarnar tornou-se alimento para cada homem e mulher pois permitiu e permite que cada um se assuma também como encarnação, como alimento, como sinal da presença de Deus, que viva como filho de Deus.
Por esta razão é que à pergunta da multidão, o que devemos fazer para praticar as obras de Deus, Jesus responde que a obra de Deus é acreditar naquele que foi enviado por Deus, o Filho. O importante, o que alimenta verdadeiramente, é acreditar em Jesus Cristo, Filho do Homem e Filho de Deus.
É um desafio, uma realidade que nos coloca demasiadas questões, que levanta demasiadas dúvidas, e que estão expressas na pergunta e resposta que a multidão faz e dá a Jesus. No deserto, e como se escutava na primeira leitura, Deus tinha alimentado o povo, de uma forma especial, mas também de uma forma continua. Havia uma história, provas desse milagre, desse acontecimento extraordinário e continuo que tinha marcado o povo. Jesus no entanto apenas tinha multiplicado os pães uma vez, onde estava portanto a sua autoridade, o seu poder para que pudesse ser acreditado?
A multidão coloca assim em questão as provas da divindade, do poder de Jesus de se afirmar como se afirmava. Também nós podemos correr este risco e certamente o corremos muitas vezes quando interrogamos Deus sobre a sua inactividade e inoperacionalidade na nossa vida, quando não encontramos as respostas que buscamos Dele.
E perante isto Jesus deixa à multidão e a cada um de nós a maior oferta que se nos podia fazer: Deus dá, Deus não deixa de dar, mesmo quando nos mostramos insatisfeitos e reclamamos da falta de resposta aos nossos pedidos, Deus dá-nos o alimento. E esse alimento não é um alimento qualquer, é o verdadeiro pão do céu, o alimento que dá a vida. Ou seja, não há nada neste mundo que nos possa saciar a fome e a sede, que nos possa satisfazer a vida, apenas o pão que nos é enviado do céu.
E o pão que nos é enviado do céu é o pão do amor, da misericórdia e da graça. A encarnação de Jesus, a sua vida com a paixão morte e ressurreição, é a manifestação desse amor, e só ele nos pode alimentar e saciar.
O convite de Jesus a que vamos a Ele, a que acreditemos Nele, é um convite a que deixemos de lado as nossas pequenas satisfações, as buscas de poder e glória, para nos encontrarmos nele plenamente satisfeitos e completos. Não porque Ele nos dê algo de extraordinário, de exuberante, mas porque nos dará aquilo que verdadeiramente nos satisfaz, o amor. E mais, essa dádiva acontece, realiza-se, no nosso ser humano, na nossa encarnação como homens e mulheres que são filhos de Deus. Não é algo estranho a nós, algo de extraordinário, é algo bastante concreto e bastante passível de quotidiano, de ser vivido em cada momento e por cada um. Basta querer e crer.
Peçamos ao Senhor que nos dê sempre deste pão e que sejamos capazes de o partilhar com aqueles que nos acompanham na mesma busca de satisfação da sede e da fome que nos habita.