domingo, 16 de setembro de 2018

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Marcos apresenta-nos neste domingo a pergunta que Jesus faz aos discípulos e que é de todos nós conhecida, “quem dizeis que eu sou”; uma questão, num primeiro momento, relacionada com terceiros, mas depois relacionada com cada um deles; uma questão que cada um de nós deve procurar responder, tal como Pedro respondeu.
Contudo, e na medida em que todos devemos dizer quem é Jesus, não podemos perder de vista que esta questão é colocada aos discípulos enquanto se encontram em caminho, em direcção às terras de Cesareia de Filipe. Também a nós é colocada esta questão enquanto nos encontramos em caminho, em processo, também a nós nos é colocada nas fronteiras da nossa existência, nos terrenos que escapam ao nosso conforto. E é aí, nesses territórios inóspitos do encontro com o outro ou por evangelizar da nossa existência, que devemos dar a resposta.
Uma resposta que não é nem pode ser sempre a mesma, que não pode ser única para a vida. Infelizmente muitos dos nossos irmãos encontraram uma resposta simples na sua infância, na catequese, na tradição familiar e contentaram-se com ela, ou não se aperceberam que ela devia evoluir, construir-se e reconstruir-se em cada etapa da vida.
Uma criança pode dizer que Jesus é amigo, pode e deve fazer essa experiência, mas um jovem deve já dizer mais alguma coisa de Jesus, deve percebê-lo na sua juventude, no espirito de abertura e autonomia, na liberdade que anseia, no desejo de um mundo melhor. Um homem e uma mulher maduros devem ter outra experiência e dar outra resposta, Jesus já não é só amigo, é também caminho de vida já trilhado, é verdade encontrada na humanidade e na fraternidade, é companheiro de viagem para os bons e maus momentos. Ao declinar da vida, Jesus amigo é aquele que abre a porta para a passagem para a outra vida, é o companheiro do silêncio, é o ressuscitado que nos afiança a ressurreição, é o sentido para que tudo o vivido não tenha sido em vão na medida em que foi vivido com amor.
A nossa resposta à pergunta de Jesus, nas diversas fases da nossa vida, tão pouco pode ser uma resposta teórica, uma resposta conceptual, fruto de tudo o que lemos ou aprendemos nos livros ou do que escutámos dos outros. Será inevitavelmente uma resposta pobre, se é que chegará a ser resposta, porque a nossa resposta verdadeira, convicta, é uma resposta de vida, é uma resposta de obras como nos diz a Carta de São Tiago que escutámos.
Não podemos pretender dar uma resposta a Jesus e de Jesus se não a traduzirmos em obras, em gestos concretos do nosso quotidiano, e é por essa razão que ele diz aos discípulos que se alguém o quer seguir deve tomar a sua cruz. Muitas vezes, e muitos dos nossos irmãos assim o vivem, assumimos este carregar a cruz como uma inevitabilidade que temos que abraçar, como um jugo ao qual não podemos escapar. A cruz torna-se um castigo, um fardo pesado.
No entanto, se algum peso há na cruz é porque a cruz está em confronto com o mundo, com os valores e pretensões do mundo, desse mundo de que Pedro faz eco quando se coloca a dissuadir Jesus para não levar a cabo a sua missão de entregar a vida para nos dar a vida. O peso da cruz resulta desse confronto interno do nosso coração entre os valores do espirito, a vida divina, e os valores do mundo, poderíamos dizer o nosso orgulho e auto-referência. A lógica da cruz, que é lógica de amor, opõe-se à lógica do mundo, que é a lógica da satisfação egoísta.
Mas, se como cristãos, discípulos que procuram ser fiéis no seguimento de Jesus, assumimos a cruz, na sua lógica de amor, e com ela todos os combates do mundo, não o podemos fazer de forma infantil, ingénua, tal seria enganar-nos e conceber uma resposta equivocada e até leviana ao que temos de dizer sobre Jesus e de Jesus. A cruz é exigente, solicita-nos um esforço, uma entrega; como nos diz Jesus, um perder a vida para a ganhar, um sair de nós para ir ao encontro do outro que nos interpela como imagem e semelhança de Deus, como primeiro apelo de Deus ao amor.
Contudo, nesta exigência radical, neste perder a vida, não podemos esquecer que a cruz que carregamos cada dia é uma experiência partilhada a dois, é uma sintonia e uma unidade com Aquele que é o nosso advogado, o nosso defensor, como nos dizia a leitura do profeta Isaías, com Aquele que já nos livrou da morte pela sua vida entregue em total liberdade e abandono confiante à vontade salvífica do Pai.
A cruz, e com ela a resposta que damos quotidianamente dizendo quem é Jesus, deve estar imbuída desta convicção e confiança, desta fé, deve expressar com coragem e ousadia que o Senhor nos acompanha, que é o seu Espirito que nos inspira as respostas como inspirou a afirmação de Pedro “Tu és o Messias”. Ancorados nesta verdade caminhamos na terra dos vivos, entre os homens e mulheres, mas paralelamente na presença do Senhor, em estreita união com Ele e com a sua Palavra de Vida.
Alimentados pela Palavra de Deus, fortalecidos pelo Corpo e Sangue desta Eucaristia, podemos assim, nesta semana que agora iniciamos, levar a nossa cruz com mais alegria e confiança, pois se nela experimentamos a nossa fraqueza e debilidade fazemos também a experiência da graça e da força de Deus.

 
1 – “Eis o Homem! Ecce Homo”, de Andrey Mironov.
2 – “Santo André”, de Andrey Mironov.
 

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum - Ano B

A Liturgia da Palavra deste domingo, nas suas três leituras, deixa-nos algumas propostas de atitudes, de respostas, a situações em que nos vemos envolvidos, muitas vezes sem grande consciência da nossa parte.
A leitura do profeta Isaías apela e convida-nos à coragem, a uma atitude que muitas vezes temos perante outros desafios da vida, mas que nos esquecemos de ter perante a fé e o testemunho que dela radica.
Quando Isaías faz este apelo à coragem, o povo de Israel enfrenta o desaire da deportação, da perda da sua terra e das suas referências enquanto povo; é um povo exilado, sem rei, sem lei, sem lugar de culto. Contudo, e apesar dessa desolação, Deus apela à coragem, a não ter medo, porque o Senhor alterará a seu tempo o decurso dos acontecimentos e da história e aqueles que são os mais frágeis experimentarão a alegria de uma vida nova. A esperança proporciona a coragem.
Hoje em dia, quando vemos a Igreja a ser atacada, quando vemos os conluios que se tramam no interior da própria Igreja, quando tomamos consciência da dimensão do pecado da Igreja, a primeira reacção é de estupefacção, seguida imediatamente de um colocar-se à margem, de um afastamento. Afinal quem é que deseja pertencer a uma comunidade, a um grupo que demonstra tantos pecados, tanta infidelidade aos seus compromissos e princípios?
Conhecemos certamente irmãos nossos que já o fizeram de uma forma declarada e irreversível, e outros que o ponderam fazer, pois sentem-se perdidos e desorientados. É perante esta realidade e esta desorientação, poderíamos dizer esta desolação, que Deus nos convida novamente à coragem, a não temer, porque nenhum de nós está na Igreja por Pedro ou Paulo ou Apolo, pelo Papa Francisco ou pelo padre tal, estamos por Jesus Cristo em quem acreditamos, de quem partimos nos nossos valores e para o qual tendemos na nossa caminhada de busca de fidelidade.
Acreditamos que Jesus é o caminho, a verdade e a vida, e por isso permanecemos, com coragem, sem medo, porque também acreditamos que Deus não deixará de fazer ver os que estão cegos, não deixará mudos os que devem falar, porque acreditamos que ouvindo podemos ajudar-nos a libertar-nos uns aos outros do mal que nos oprime, da desolação em que caímos. A coragem de acreditar e permanecer brota da fé na acção de Deus, da fé de que Deus não fecha os seus ouvidos aos gritos dos inocentes, aos gemidos dos oprimidos. Como nos diz Isaías Deus fará brotar da terra árida nascentes de água viva.
É esta fé que nos leva também a estar atentos ao que vemos e ouvimos, ao que dizemos, como nos diz a Carta de São Tiago a não fazer acepção de pessoas, a não colocar etiquetas e rótulos.
A Carta de São Tiago expressa-se de modo claro e inequívoco à acepção de pessoas por causa da sua condição e poder económico; contudo, não podemos esquecer nem deixar de olhar atentamente a acepção de pessoas que fazemos na Igreja, no interior das nossas comunidades, por causa dos seus comportamentos, da sua diferença de pensar e ver as coisas, da sua diferença de opinião e até de busca de fidelidade à Palavra de Deus. Quantos rótulos e etiquetas colocamos nos outros sem conhecer as suas razões, sem conhecer a sua história, apenas porque desta forma rotulada nos é mais fácil relacionar com a diferença do outro, inviabilizando assim a riqueza da descoberta pessoal, da personalização.
Personalização que está retratada de forma magistral no encontro de Jesus com o surdo-mudo que a leitura do Evangelho de São Marcos nos apresenta. Este homem que não pode expressar-se, que não pode entrar em comunicação, é trazido pela massa anónima da multidão para que Jesus faça alguma coisa com ele, para que o cure.
Jesus, que o podia curar diante da multidão, afasta-se com ele, como que retirando-o daquele anonimato e até daquela rotulagem que a multidão produzia, potenciando assim um encontro pessoal, a descoberta de um “eu” que se pode relacionar com o “tu” que é Jesus. A acção de Jesus é assim a de devolver ao outro a sua própria pessoa, a sua identidade que se constrói e desenvolve no relacionamento com os outros.
E este é o grande processo que todos nós somos chamados a desenvolver na nossa vida, na nossa caminhada de crentes e de cristãos, a passar de um anonimato imposto pela multidão, pela massa, a uma pessoa que se reconhece em si mesmo e no que Deus lhe revela de si próprio. Neste processo de personalização vamos perdendo a tentação da rotulagem e da acepção de pessoas uma vez que nos descobrimos também pecadores e fracos, necessitados dessa graça que Deus nos concede para sermos diferentes, melhores.
Processo que, como acontece regularmente na acção de Jesus, assenta na dimensão humana, não prescinde da humanidade de cada um de nós e da humanidade do próprio Jesus, que toca o surdo nos ouvidos com os seus dedos, na língua muda com a sua própria saliva. Descobrimos o nosso eu, a nossa pessoa, nessa humanidade tocada por Deus, na carne que nos constitui e na qual Deus quis vir habitar, quis fazer-se um de nós.  
Processo que também conta com a nossa liberdade e vontade, poderíamos dizer com a nossa coragem em participar neste desenvolvimento, pois após ter tocado o surdo-mudo Jesus diz-lhe Efatá, “abre-te” à novidade que te está a ser apresentada, à novidade da pessoa que és e que Deus te revela no teu relacionamento com Ele, nessa reciprocidade de acolhimento entre o teu eu e o eu de Deus.
E como se não bastasse já toda a transformação, este encontro de eu e tu, Jesus após o milagre operado recomenda o silêncio, poderíamos dizer a não tradução em palavras do acontecido, porque de facto esse encontro e descoberta é indizível, é inexpressável, é uma história pessoal, uma história de amor, e as palavras não têm o poder de dizer essa história e esse amor. Será a vida, a fidelidade, a coragem de acreditar e lutar que dirá do milagre realizado, que expressará esse encontro e essa descoberta personalizante de cada um em Deus.
A Palavra de Deus que escutámos neste domingo é assim bastante desafiante, e na semana que agora iniciamos não podemos deixar de lhe dar corpo e de lhe fazer eco. Necessitamos encher-nos de coragem para acreditar em Deus que não desampara os seus fiéis, para acreditar na Igreja que somos todos nós com mais ou menos pecados, para não fazermos juízos uns dos outros porque frequentemente nos equivocamos, para guardar silêncio porque até das pedras o Senhor pode fazer arautos da sua verdade.
Que o Senhor nos ilumine com a sua sabedoria e nos conceda a graça da fortaleza e da fidelidade em todos os desafios que nos são colocados pelo mundo em que vivemos e nos movemos.

 
Ilustração:
1 – “Isaías profetiza o regresso do exílio”, de Maarten van Heemskerck, Frans Hall Museum, Holanda.
2 – “Jesus cura um surdo-mudo”, de James Tissot, Brooklyn Museum.

domingo, 2 de setembro de 2018

Homilia do XXII Domingo do Tempo Comum Ano B

A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos apresenta-nos um confronto entre Jesus e os fariseus sobre os ritos de purificação, sobre esse gesto básico de higiene como é lavar as mãos antes das refeições e que se tinha transformado num ritual religioso, num exercício de definição do puro e do impuro.
A resposta de Jesus à interpelação e crítica dos fariseus parte de uma citação do profeta Isaías, “este povo honra-me com os lábios mas o seu coração está longe de mim”. A partir dela, e colocando em perspectiva este acontecimento com o encontro de Jesus com o jovem rico, podemos ter uma visão mais ampla da questão à qual Jesus procura dar uma resposta verdadeira, libertadora, poderíamos dizer potenciadora da resposta efectiva e viva que cada um de nós deve dar.
Todos nós sabemos que, quando o jovem rico diz a Jesus que cumpre todos os mandamentos, Jesus lhe responde dizendo que lhe falta ainda uma coisa, que é vender os seus bens, dar o seu valor aos pobres e segui-lo. Podemos olhar esta conversa a partir da resposta exigente de Jesus, da radicalidade da pobreza, certamente o fazemos habitualmente, mas não podemos deixar de olhar para o cumprimento dos mandamentos do jovem rico. Ele faz tudo o que está dito para fazer, cumpre os mandamentos, mas ainda assim falta-lhe qualquer coisa.
Esta falta que é apontada ao jovem rico é a liberdade que Jesus apresenta aos fariseus no cumprimento do preceituado ritualmente; não se pode ficar encerrado, aprisionado, no cumprimento dos mandamentos, nos escrúpulos do rito, porque de contrário tudo o realizado será uma mera imposição externa, um culto de lábios, sem qualquer envolvimento do coração, da pessoa na sua totalidade e integridade, como nos desafiam as palavras de Isaías.
Os mandamentos, os preceitos, são instrumentos para a libertação, para a prossecução do caminho. Tal como escutávamos na primeira leitura do Livro do Deuteronómio, depois da libertação física da terra do Egipto era necessário proceder a uma libertação espiritual, que se apresenta nos mandamentos, pois só dessa forma se poderia verdadeiramente tomar posse da terra prometida. Os mandamentos e os preceitos servem à libertação, a essa centralidade da atenção, para que não nos desviemos do caminho.
Muitos dos nossos irmãos assumem os mandamentos da lei de Deus, os preceitos da Igreja, como uma violação da sua liberdade e autonomia, como uma invasão e escravização, quando afinal não têm outro objectivo para Deus senão o de nos colocar no caminho da vida, o de nos ajudar a não nos desviarmos do fim a que estamos destinados.
Neste sentido, torna-se necessário aferir cada dia, no nosso exame de consciência qual o grau de interioridade ou exterioridade daquilo que vivemos e fazemos, da busca de fidelidade ao que o Senhor Jesus nos pede. Ficamos apenas pelo cumprimento exterior, pelo simples ritual das coisas, ou pelo contrário esse exterior e ritual é verdadeira manifestação, poderíamos dizer eco, do que nos vai no coração? Quando procuramos viver os mandamentos da Lei de Deus, os preceitos da Igreja é porque queremos cumprir ou porque sentimos a necessidade e o desejo de algo mais na nossa vida? Não se trata de ser mais legalista que a lei, mais papista que o Papa, mas de uma coerência fiel, porque o que Deus nos pede é para nossa felicidade e sua glória e portanto devemos procurar fazer o melhor que sabemos e podemos.
Esta procura de fidelidade, de vivência radical, tem no entanto duas tentações, dois desvios, nos quais facilmente podemos cair, e que funcionam mais ou menos como uma jaula.
A primeira tentação prende-se com a exigência pessoal de cumprir escrupulosamente tudo o que nos foi recomendado, prescrito, deixando para isso de lado os outros, aqueles órfãos e viúvas de que nos falava a Carta de São Tiago, e que são na Sagrada Escritura os símbolos máximos do outro enquanto apelos ao nosso amor, à nossa partilha, à nossa generosidade. Afinal de que nos serve procurar a fidelidade a Deus nos gestos e ritos se nos esquecemos dos outros, daqueles que à nossa volta são a maior e mais visível presença de Deus? De que me serve procurar amar a Deus sobre todas as coisas se me recuso a amá-lo presente nos meus irmãos?
A outra tentação que pode derivar da busca de fidelidade aos mandamentos é a tentação do agrilhoamento de Deus, da subjugação de Deus e da sua liberdade aos nossos ritos e cumprimentos. É esse jogo comercial da troca por troca, em que exigimos de Deus uma resposta, uma solução, porque fizemos tudo o que nos foi pedido, porque fizemos tudo para lhe agradar. Assumimos o controlo de Deus. A pureza ritual contra a qual Jesus se rebela é a manifestação da liberdade total e plena de Deus. Deus não se vende nem se manipula.
Atentos à possibilidade de nos desviarmos, às tentações em que podemos tropeçar, procuremos seguir no caminho da nossa fidelidade, conscientes como nos diz Jesus, que o verdadeiro combate entre o puro e o impuro se realiza no nosso coração, ali onde nascem as paixões. Mas se nele a lei do amor estiver viva e eficaz nada nos será impuro, nem nada nos intimidará, porque em tudo encontraremos a bondade e a presença amorosa de Deus.

 
Ilustração:
1- “Jesus e o jovem rico”, de Andrey Mironov.
2 – “Jesus preso à coluna”, de Wenzel Coebergher, Musée des Augustins de Toulouse.