domingo, 26 de abril de 2020

Homilia III Domingo da Páscoa - Ano A


Caríssimos Irmãos

O Evangelho de São Lucas que escutámos neste domingo apresentava-nos o acontecimento de Emaús, o encontro de Jesus com os dois discípulos que se afastam de Jerusalém, após o que, no entendimento deles, tinha sido um desaire, um fiasco, face às expectativas. E ainda que soubessem já da situação do túmulo vazio, a verdade é que a incompreensão os dominava, a novidade era como uma espécie de rumor que não os convencia. Eles não tinham visto nada.
Podemos dizer que estes dois homens são a imagem de cada um de nós, dos discípulos de Jesus de hoje e de todos os tempos. Também nós nos encontramos em caminho, em processo, e os rumores da Boa Nova da ressurreição soam-nos distantes, incompreensíveis; temos a novidade revolucionária dos Evangelhos, mas temos também as histórias e situações pouco dignas e incoerentes da Igreja e de muitos cristãos, um ruidoso cenário que nos perturba.
Contudo, é a estes discípulos em luto, que neste caminho se afastam da novidade incompreensível, que necessitam falar dos acontecimentos para expressar a sua decepção e frustração, que Jesus se faz presente, que Jesus se aproxima de uma forma delicada, como um ignorante dos acontecimentos, permitindo dessa forma uma plena expressão da mágoa e frustração, da dor da desilusão.
Durante duas horas de caminho e conversa, os discípulos podem apresentar a sua percepção de Jesus, expressar a sua leitura dos acontecimentos, fazer, como Pedro no discurso que escutámos na primeira leitura, a afirmação dos dados que acreditam Jesus como um profeta poderoso em palavras e obras.
A esta leitura e percepção, Jesus contrapõe, como nos diz a narração, a história da sua missão, recorda as suas palavras e gestos, o anúncio que tinha feito de como tudo tinha de se cumprir da forma como tinha acontecido. Desde o primeiro anúncio, antes da transfiguração no monte Tabor, que a paixão e a morte não tinham a última palavra, havia sempre a ressurreição no momento seguinte. Como era possível que não o tivessem compreendido, que ainda não o compreendessem?
É de facto surpreendente que, mesmo após as explicações dadas por Jesus, os olhos dos discípulos continuassem fechados ao seu reconhecimento; no entanto, podemos compreender tal cegueira à luz da psicologia, que nos diz que a dor da perda, o sentimento do impossível, impedem a aceitação e compreensão dos acontecimentos, a concepção de uma novidade. Num contexto de processo traumático poderíamos dizer que nos encontramos numa fase de rejeição, apesar das notícias já divulgadas de algo novo que tinha acontecido.
O reconhecimento vai acontecer à mesa, com a bênção e o partir do pão, é nesse momento que os discípulos reconhecem Jesus. É o sinal do pão abençoado e partido que lhes abre os olhos para a presença daquele que eles não suspeitavam possível de estar vivo.
Podemos dizer que esta é a missão de Jesus, também uma das dimensões da missão de Jesus, se não mesmo do próprio Deus na sua história com o homem. Isaías anuncia que o enviado de Deus virá para dar a vista aos cegos, Paulo perde a vista a caminho de Damasco, mas vai recuperá-la pela intervenção de Ananias para poder ver a graça e a misericórdia de Deus. No livro dos Génesis, Agar perdida de dor e mágoa no deserto é incapaz de ver o poço que está à sua beira, e é Deus que lho revela quando ela pensa já pôr fim à sua vida. Deus vem ao encontro do homem para lhe abrir os olhos para a novidade do seu amor, para a sua presença salvadora.
E logo que os olhos são abertos Jesus desaparece, afinal o sentido e a visão foram alcançados e por isso não há mais necessidade de presença, resta apenas a missão a que todos são convocados, de ir anunciar com alegria aos irmãos a verdade da presença experimentada. E se no caminho de regresso os discípulos partilham um com o outro o ardor do coração, a alegria sentida, é porque todos necessitamos enraizar a certeza dessa experiência vivida.
Nos Apotegmas dos Padres do Deserto encontramos uma história que nos diz que um irmão tinha muita dificuldade em compreender uma passagem do Evangelho e por isso decide fazer jejum durante uns tempos para que Deus lhe conceda a graça da compreensão dessa passagem evangélica. Contudo, nada acontece. Decide assim ir ter com um irmão mais velho para que ele lhe possa explicar. É ao fazer o caminho para a gruta do irmão que Deus lhe aparece e lhe fala: Agora que tiveste a humildade de ir ao encontro do teu irmão podes compreender a passagem da Escritura, agora vais saber.
A história dos discípulos de Emaús é assim um convite a perceber que só o encontro com o outro e os outros nos pode libertar do autismo das nossas dúvidas e decepções, da cegueira das nossas verdades absolutas, que o mandamento do amor de Jesus se plasma absolutamente em fazer caminho com o outro, tantas vezes estrangeiro, estranho, desenquadrado das nossa expectativas.
Peçamos ao Senhor que, quer sentados à mesa ou quer palmilhando os caminhos, Ele fique sempre connosco e nos abra os olhos para a sua verdade e o seu amor em cada encontro com os homens e as mulheres nossos irmãos.

Ilustração:  
1 – A Caminho de Emaús, de Altobelo Melone, National Gallery, Londres.  
2 – Os Discípulos de Emaús, de Eugène Delacroix, Brooklyn Museum, Nova York.


domingo, 19 de abril de 2020

Homilia II Domingo da Páscoa - Ano A


Caríssimos Irmãos
A leitura do Evangelho de São João que escutámos apresentava-nos essa figura de todos nós conhecida, Tomé, aquele apóstolo que não está presente no momento da primeira aparição de Jesus aos discípulos e que, podemos dizer, exige ver e tocar o ressuscitado para acreditar.
Neste seu papel, nesta incredulidade, e nessa sua exigência de ver e tocar, Tomé é nosso irmão, representa cada um de nós, na medida em que tantas vezes deixamos à margem o testemunho da experiência de Deus e do ressuscitado feito pelos outros, somos incrédulos face à palavra dos nossos irmãos.
Levamos dois mil anos de cristianismo, temos o testemunho de milhares de cristãos, mártires, santos, doutores da igreja, místicos, consagrados e leigos, temos o testemunho dos nossos pais e avós; e, contudo, também nós continuamos a dizer como Tomé, eu necessito ver, eu necessito tocar. A palavra dos outros não nos satisfaz, não nos é suficiente.
Muitas vezes, assumimos e compreendemos Tomé como o arquétipo do homem racional, daquele que necessita fazer a experiência para assumir o conhecimento, a verdade, daquele que se encontra incapacitado da experiência da fé em virtude da razão. Mas no fim das contas o que deseja, o que exige Tomé? Apenas um prova tangível, um tocar no corpo do Senhor?
O seu desejo de ver e tocar, de colocar as mãos nas feridas, não é pelo contrário a reclamação de um encontro pessoal, personalizado? Há quanto tempo não vimos nós a falar a diversos níveis, empresariais, sociais, de marketing e publicidade, de atendimento personalizado? O confinamento que vivemos devido à epidemia tem-nos mostrado como necessitamos intrinsecamente dele, do outro diante de nós. Nas entrelinhas do pedido de Tomé, de tocar Jesus ressuscitado, está patente a necessidade de encontro, de ter diante dos olhos, de tocar e ser tocado.
Jesus vai corresponder ao pedido e à necessidade de Tomé, vai fazer-se presente, vai dirigir-se pessoalmente a Tomé, vai personalizar-se para Tomé e desta forma personalizar Tomé. Aqui estou, presente, toma e toca, e não sejas incrédulo, mas crente; portanto, liberta-te da dúvida e acredita, sê pessoa, única e plena como só tu és, tal como eu sou único e pleno ressuscitado.
E se nós hoje somos cristãos, se acreditamos, é porque esta experiência continua a ser feita, continua a realizar-se, nos que nos precederam na fé, nos que nos acompanham diariamente, e em nós próprios; pois só desta forma poderemos pronunciar a mais depurada das confissões de fé, “meu Senhor em eu Deus”.
Nós temos necessidade de que este Jesus, de que este Deus de que nos falaram, se torne Nosso Senhor, Nosso Deus, exprimindo-nos de forma exagerada, se torne propriedade nossa, história da nossa história, experiência nossa, pessoal e única. O Deus de Abraão, o Deus de Moisés, o Deus dos nossos pais, o Deus de Jesus tem de ser também o nosso Deus, o meu Deus, o meu Deus! E esta é condição sine qua non para a fé.
Contudo, depois de se deixar tocar e de ter tocado o seu amigo até à mais íntima fibra do seu coração, Jesus adverte Tomé, “porque me viste acreditaste, felizes os que acreditam sem terem visto”. Esta advertência dirige-se hoje mesmo a nós, e é uma convocatória, um mandamento se assim podemos dizer, que exige a passagem da figura do Jesus histórico à pessoa do ressuscitado Filho de Deus, da experiência pessoal e íntima à partilha e ao anúncio comunitário, a dinâmica da fé à missão.
Se cada um de nós deve realizar um encontro pessoal e original, tornar Deus seu Deus, acreditar e amar sem ver, como nos diz a Carta de São Pedro na segunda leitura, não podemos deixar de estabelecer simultaneamente uma ligação a essa história que é maior que a minha e que é a história da Igreja, na qual sou convidado a tomar parte, a colocar o meu pedacinho de vida e história.
Este elemento comum, esta partilha comunitária, e de que a leitura dos Actos dos Apóstolos nos dava uma imagem tão bela, “viviam unidos e tinham tudo em comum”, é a garantia de estabilidade face às ameaças e aos perigos, de uma fortaleza nas provações, de uma fonte de paz nos momentos de perturbação e de deserto.
Bem-aventurados seremos quando soubermos acreditar nas palavras dos irmãos, quando nos momentos de angústia e dúvida tomarmos as palavras dos nossos irmãos como conforto e suporte, quando acreditarmos que os outros podem ver e eu estar cego, que eu posso seguir os seus passos em direcção à luz do Ressuscitado ainda que não veja claramente o caminho. Bem-aventurados seremos porque desta forma conseguimos o fim da nossa fé, a salvação!   

Ilustração:
1 – A incredulidade de São Tomé, François-Joseph Navez, Museu de Belas Artes, Houston.
2 – A incredulidade de São Tomé, Giuseppe Bazzani, Museu de Arte da Universidade de Arizona, Tucson.

domingo, 12 de abril de 2020

Homilia Domingo da Páscoa da Ressurreição do Senhor - Ano A


Caríssimos irmãos

A escritora e filósofa Hannah Arendt escreveu um dia ao seu mestre e amigo Karl Jaspers que o essencial da sua fé assentava no imprevisível.
Nesta manhã de Páscoa da ressurreição de Jesus este é certamente um dado, uma verdade que nos pode ajudar, não só a viver este mistério da ressurreição, o momento em que nos encontramos historicamente, mas a perspectivar toda a nossa vida. O imprevisível!
Maria Madalena desloca-se ao túmulo de Jesus para prestar ao corpo defunto os cuidados que o sábado da Páscoa não tinha permitido. Ela cumpre o seu dever de mulher, realiza essa necessidade que todos temos de superar a dor da perda: Maria Madalena prontifica-se a viver o que chamamos o luto.
O luto, a perda de alguém que amamos é algo que podemos dizer impensável, aquele que conhecemos, expressivo na sua forma de ser, movendo-se ao nosso redor como numa dança, aquele que nos dirigia a palavra e nos ajudava a ser pessoa, que fazia de nós uma pessoa única na relação com ele, não está mais presente, não dança mais, não responde nem nos dirige a palavra. Vivemos como que uma espécie de deserção que nos deixa incrivelmente sós. Como tantos dos nossos irmãos já experimentaram, o porto de abrigo, o porto seguro onde nos podemos recolher, desapareceu. E que vazio nos deixa.
Inacreditavelmente, são necessários vários anos para deixar de ouvir a voz, deixar de sentir a presença, o perfume ao virar da esquina, a sua silhueta que parece se passeia nos espaços que conhecemos e frequentámos juntos, a dor da perda ainda que suavizada não desaparece, e por vezes até aumenta.
Contudo, e apesar de destes sentimentos, desta dor, deste vazio preenchido por memórias é necessário fazer o luto; necessitamos, para continuar a viver, aceitar a fatalidade, o inevitável. É o que faz Maria Madalena na manhã de Páscoa. Apesar das suas memórias, dos seus pensamentos, dos desejos de ver Jesus ao virar de uma esquina de uma rua qualquer de Jerusalém, ela vai ao encontro do perdido, daquele que não está mais presente nem palpável.
O encontro com a pedra rolada, com o sepulcro aberto faz com que a imaginação de Maria Madalena galope para aquilo que é um cenário de profanação. E é essa realidade que ela corre a anunciar aos discípulos, “levaram o Senhor e não sabemos onde o colocaram”.
Maria Madalena não imagina o inimaginável, ela não realiza o que aconteceu, vai fazê-lo mais tarde, vai dar-se conta que ao impensável da morte, ao imprevisível da morte, sucede outro impensável, outra realidade imprevisível, Jesus ressuscitou.
A nossa vida, a vida de todos os dias, mostra-nos como essa mesma vida é capaz de mudar os nossos planos, como abala o que sonhamos, o que procuramos construir, os nossos projectos tão bem delineados. A situação de isolamento que vivemos é disso a maior testemunha e também o maior desafio. Quem pode dizer que viveu a sua vida sem que lhe tenha sucedido qualquer coisa de imprevisto? Como dizia John Lennon, e encontramos em citação nas redes sociais, “a vida é aquilo que nos chega, que nos acontece, quando estamos ocupados a elaborar outros planos para ela”.
Maria Madalena corre a anunciar o que lhe é dado experimentar, o que apenas pode pensar, e no fundo ela não diz mais que a verdade, “levaram o Senhor e não sabemos onde o colocaram”. Mas esta afirmação, esta verdade é para nós um conforto, é uma esperança, uma luz, pois permite-nos fazer a experiência de não sabermos antecipadamente onde o Senhor se encontra. Ele não está dado como garantido, teremos de o procurar nos lugares mais recônditos, no jardim, junto do jardineiro como Maria Madalena faz, temos de o procurar e de o ver no imprevisível e no insuspeito, no inimaginável.
Celebrar a Páscoa da ressurreição de Jesus é dispor-nos assim a uma busca, a um processo, a uma vida nova, a uma aspiração de outros valores, insondáveis, imperceptíveis por vezes, é acreditar no impensável que Ele vai à nossa frente e nos pede que o procuremos nos terrenos dos túmulos vazios, nas margens do lago da Galileia onde ele virá sempre ao nosso encontro, onde se encontrará sempre um passo à nossa frente para nos servir a refeição e nos ajudar a fazer as melhores opções quando lançamos a rede para a pesca.
Que o nosso coração, como o coração de Maria Madalena, não tenha medo do que vê. Que corramos também a anunciar que o Senhor vai à nossa frente. Procuremos confinar nele, no imprevisível e insuspeito da nossa vida. Que o nosso coração e o nosso espírito encontrem e percebam a luz que Ele nos revela ressuscitado.

Ilustração:
1 – A lamentação de Cristo, de Andrey Mironov.
2 – Maria Madalena junto ao sepulcro, de Henry Le Jeune, Christie’s, Leilão 5879, Fevereiro 2009.

Homilia Vigília da Páscoa da Ressurreição do Senhor - Ano A


Caríssimos Irmãos

No silêncio desta noite uma luz brilha para nós.
Após os quarenta dias da Quaresma, e este ano de uma Quaresma diferente do que estávamos habituados,  devido à situação de pandemia em que nos encontramos e ao isolamento social a que todos nós fomos obrigados, eis que nos encontramos a celebrar a Vigília Pascal, a viver e a celebrar esta noite santa, a maior de todas as noites, em que, como escutávamos no Precónio Pascal, se afugentam os crimes, se lavam as culpas, se restitui a inocência aos pecadores, se dá a alegria aos tristes, se estabelece a concórdia e a paz.
Se lá fora é uma noite igual a todas as noites, para nós é uma noite diferente, uma noite de luz, simbolizada no círio pascal e nas velas que acendemos, é uma noite de água, dessa água que nos regenera no baptismo, é uma noite de festa, cantamos e louvamos o Senhor, é também uma noite de esperança, pois a Palavra de Deus que escutámos revela-nos a bondade de Deus, de um Deus que nos ama, que se compadece de nós, que nos concede novas oportunidades, que nos liberta do pecado e da morte pela Paixão e ressurreição do seu Filho Jesus.
O relato da criação que escutámos na primeira leitura mostra-nos a obra que Deus realizou, mas sobretudo e de modo incisivo mostra-nos a bondade e a beleza que Deus encontrou nela. Feita com amor, a bondade de Deus está ali presente, e o homem criado à sua imagem e semelhança é o espelho mais perfeito dessa bondade.
O nosso orgulho, as nossas aspirações de poder, o nosso desejo de autossuficiência, conduziram-nos à terra da escravidão, simbolizada na escravidão do povo de Israel no Egipto; contudo, essa escravidão não é do agrado de Deus, não é manifestação da sua glória, e por isso Deus liberta o povo, fá-lo atravessar o mar vermelho e deixa-o ver destruídos os seus opressores. Hoje, ainda hoje, Deus continua a não se satisfazer com as escravidões em que nos envolvemos, com as idolatrias que construímos.
E se ao povo de Israel Deus ofereceu uma Lei no monte Sinai, um caminho de vida como nos é dito, nas leituras dos diversos profetas que escutámos esta noite, percebemos que Deus continuou a oferecer caminhos de vida, que de cada vez que o povo se desviava e era infiel à aliança que tinha estabelecido com Deus,  que de cada vez que o homem se desvia da sua plenitude divina, Deus continua a oferecer caminhos de vida.
Podemos perguntar-nos se toda esta situação que estamos a viver não é uma oportunidade que Deus nos oferece para sairmos dos caminhos de perdição em que nos tínhamos envolvido em situações de escravidão. Não é que Deus queira o mal, o sofrimento ou a morte, mas a criação da qual fazemos parte, que é boa e bela, tem princípios, tem regras, tem um mecanismo de funcionamento que nos pode conduzir ao bem, mas quando não respeitado nos conduz inevitavelmente à destruição, ao mal.
Hoje, e tal como nos dizia o profeta Baruc, Deus quer que aprendamos a prudência, que sejamos prudentes, pois dessa forma encontramos a longevidade e a vida, encontramos a sabedoria que nos faz apreciar a bondade e a beleza de Deus na sua criação.
O nosso irmão Frei Xavier, de grata memória, dizia muitas vezes que o seguro morreu de velho, que o desconfiado ainda cá anda e que a dona prudência foi ao funeral dos dois. Deus quer que aprendamos a prudência.
Também hoje, e como nos dizia também o profeta Ezequiel, Deus quer dar-nos um coração novo, um espírito novo, quer retirar-nos o coração de pedra que nos encerra no nosso egoísmo e orgulho, na nossa autossuficiência. Deus, como no primeiro momento da criação, quer-nos humanos, mais humanos, mais atentos uns aos outros, pois em cada um de nós está não só a sua imagem e semelhança, mas a sua verdadeira presença, nós somos templos de Deus.
Não estaríamos todos nós demasiados absorvidos nas coisas do mundo? Não nos teríamos esquecido que somos habitantes de uma casa comum, que se chama terra, e que como nos dizia o Papa Francisco, se a casa esta doente, está a cair, nós estamos tão doentes como ela?
Não nos teríamos esquecido que somos parceiros, sócios, companheiros na construção da felicidade e do bem de todos? Que sozinhos podemos ir mais longe, mas que de mãos dadas, ainda que apenas cheguemos mais perto, vamos mais fortes?
Nós próprios, a nossa comunidade de Cristo Rei, não está mais enriquecida depois desta situação que estamos a viver? O facto de celebrarmos todos os dias a Eucaristia comunitária, de rezarmos as Laudes na igreja, que irmãos nossos nos possam acompanhar ainda que de longe, não fez com que estejamos mais fortes, mais unidos? Não somos mais sinal de Deus? E não estamos mais fiéis à missão a que o Senhor nos chama?
O grande mistério que celebramos esta noite e que São Paulo nos recorda na Carta aos Romanos, é que todos nós fomos baptizados em Cristo, fomos sepultados na sua morte e tal aconteceu para vivermos a sua ressurreição, para vivermos uma vida nova cujas consequências e efeitos não só se fazem sentir já no presente, mas têm repercussão na eternidade.
Celebrar a Páscoa da ressurreição de Jesus é um apelo, um convite a renovar o espírito de cada um de nós, a olhar o Deus que nos ama como Pai, que nos convoca a colaborar na sua obra, que nos deseja em cada Páscoa uma vida nova, mas também em cada dia que sejamos renovados no corpo e no espírito, cuidando uns dos outros, porque inevitavelmente no passado, no presente e ainda mais no futuro estamos em rede, dependemos uns dos outros; e, ou construímos um mundo como pessoas, cuidando uns dos outros, ou desapareceremos na voragem do tempo.
Que o Senhor nos ilumine e fortaleça, para sermos capazes de estar atentos não só às solicitudes dos nossos irmãos, mas também aos pequenos sinais que Deus vai colocando na nossa vida para nos renovarmos e construirmos o seu Reino.

Ilustração:
1 – Ressurreição de Jesus, Anónimo, Maria Laach am Jauerling, Áustria.
2 - Ressurreição de Jesus, Pietro Novelli, Museu do Prado, Madrid.


domingo, 5 de abril de 2020

Homilia Domingo de Ramos e Paixão do Senhor


Queridos irmãos
A leitura do Livro de Isaías que escutámos, dizia que o profeta recebeu a graça de falar para que saiba dizer uma palavra de alento aos que andam abatidos. É também o que pedimos a Deus para nós e que desejamos apresentar-vos hoje. Uma palavra de alento, de conforto, nestes tempos de doença, de sofrimento, de solidão, de pandemia em que vivemos.
Estamos a viver um Domingo de Ramos de forma inusitada, confinados às nossas casas, sem a possibilidade de nos reunirmos para receber a bênção sobre nós e os nossos ramos, de aclamarmos o Senhor com as nossas procissões, de participarmos física e presencialmente na celebração da Eucaristia.
Esta situação, esta falta que experimentamos, não é no entanto motivo para não vivermos este domingo de forma especial e darmos início com ele à Semana Santa. Todos nós fomos convidados ao longo dos últimos dias a assinalar este dia e esta festa através das mais diversas formas, com uma cruz, uma oração, uma leitura bíblica, tantos modos que nos ajudam a viver interiormente o que exteriormente celebrávamos, e hoje não é possível.
Neste Domingo de Ramos, com o qual se inaugura a Semana Santa, a liturgia evoca os acontecimentos da entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e a sua paixão, acontecimentos do passado; mas esta mesma liturgia faz também com que o passado se torne presente e actual, e assim os cristão são hoje como naqueles dias actores do mesmo drama.
Jesus entra em Jerusalém como o Messias esperado, como um herói, e a aclamação eufórica da multidão é uma manifestação das expectativas humanas, políticas, revolucionárias. Aquela gente esperava uma reviravolta na situação das suas vidas de opressão e subjugação.
Hoje, também nós aclamamos Jesus, mas não já por qualquer expectativa política ou revolucionária; aclamamos Jesus porque ele é o nosso herói, é o nosso vencedor, ele entrou em Jerusalém para realizar um combate contra as forças do mal e da morte, e nós estamos completamente certos da sua vitória, e da nossa própria vitória com ele no mesmo combate que travamos.
A aclamação que hoje realizamos é fruto da certeza de que Jesus no seu suplício, na sua paixão e morte, estendeu uma armadilha na qual aprisionou o mal e a morte, que através da sua paixão e morte nos abriu um caminho, ainda que misterioso, para a vitória e a vida plena.
Esta certeza e confiança fundamentam-se nesta verdade de que nos falava São Paulo na Carta aos Filipenses, Cristo Jesus que era de condição divina não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo para nos libertar do mal e da morte. Aquele que tinha todo o poder abandonou-o para se entregar nas mãos dos homens e resgatá-los, através desta entrega, da sua avareza e cobiça de poder e glória.
O Evangelho de São Mateus deixa-nos ver nas entrelinhas esta mesma dinâmica quando apresenta Jesus a entrar em Jerusalém montado num jumentinho, a solicitar a sala da casa de um amigo para poder celebrar a Páscoa. São sinais da humildade, do servo que não tem sequer onde repousar a cabeça, do pobre que apenas confia em Deus. No entanto, a forma como Jesus indica aos discípulos como obter tanto o jumentinho como a sala indiciam um poder real, uma autoridade, uma dignidade que não pertence a todos. É o chamado direito de aposentadoria, que os reis deste mundo utilizaram, e ainda hoje se pode utilizar na chamada requisição civil, de tomar posse de algo para o serviço do rei ou do comum da nação. Como um rei todo poderoso Jesus manda tomar o jumentinho, pede a sala para celebrar a festa da Páscoa.
Este poder e este direito podiam ser utilizados por Deus para nos fazer seus filhos, para nos confinar a viver bem os seus mandamentos, restringidos das nossas liberdades e da nossa vontade. Mas Deus ama-nos e considera a nossa natureza, a nossa semelhança com Ele, e por isso confia na nossa liberdade, na nossa vontade, não nos obriga a nada, mas apenas se insinua, se oferece, se apresenta como alguém a quem podemos acolher.
Tal como ao dono da casa do Evangelho que escutámos, Jesus continua a dizer-nos, é em tua casa que eu quero celebrar a Páscoa com os meus discípulos, é em tua casa que eu quero fazer a festa da vida, contigo e com os outros teus irmãos. Humildemente Jesus ver fazer a festa connosco.
Os ramos que tradicionalmente utilizamos neste domingo, e que certamente cada um de nós colocou nas suas casas, simbolizem para nós essa disponibilidade para acolhermos Jesus que vem ao nosso encontro.
Simbolizem também as boas obras de caridade, que de uma forma mais substancial e duradoira concretizam o nosso acolhimento de Jesus na pessoa dos nossos irmãos.
Simbolizem igualmente a nossa oração mais intensa nestes dias, o olhar mais introspectivo sobre as nossas realidades pessoais, o exame de consciência que fazemos para estabelecer propósitos novos para a nossa vida.
Simbolizem o nosso progresso, a nossa caminhada com Jesus, o que desejamos viver na caridade, na amabilidade, no serviço sem contrapartidas e para todos.
Se procurarmos diligentemente viver como discípulos de Cristo, confiados que o Senhor Deus vem em nosso auxílio, não ficaremos desiludidos e chegaremos certamente à festa da Páscoa da Ressurreição de Jesus com mais vida, com outra alegria, uma outra esperança para o futuro.

Ilustração:
1 – Entrada de Jesus em Jerusalém, iluminura de Enrico di Amsterdam, Gradual, Duomo de Cesena, Biblioteca Malatestiana, Itália.
2 – Entrada de Jesus em Jerusalém, de Andrey Mironov.