domingo, 28 de fevereiro de 2021

Homilia Domingo II da Quaresma - Ano B

Caríssimos Irmãos

No domingo passado a leitura do Evangelho conduzia-nos ao deserto e às tentações de Jesus, hoje eleva-nos ao monte Tabor, conduz-nos à transfiguração de Jesus. Um monte e um acontecimento que não podem deixar de ser colocados no horizonte de outro monte, de outro acontecimento, o monte do Gólgota e a crucifixão de Jesus.

E se alguma dúvida pudesse existir sobre este alinhamento, esta permuta de montes e acontecimentos, a Liturgia da Palavra, na leitura do Livro do Génesis com o sacrifício do filho de Abraão, bem como a leitura da Carta aos Romanos, com a referência à entrega do filho por parte de Deus Pai, desfazem-nos essas dúvidas.

Ao dar os primeiros passos na nossa caminhada para a Páscoa é-nos oferecida uma linha de orientação, um horizonte; o que podemos sofrer, o sacrifício que podemos viver, as mortes que podemos experimentar, estão precedidas pela luz da glória, pela transfiguração. Tal como acontece no relato do sacrifício de Isaac sabemos que Deus providenciará, é dessa forma que responde Abraão ao filho quando este lhe pergunta pelo cordeiro para o sacrifício. Deus providenciará o que nos falta.

A proximidade do monte Tabor e da transfiguração com o monte Gólgota e a crucifixão de Jesus conjuga-se, no entanto, em opostos, em contrários, pois se no monte Tabor Jesus é transfigurado pelo grande amor do Pai, no monte Gólgota ele é desfigurado pelos nossos pecados. E num e noutro momento os nossos olhos ficam cegos perante os acontecimentos e o mistério que os envolve. E por causa desta cegueira, as nossas atitudes e os nossos gestos sofrem igualmente uma inversão, padecem de contradição, e acontece-nos o que os Evangelhos nos relatam das testemunhas presentes aos acontecimentos.

Assim, no momento da transfiguração, quando se manifesta a glória de Jesus, os três discípulos presentes ficam cheios de medo, apavoram-se perante o que presenciam, esquecendo-se de adorar o Senhor, como seria normal num momento como aquele. Neste contexto, não nos podemos esquecer que Pedro, que está presente, uns dias antes tinha afirmado a sua fé respondendo que Jesus era o Messias, o Filho de Deus. Este acontecimento comprova-lhe a afirmação realizada anteriormente. A atitude não deveria ser de medo. Por outro lado, no momento da elevação da cruz no alto do Gólgota, no momento total da desfiguração, quando todos fogem, são aqueles que são considerados os mais fracos, as mulheres e o discípulo amado, que permanecem e adoram, sem medo. Quando já nada há a esperar permanece o amor.

As atitudes de uns e outros perante os acontecimentos e a sua dimensão extraordinária mostram-nos a fatalidade da nossa condição de discípulos, de crentes, de homens e mulheres que vivem em contradição, pois temos a consciência de que não vivemos fielmente como Deus nos convida e espera de nós, e tão pouco vivemos como é habitual viver no mundo.

Esta situação paradoxal conduz-nos à tentação de Pedro, de querer aprisionar os momentos, os momentos de felicidade, pelo prazer e pela alegria que nos trazem, mas também os momentos de dor, quando nos recusamos a assumir essa dor e a fechar a ferida, quando não acreditamos que temos força para superar a dor. Afinal como é bom estarmos aqui, nesta experiência feliz, mas também na dor, porque mudar e sair da dor exige força, uma transfiguração de nós.

Esta tentação da materialidade do momento, se assim se pode dizer, está à nossa porta, tal como a sabedoria, e se temos de combater a tentação, temos também de nos agarrar à sabedoria, deixar-nos guiar por ela, pois como noz diz no livro de Eclesiastes há um tempo para tudo debaixo do sol, um tempo para colher pedras e um tempo para as arremessar, um tempo para chorar e um tempo para rir.

E Deus sabe das nossas fraquezas e da nossa necessidade de pararmos, de colhermos forças, para continuar a caminhada, a luta da vida. Deus aprova e acolhe os nossos momentos de descanso, sabe como nos são necessários, mas não podemos ficar aí, nem podemos desanimar, há um futuro para viver.

Por isso no início da Quaresma o mistério da transfiguração, por isso em cada semana o domingo, para nos darmos tempo, para nos fortalecermos, animarmos. Deus não procura o sacrifício do que amamos, mas oferece-nos o seu Filho amado, para que o escutemos, para que experimentemos o seu amor, para que nos deixemos conduzir pela sua palavra e por meio dela transfigurar-nos e transfigurar a realidade à nossa volta.

Ilustração:

1 – Transfiguração, de Francesco Zuccarelli, Kunsthaus Lempertz.  

 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Registo do Óbito de Frei Francisco Pinto Machado


No ano de 1860 falecia no Porto na Rua das Hortas, Frei Francisco Pinto Machado, um dos membros da Comunidade do Convento de São Domingos do Porto no momento da exclaustração.

Natural da Casa da Torre da Pousada, foi Vigário in Capite do Convento de Almeirim em 1820 e encontrava-se a banhos por razões de saúde em Leça, aquando da entrada do exército libertador na cidade do Porto em 1832

Assento do Óbito na Paróquia de Nossa Senhora da Vitória do Porto:

Aos oito dias do mês de Março do ano de mil oitocentos e sessenta às quatro horas da manhã na casa número cento e cinquenta da rua das Hortas, faleceu repentinamente o Reverendo Padre Francisco Pinto Machado, Egresso da Ordem de São Domingos, de idade de setenta anos, natural da Casa da Torre da Pousada Concelho de Resende, Paroquiano desta freguesia da Vitória desta cidade, filho de José Pinto Machado Torre, e de Dona Maria Vitória Teixeira Pinto Machado, neto paterno de ignora-se de quem, e no dia seguinte foi a sepultado no Cemitério da Lapa e materno de ignora-se quem, fez testamento, e não deixou filhos. E para constar lavrei este assento em duplicado que assinei. Era ut supra.

O Padre João Diniz

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Registo do Óbito de Frei António de São Joaquim Almeida


No dia 26 de Novembro de 1845 falecia no Porto, na Rua da Ferraria, Frei António de São Joaquim Almeida, natural de Guimarães, e membro da comunidade do Convento de São Domingos do Porto aquando da entrada das tropas do exército libertador em 1832, vindo a ser preso nessa ocasião por se ter retirado do convento. Depois de alguns dias preso regressou ao convento, do qual veio a sair aquando da ordem de despejo, ficando a residir no Porto depois disso.

Registo do falecimento de frei António de São Joaquim Almeida na freguesia e paróquia de Nossa Senhora da Vitória do Porto.

Aos vinte e seis dias do mês de Novembro de mil oitocentos quarenta e cinco faleceu da vida presente com todos os Sacramentos o Reverendo Padre António de São Joaquim Almeida, Egresso da Extinta Ordem de São Domingos, natural de Guimarães, e morador na Rua da Ferraria desta freguesia da Vitória de idade de oitenta e um anos, e no mesmo dia foi sepultado no Cemitério dos Clérigos. E para constar fiz este assento que assino era ut supra.

O Abade Faustino Gualberto Lopes

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Homilia Domingo I da Quaresma - Ano B

Queridos Irmãos

Estamos a iniciar a Quaresma, este tempo especial de quarenta dias que nos vai ajudar a preparar o coração para celebrar a Páscoa. Como certamente já todos experimentámos é um tempo breve, passa rapidamente, e quando chegamos ao fim da Quaresma temos o sentimento que naquele momento é que devíamos estar a começar. Por outro lado, este mesmo tempo que passa rapidamente torna-se mais demorado, lento, se verdadeiramente nos empenhamos em fazer algo diferente, quando esbarramos nas resistências do que desejamos converter na nossa vida. É a relatividade do tempo.

Mas é neste tempo relativo que somos impelidos ao deserto, a esta experiência de combate, de prova. E não podemos dizer que é um convite que nos é feito por Deus ou pela Igreja, é uma realidade inerente ao nosso próprio baptismo, realidade presente ao longo de toda a nossa vida, mas que Deus e a Igreja nos convidam a tomar consciência com esta experiência demarcada no ritmo do ano, com a caminhada da Quaresma.

Os relatos que escutamos nos Evangelhos da passagem de Jesus pelo deserto seguem-se imediatamente ao baptismo, é o Espírito que conduz Jesus ao deserto, poderíamos dizer que é uma consequência imediata do seu baptismo. Mas surpreendentemente, este deserto a que Jesus é conduzido, é um deserto bastante povoado, ali encontramos os animais selvagens, os anjos de Deus, o próprio demónio que tenta Jesus. O relato de São Marcos que hoje lemos é bastante lacónico na apresentação deste acontecimento, poderíamos dizer que o deixa na privacidade e intimidade da vida de Jesus, mas não deixa de apresentar a diversidade de presenças no deserto.  

Esta diversidade de presenças no deserto mostra-nos que o deserto não é um lugar de solidão, que não vamos ao deserto para travar um combate solitário. As histórias dos Padres do deserto mostram-nos como o deserto é bastante povoado. Ao imaginarmos a Quaresma como um deserto, um tempo e espaço de combate, temos de assumir que também aqui não estamos sós. Na Quaresma toda a igreja entra connosco no deserto, no combate, cada um de nós acompanhado dos outros irmãos, dos anjos de Deus, da própria natureza, do tentador.

Neste sentido, podemos perguntar-nos desde já, com quem vamos fazer o combate desta Quaresma, quem vamos acompanhar ou nos vai acompanhar, não esquecendo que à luz do que escutámos na primeira leitura do Livro do Génesis, todas as criaturas que saíram da arca depois do dilúvio estavam incluídas na Aliança de Deus, podemos dizer, estavam sob a sua bênção. Vamos acolher os outros como bênção e ser bênção para eles nesta Quaresma?

Este combate que vamos desenvolver na Quaresma não pode ser visto como uma armadilha que Deus nos estende, para aferir do nosso bom comportamento, da nossa boa vontade e disposição. Como sabemos Deus não quer a morte do pecador, mas que ele viva, e viva dignamente. A prova do deserto é como as provas fotográficas, como as provas das serigrafias, em que se imprime uma vez para ver o que necessitamos ajustar em termos de cor, de luz, que ponto vermelho do olho necessitamos retocar. A prova do deserto é para ajustar o nosso olhar sobre nós próprios, é um acerto da focagem para a melhor imagem que podemos captar de nós e dos outros.

No combate do deserto, na Quaresma e igualmente no resto dos outros dias do ano, fazemos a experiência do confronto com o que há de selvagem em nós, essas forças tantas vezes indomadas que deixamos nos dominem no orgulho, na inveja e no egoísmo, concedendo desta forma poder ao mal. Contudo, não podemos esquecer que também elas fazem parte da Aliança de Deus, devem ser vistas com os olhos de Deus, e paralelamente a elas habitam em nós as graças de Deus, os seus dons, e no nosso combate somos acompanhados pelos anjos de Deus.

Queridos irmãos, temos assim um vasto projecto pela nossa frente para estes quarenta dias, um projecto que nos envolve interiormente e nos envolve com os outros, um projecto do qual não podemos desistir à primeira resistência, à primeira falha, tal seria dar-nos por derrotados antes do tempo, ou melhor, derrotados face a uma vitória que já nos foi alcançada e que somos convidados a partilhar, pois como nos dizia São Pedro na sua carta, Cristo morreu pelos nossos pecados, para nos conduzir a Deus.

Que nesta caminhada de Quaresma que agora vamos iniciar possamos ter essa alegria de sentir os anjos de Deus caminhando e lutando connosco, anjos que tantas vezes são homens e mulheres como nós, frágeis, pecadores, mas que acreditam que podem ser melhores, que querem ser melhores, e junto dos quais também nós procuraremos ser anjos de caminhada e combate.  

Ilustração:

1 – Cristo no deserto, de Motetto da Brescia, Metropolitan Museum of Art, Nova York.

 

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Homilia Domingo VI do Tempo Comum - Ano B

Caros Irmãos

O Evangelho de São Marcos que escutámos apresenta-nos a cura de um leproso, um acontecimento que frequentemente lemos em associação ao pecado, em que associamos a lepra física à lepra espiritual, ao pecado.

Esta leitura é, no entanto, limitada, poderíamos dizer falaciosa, uma vez que nos conduz a uma espécie de espiritualização dos gestos e milagres de Jesus, a um desvio do olhar do que verdadeiramente acontece.

Não estamos perante a cura de um cego ou um mudo, de um paralítico ou de um endemoninhado; a cura do leproso, o toque de Jesus naquele homem, tem consequências imediatas, também ele passa ao estatuto de impuro, e como nos diz o Evangelho, fica impedido de entrar às claras nas cidades.

Uma história apócrifa conta que o leproso ao pedir a ajuda de Jesus, ao pedir a sua cura, justifica o seu estado partilhando que o mal lhe adveio por ter caminhado com outros homens e por se ter sentado à mesma mesa, que o seu mal e a sua marginalização são fruto do convívio com os outros.

Esta explicação e justificação é bastante ilustrativa do que está em causa neste milagre, nesta cura, e conduz-nos ao que o relato do Evangelho nos apresenta de necessidade de acolhimento da comunidade. Tal como estava estipulado no Livro do Levítico, que escutámos na primeira leitura, não bastava ficar curado da lepra, era necessária uma certificação por parte das autoridades religiosas, era necessário um sacrifício, um ritual de integração social, que Jesus recomenda ao leproso que cumpra.

A lepra ao tempo de Jesus era motivo de marginalização, de exclusão social, e ainda hoje, passados dois mil anos, e quando temos já a lepra confinada a pequenos grupos e locais do mundo, o mecanismo de exclusão e marginalização continua a funcionar. No contexto desta pandemia que vivemos, quantos dos nossos irmãos não sentiram na pele essa marginalização, e mesmo antes dela quantas realidades, problemas de saúde física, psíquica, de idade, de diferença cultural, não estavam envolvidas em marginalização e exclusão?

Continuamos ainda hoje a gravar essas marcas na pele de cada um de nós, nesse órgão que nos defende como fronteira em relação aos outros, mas que é também porta para o acolhimento. Diz-nos o Livro do Génesis que quando o homem se descobriu nu, depois do pecado, Deus lhes fez uma roupas de pele para que pudessem continuar a viver. A pele é fronteira de proteção do nosso interior, mas é também o veículo para a convivência de uns com os outros.  

Sofrer de lepra é estar impedido de ser tocado, desse toque que tanto sentimos necessidade, que nos é fundamental, e que também neste contexto da pandemia experimentámos em termos de carência e importância. Quantos abraços entre amigos ficaram por dar, quantos abraços entre avós e netos estão em falta, quantas mãos estendidas tivemos de recolher porque não podemos tocar o outro, para não sermos veículos de contaminação? E como nos demos conta da importância e da necessidade que temos desses gestos, desses toques, da pele na pele, do toque que nos humaniza.

Mas se Jesus toca o leproso pela carência de toque, pela necessidade de sermos tocados para sermos outros, o outro, de imediato lhe recomenda o cumprimento do estipulado pela lei, porque afinal não basta apenas o toque, a cura milagrosa, necessitamos de ser integrados na sociedade, no grupo, necessitamos voltar ao convívio dos outros, família, amigos, mundo da escola ou do trabalho. No fundo, necessitamos de muitos toques, um único não basta, necessitamos dos outros, não de apenas um outro.

E é aqui, nesta necessidade dos outros, que nos cruzamos com o que nos dizia São Paulo no trecho da Carta aos Coríntios que ouvimos, que o que quer que seja que façamos seja para o interesse de todos, pelo bem de todos, pela salvação de todos e desta forma para a maior glória de Deus. Não vivemos sozinhos nem sobrevivemos pensando apenas em nós. Como encontramos no Livro do Génesis Deus viu que tudo o que tinha feito era bom, menos o homem estar só.

Dentro de dias vamos iniciar a Quaresma, esse tempo de preparação para a Páscoa da Ressurreição de Jesus, e como em outros anos somos convidados e desafiados a gestos de conversão, de mudança de atitude, a assumir claramente a corpo ressuscitado que somos, a pele divinamente dignificada pelo toque de Deus em Jesus.

Que os nossos propósitos de gestos e atitudes de conversão tenham presentes esta dimensão tão humana do toque, que nos saibamos tocar, cuidar na pele que nos envolve, protege e comunica, desde a pele macia dos bebes à pele enrugada dos nossos pais e avós; e através destes toques e gestos saibamos acolher e integrar aqueles que por qualquer razão possam ter experimentado a marginalização, a exclusão, o peso da solidão na sua pele.

Tal como Jesus, que arriscou e não teve medo de tocar o leproso, ainda que ficasse marcado pela impureza, também nós não nos deixemos intimidar e arrisquemos acolher o outro na nossa pele com as marcas da sua pele.

Ilustração:

1 – Jesus cura o leproso, Gravura em madeira do século XVI.

NOTA: Interessante a máscara do leproso, à semelhança das nossas.  

 

 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Registo do Óbito de Frei José de Santa Rosa de Lima Almeida



Frei José de Santa Rosa de Lima Almeida, assistente no Convento de São Domingos de Guimarães, permanece na cidade após a exclaustração e aí vem a falecer como podemos constatar no Livro de Óbitos da Paróquia de Nossa Senhora da Oliveira em 1837.

O Reverendo Padre Frei José de Santa Rosa de Lima Almeida, Sacerdote Egresso do extinto convento de São Domingos desta Vila da Ordem dos Pregadores, morador na Rua de Santa Maria desta freguesia, faleceu com todos os Sacramentos no dia nove de Dezembro de mil oitocentos trinta e sete; não me consta que fizesse testamento, e foi enterrado no claustro de São Domingos. Do que fiz este assento era ut supra.

O Cónego Cura José Joaquim d’Abreu

Homilia Domingo V do Tempo Comum - Ano B

Queridos Irmãos

Os Evangelhos apresentam-nos muitas vezes personagens fugazes, homens e mulheres que se encontram com Jesus, marcam um momento e definem um acontecimento, mas depois nunca mais os encontramos. É o caso da sogra de Pedro que aparece nesta passagem de Jesus por Cafarnaum, mas depois nunca mais se ouve falar dela. E, mais surpreendente, o Evangelho guarda memória dela, deixando-nos, contudo, completamente na ignorância sobre a família de Pedro, o primeiro dos apóstolos. E, mais surpreendente ainda, é este milagre de Jesus não aparecer ligado a nenhum ensinamento, não haver uma palavra dele sobre o que fez, temos apenas uma cura, simplesmente.

Esta situação pode interrogar-nos, deixar-nos na dúvida, mas é bastante reveladora da nossa condição humana no momento de fragilidade, e do mistério da encarnação do Filho de Deus no compromisso com essa fragilidade. Assim, e como tantos de nós já experimentámos, em momentos de dor e sofrimento, as palavras são vãs, por mais que as procuremos para expressar a nossa compaixão, o nosso sentimento de solidariedade, elas ficam aquém do que sentimos ou desejamos expressar. O gesto de Jesus para com a sogra de Pedro revela-nos que mais que as palavras está a mão, o dar a mão, um abraço forte, o acolher o outro.

É o calor do nosso corpo que se transmite, a ternura, a experiência de que não se está só, mas há um porto de abrigo, alguém que para além dos limites da minha própria corporeidade e fragilidade me acolhe, me sustenta, me ergue, e me liberta. Nestes tempos que vivemos e nos quais fomos obrigados a distanciamentos, como sentimos a falta de uma mão de apoio, de um abraço, e como devemos cuidar disso com diligência, sem medo. É humanamente essencial, tanto como o ar que respiramos.

Regressando à cura da sogra de Pedro, e apesar de não haver uma palavra ou um ensinamento objectivo da parte de Jesus, rapidamente vemos que aquele milagre não foi um acto privado, isolado, pois logo se espalhou a novidade e trazem imediatamente outros doentes a Jesus, que também foi afectado pelo realizado, na medida em que se gera nele a consciência da urgência de ir a outros lugares, de anunciar o Reino a outros homens e mulheres. Como encontramos no trecho da Carta de São Paulo que lemos, nasce a imposição, o dever de anunciar aos outros o experimentado.

Esta urgência e imposição, inerente à condição de baptizados de cada um de nós, obriga-nos a pensar o que é a nossa evangelização, o que estamos a fazer e como o estamos a fazer para anunciar a Boa Nova de Jesus. E neste processo de análise esbarramos inevitavelmente com as questões do mal, do pecado, do sofrimento e da injustiça, da morte dos inocentes, das vítimas da violência, com o sentimento de culpa e as frustrações face ao esperado de Deus, como acontecia com Job que escutámos na Primeira Leitura. Afinal, que Deus é o nosso que parece não se interessar pelos seus filhos, que não interfere no alívio do nosso sofrimento, que não responde às nossas demandas e pedidos?       

Muitas vezes, e vamos encontrando também essa resposta neste contexto de pandemia que vivemos, atiramos com as culpas para cima do pecado, quando todos também vamos sabendo que a consciência do pecado está bastante diluída, que é um absurdo culpabilizar o que não se conhece e reconhece, o que não se vê. Como podemos alertar o outro para as consequências do mal que faz se ele não tem consciência de que é um mal?

Neste contexto e perante esta realidade temos de voltar à experiência de Jesus e à discrepância entre o que ele ensinava e vivia e o que os seus contemporâneos percebiam, o abismo entre as expectativas do reino messiânico e as acções de Jesus na concretização desse mesmo reino. Jesus vem trazer a liberdade, mas não liberta do jugo opressor dos romanos, Jesus mostra o Reino messiânico presente entre os homens, mas através de sinais de humildade e serviço ao contrário da força e do poder que todos esperavam.

A resposta e a acção de Deus na nossa libertação, como dizia o padre Vanhoye, jesuíta, concretiza-se através da semelhança, dissemelhança e superioridade, ou seja, Jesus faz mais, melhor e diferente do que os homens esperam, das expectativas de cada um de nós, e esta consciência deve estar presente na nossa vida, não só espiritual, mas também apostólica.

Deus responde sempre, embora de uma forma inusitada, e por isso a nossa atitude deve ser de abertura e disponibilidade para a novidade e surpresa da sua resposta.  O caminho com Deus é uma aventura, uma descoberta, e a essa aventura ele associou a aventura dos nossos irmãos, os outros homens e mulheres que caminham connosco e que muitas vezes com uma mão um abraço, um olhar, nos erguem e não nos deixam prostrados no mal e na angústia.

Como São Paulo, que esta semana que iniciamos nos saibamos fazer fracos, humildes, para ganharmos os outros, para não deixarmos ninguém para trás no nosso caminho para a plenitude.

 

Ilustração:

1 – Jesus cura a sogra de Pedro, de John Bridges, Birmingham Museum of Art, USA.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Baptizados e padrinhos à sombra de São Gonçalo de Amarante

Baptizados e Padrinhos à sombra de São Gonçalo de Amarante

 

No princípio de 1809, em Março, ao casal João Inácio e Aniceta Rosa, moradores na Ribeira de Vila Boa, nasce o seu filho Joaquim.

Ao trazê-lo para baptizar na igreja de São Gonçalo é ao Prior do Convento, Frei Joaquim de São José Cardoso que vão pedir que aceite ser padrinho do rebento do casal.

A relação é forte, certamente bastante próxima, e assim no ano seguinte, em 1810, Outubro, quando voltam à igreja de São Gonçalo para celebrar o baptizado do seu novo filho, o António, é novamente ao Prior do Convento de São Gonçalo que voltam a pedir que apadrinhe a recepção do sacramento.

Três anos depois, em Setembro de 1813, para o baptizado da filha Clara, o casal vai optar por escolher alguém mais próximo em termos de vivencia social, o Irmão Converso Frei Manuel António Macedo de Santo António, que três anos depois, em Abril de 1816, vai também apadrinhar o baptizado do quinto filho do casal, o Manuel.

No intervalo entre a Clara e o Manuel nasce um novo homem para a família, o Bernardino, nome certamente adoptado em honra do padrinho Frei Bernardino Peixoto, assistente no Convento de São Gonçalo.

Ao terminar a década, em 1819, no declinar do verão, Setembro, nasce um novo filho, que toma o nome do padrinho Frei António Soriano Álvaro da Fonseca, Procurador do Convento de São Gonçalo.

O casal João Inácio e Aniceta Rosa vão assim escolhendo entre os membros da comunidade assistente no Convento de São Gonçalo de Amarante os padrinhos para os seus filhos, deixando-nos perceber que haveria alguma relação familiar, patronal ente uns e outros.

Reves dados recolhidos no Registo de Baptismos de São Gonçalo de Amarante de 1807 a 1826, à guarda do Arquivo Distrital do Porto