domingo, 27 de setembro de 2020

Homilia XXVI Domingo do Tempo Comum - Ano A

O Evangelho de hoje apresenta-nos novamente o confronto de Jesus com os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo, podemos dizer a elite intelectual e religiosa do seu tempo na cidade de Jerusalém. E uma vez mais Jesus não se intimida perante o seu poder, a sua pretensão de domínio do bem e bem fazer, mas pelo contrário lança-lhes em rosto uma repreensão fortíssima, rebaixa-os na sua presunção ao compará-los com os publicanos e as prostitutas da cidade.

A acusação de Jesus, ilustrada com a parábola dos filhos que obedecem e desobedecem, coloca diante de nós, como colocou diante dos anciãos do povo e príncipes dos sacerdotes para quem falava, esse abismo entre o que é acreditar saber e o saber acreditar. Há homens e mulheres que acreditam saber, enquanto outros sabem acreditar, ou pelo menos procuram acreditar.

Se olharmos para nós, se fizermos um juízo sincero, certamente vamos dar-nos conta que muitas vezes, certamente frequentemente, acreditamos mais saber do que procuramos saber acreditar. Assim, quando vivemos algum momento de dúvida sobre Deus, sobre a vontade de Deus, opomos à angústia gerada por essa dúvida o que acreditamos saber de Deus, ironicamente poderíamos dizer, a nossa fezinha. Quando experimentamos a angústia da morte opomos o que acreditamos saber da salvação, da misericórdia e do juízo de Deus. Quando nos encontramos em algum momento de frustração, de culpa por algo errado que aconteceu, contrapomos o que acreditamos ser a nossa exigência, os nossos esforços, a nossa aplicação para que tudo tivesse funcionado bem.

Podemos dizer que de certa maneira vivemos numa ilusão, pois acreditamos saber um conjunto de coisas, acreditamos saber manejar um mundo que vai muito mais além do que somos e podemos conhecer e dominar. Acreditar que sabemos coloca-nos na superficialidade das coisas, não lhes percebemos nem vivemos o coração.

Para nos libertar desta ilusão Jesus apresenta-nos as mulheres da vida da cidade de Jerusalém e os cobradores de impostos, os marginalizados pela elite, considerados em pecado, excluídos da salvação. É com eles que temos de aprender a saber acreditar, não pelos seus comportamentos desviantes, mas pela consciência do seu nada e a abertura que este nada lhes dá a outra realidade.

Os cobradores de impostos e as prostitutas são pecadores públicos, a sua vida é assumida por todos como um desvio das regras, e assim são excluídos e marginalizados, votados ao aniquilamento. Eles não são nada nem ninguém. E para agravar ainda mais esta marginalização e aniquilamento, eles próprios consideram-se um nada, consideram a exclusão dos outros como um mal menor e suportam-na sem qualquer revolta. Eles não são nada e não sabem nada, não valem nada.

E são estes homens e mulheres que Jesus acolhe, que Jesus apresenta como referência, pois não valendo nada, considerando-se como nada, tiveram disponibilidade e abertura para se abrirem ao convite e apelo de João Baptista à conversão, reconhecem a possibilidade de uma vida nova que lhes é oferecida em Jesus que os olha nos olhos e os ama na sua pequenez. Nas suas misérias, nas suas trevas mais escuras de dor e sofrimento, de culpabilização martirizadora, encontram uma palavra que ecoa sem máscaras, cristalina e luminosa, como a ordem dada a Lázaro que no sepulcro jazia já há dias pestilento, “sai para fora”!

É no deserto do nada, do se saber nada, do ser ninguém, que se pode escutar esta palavra, “vem”; vem para fora, sai da tua miséria, deixa o teu pecado, a tua infidelidade, a tua vergonha, vem para ser, pois essas moradas em que te escondes e te escondem, essas etiquetas que se colam e com tanta dificuldade se retiram, não são a tua verdadeira morada, não são o teu verdadeiro eu, não são a tua marca. Vem, porque podes viver, podes ser, é possível outra vida.

Saber acreditar, procurar saber acreditar, é dispor-se a ouvir uma palavra de vida, é deixar que a ressurreição aconteça nas nossas vidas, que a força do Espírito Santo transforme todas as nossas realidades. De uma forma prática, para vivermos na rotina do nosso dia a dia, saber acreditar é afastar-se do mal, praticar o direito e a justiça, é renunciar às faltas cometidas como nos convida a leitura do profeta Ezequiel, mas é acima de tudo e como nos recordava a leitura da Carta de São Paulo aos Filipenses ser humildes, fazermo-nos pequenos, servos, porque é aos pobres em espírito que está prometida a alegria e a posse do Reino dos Céus.

Ilustrações:

1 – Parábola dos Dois Filhos, de Andrey Mironov.

2 – Cristo e a Pecadora, de Andrey Mironov.

domingo, 6 de setembro de 2020

Homilia XXIII Domingo do Tempo Comum - Ano A

Queridos Irmãos

As leituras que hoje escutámos são particularmente exigentes no que toca às nossas relações humanas, ao nosso convívio e cuidado comum, ao mandamento do amor que devemos uns aos outros, como nos recordava São Paulo na leitura da Carta aos Romanos.

Estas mesmas leituras, na sua exigência, são igualmente uma espécie de guião para a gestão dos nossos conflitos, dos nossos desencontros enquanto homens e mulheres que vivem uns com os outros. E neste sentido o Evangelho de São Mateus é estruturante deste processo.

Jesus começa por nos dizer que no conflito, no desencontro, na ofensa, não há outro caminho a percorrer como cristãos e baptizados que o caminho da reconciliação. Assim, numa primeira etapa, ou momento, somos convidados a identificar a ofensa, a agressão, com aquele que foi o seu instrumento. Necessitamos ir ter com o outro e dizer-lhe o que nos ofendeu, o que nos magoou, pois ele próprio pode não ter consciência disso.   

Quantas vezes não temos consciência da dor e do sofrimento que provocamos nos outros, e isto pura e simplesmente porque desconhecemos a história do outro, os seus traumas, a luta interior que trava consigo próprio. Este conhecimento é um meio caminho para o reencontro, para a reconciliação.

Contudo, para avançarmos neste caminho da reconciliação e do encontro necessitamos da humildade de reconhecer o que também em nós próprios não está bem para que uma palavra ou um gesto do outro nos possa ter ferido. Necessitamos de uma espécie de exame de consciência, um discernimento de nós próprios, e só depois disso com uma outra liberdade podemos ir ao encontro do outro.

Com estes dados prévios podemos acreditar que a escuta será mútua e frutífera, uma vez que com humildade reconheceremos na nossa individualidade o que não está bem, o que feriu o outro e permitiu a ferida, como partilhando as nossas dores sairemos mais fortes, mais comprometidos um com o outro no pacto de não agressão.

Jesus conhece perfeitamente a natureza humana e sabe que muitas vezes, demasiadas vezes, não conseguimos realizar este encontro, as nossas expectativas, o nosso orgulho, algum trauma, não o permitem. E é aí que Jesus nos recomenda a companhia de uma ou duas testemunhas, uma instituição da cultura semita para o aferir da verdade.

Nos casos que conhecemos, e nos quais também nos englobamos, procuramos os outros mais para veicular a ofensa do que propriamente para nos ajudarem com a sua objectividade a encontrar o equilíbrio, a justiça. Como nos recorda frequentemente o Papa Francisco sofremos de uma epidemia que se se chama a coscuvilhice, a maledicência, e que nada contribui para a reconciliação e o reencontro que devíamos procurar antes de nada.

Como baptizados, discípulos de Jesus, se nos é difícil envolver terceiras pessoas nas nossas histórias e querelas, não podemos esquecer que o próprio Jesus é a primeira e mais perfeita testemunha e assim em qualquer projecto de encontro e reconciliação devemos fazer-nos acompanhar dele. Na sua presença poderemos encontrar a verdade, porque em mim e no outro Ele está presente.


Contudo, e apesar destes esforços e diligências, o conflito pode não ficar resolvido, e ainda que levemos a questão à Igreja, a apresentemos na nossa fé em oração, nada se consiga resolver. É neste ponto que a nossa leitura desta passagem do Evangelho se equivoca, se distorce, pois humanamente rapidamente assumimos que a solução é a expulsão, a marginalização, quando afinal o que está em causa, o que Jesus nos pede, é um passo mais ousado, é um salto na fé e na caridade para vivermos com humildade o perdão.

Quando Jesus diz que aqueles que não foi possível reconciliar sejam considerados como publicanos e pagãos está a convidar-nos e a desafiar-nos a um outro tipo de reencontro e reconciliação, ao exercício do perdão, pois só ele pode colocar um fim ao que humanamente não conseguimos resolver. Tal como o bom pastor vai ao encontro da ovelha perdida e o pai sai ao encontro do filho pródigo assim devemos nós fazer.

Pedro entendeu muito bem onde Jesus queria chegar, onde quer que cheguemos, e por isso logo de imediato pergunta a Jesus, quantas vezes se deve perdoar. É o Evangelho que escutaremos no próximo domingo.  

Assim, queridos irmãos, conscientes que o Senhor nos convida a estar vigilantes como sentinelas sobre nós próprios, as nossas fragilidades, as nossas histórias profundas, e sobre os nossos irmãos e as suas fragilidades e limitações, procuremos nesta semana que vamos iniciar pagar tudo com amor, perdoar com humildade, reconhecendo que em muitas diferenças do outro está um prisma diferente de viver e estar, de procurar a felicidade, e nós devemos ser cooperadores dessa busca, uma outra cor da sua paleta de cores assim como ele é outra cor na nossa própria paleta. Um belo quadro faz-se de muitas cores e tons.

Que o Senhor nos ilumine e fortaleça para que assim aconteça.

 

Ilustrações:

1 – O regresso do filho pródigo, Rembrandt, Teylers Museum, Haarlem.

2 – O regresso do filho pródigo, Ivan Korzehv.