domingo, 25 de dezembro de 2016

Oração de Noite de Natal

A porta fechou-se, lentamente, silenciosa, como a não querer perturbar o frio da noite. A chave rodou na fechadura, fixando a barreira entre o interior e o exterior.
Terminada a festa, despedidos os amigos, arrumada a louça que sobre a mesa ficou, aqui estamos nós, apenas os dois, eu e tu.
Olho-te com ternura, e sei que também me olhas com ternura. Sempre me olhas com ternura, mesmo quando eu nem sequer te olho.
Seguro-te nos braços; e o coração estremece. Um desejo enorme, não sei muito bem de quê, percorre-me o corpo. Será o desejo de te ter sempre assim, comigo, nos meus braços, neste tremor de amor?
Mas todos os dias te tenho à minha mão. Aliás, todos os dias te posso acariciar, elevar, contemplar, amar… todos os dias me ofereces essa possibilidade de fusão do teu corpo com o meu. Nas minhas mãos te ofereces, sempre para mim, em silêncio, sem reticências.
Estreito-te nos meus braços, olho-te ainda com mais ternura. Tu vens sempre ao meu encontro, todos os dias, como a aurora resplandecente, e eu distraído não te dou lugar. Centrado em mim, cansado de tanto, não te amo como te é devido.
Estamos os dois, aqui, no meio da noite, rodeados do silêncio de uma noite mágica. É a tua noite. Amas-me! Eu sei que me amas, pelo simples facto de estares aqui. Que o perfume do teu amor me faça correr atrás de ti!

 
Ilustração:
“São José com o Menino Jesus”, de Guido Reni, Museum of Fine Arts de Boston.

domingo, 18 de dezembro de 2016

Homilia do IV Domingo do Advento

Estamos a celebrar o quarto domingo do Advento e o Evangelho de São Mateus apresenta-nos um episódio que à primeira vista podemos pensar que não tem nada a haver connosco, que é uma história que diz respeito apenas a Maria e a José, aos pais de Jesus, e à relação que existia entre eles.
Contudo, quando temos presente o objectivo da redacção dos Evangelhos, quando colocamos no horizonte da nossa leitura que tudo o que nos é narrado nos Evangelhos nos diz respeito, e que a história de José e Maria e os seus problemas conjugais não são uma notícia de qualquer coluna social de um jornal, temos que tentar perceber como nos interpela esta história e o que nela subjaz de desafio de Deus à nossa vida.
Neste sentido, partimos da realidade da vida de cada um dos intervenientes, de José e de Maria, que estavam prometidos em casamento, que certamente tinham sonhado uma vida futura, tinham construído um projecto de família. E nesse projecto pessoal e comum Deus vem intervir de uma forma surpreendente, desconcertante, pois começa por anunciar a Maria que vai ser mãe, quando ela não conhece homem, ou seja, não coabita ainda com José, e depois a este convida-o a aceitar a mulher que tudo aponta ter cometido uma traição ao compromisso matrimonial.
Um e outro, Maria e José, encontram-se face a face com uma alteração de planos, ainda que no fundo, e bem no fundo, não haja qualquer alteração de planos, mas apenas um redimensionamento desses mesmos planos, poderíamos dizer uma requalificação. Maria e José têm no seu projecto de vida a constituição de uma família, a maternidade e a paternidade, e a proposta de Deus, o grande desafio, é que o façam já não por si, poderíamos dizer pelo seu poder, mas o façam pelo poder de Deus, inserindo-se no projecto salvífico de Deus.
E é por esta razão que o evangelista São Mateus insere na narração da vida de Jesus esta história, que podemos considerar quase como uma inconfidência, um deslise pouco simpático relativamente a Maria e a José; mas se o faz é para nos colocar diante dos olhos o desafio de Deus na vida destas duas pessoas, a sua intervenção, que não se opõe nem contraria os planos humanos, mas aos quais oferece uma outra dimensão. No final de contas, é o objectivo do grande projecto de encarnação do Filho de Deus, oferecer uma outra dimensão à vida humana.
Assim sendo, temos que nos interrogar sobre a forma como estamos a acolher esta requalificação que Deus nos oferece, temos que procurar perceber como nos nossos planos e projectos damos lugar a Deus, acolhemos a sua oferta de vida, a qualificação que faz da nossa vida. Deus nãos nos pede que abdiquemos dos nossos projectos e sonhos, das pessoas com quem vivemos, das aspirações que naturalmente temos, mas que os saibamos ver e viver com outra dimensão, com uma qualificação divina, percebendo que tudo nos é oferecido e tudo deve ser oferecido a Deus.
Tal como diz São Paulo na Carta aos Romanos, fomos escolhidos e chamados por Deus para viver esta transfiguração, para viver a vida do Espirito que redimensiona a nossa condição e história humanas, tal como aconteceu com Jesus que era da descendência de David, mas que o espirito constituiu Filho de Deus.
Ao prepararmos o nascimento de Jesus procuremos pois abrir o nosso coração à novidade de Deus, à santidade que nos é oferecida e que altera completamente os nossos projectos e sonhos, as nossas aspirações mais profundas e sérias, pois coloca-os no projecto e na vontade de Deus. Ao acolher o Menino saibamos repelir o medo e a dúvida que nos impedem de viver em santidade, em plenitude humana e divinamente.

   
Ilustração:
“O sonho de são José”, de Vicente López y Portaña, Museu do Prado, Madrid.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Homilia do III Domingo do Advento

Ao iniciarmos a nossa celebração rapidamente nos damos conta de que há algo diferente, o presidente da celebração aparece hoje vestido com um paramento diferente, com uma casula cor-de-rosa. Esta cor, que recorda a aurora, quando o dia começa a despontar, interpela-nos na dimensão do que estamos a celebrar, vai ao encontro do convite formulado pelo profeta Isaías na leitura que escutámos: alegrai-vos pois a vossa salvação está próxima.
A meio da caminhada do Advento somos convidados a alegrar-nos, a tomar uma atitude diferente daquela que possivelmente temos tomado, somos convidados a retomar a esperança com paciência, a acreditar que é possível, a fortalecer as mãos cansadas e a robustecer os joelhos vacilantes. Afinal já fizemos uma boa parte do caminho e vislumbra-se já o final da jornada, o Natal aparece quase ao virar da esquina.
Este domingo, chamado “gaudete” pelo convite à alegria, é uma oportunidade para pararmos, para aferirmos de como temos vivido o nosso Advento, de como nos temos preparado para viver o Natal do Senhor. E ao fazer este balanço podemos deparar-nos com a nossa inconstância, com os nossos fracassos, com os propósitos que estabelecemos e ainda estão longe de serem concretizados, podemos verificar que mudámos muito pouco, que nos temos descuidado na preparação para a celebração do Natal.
Diante destes resultados e cenário é possível que nos questionemos sobre a validade do que nos propusemos, do esforço que despendemos e será necessário ainda despender e podemos por isso soçobrar desanimadamente. Valerá qualquer esforço quando mudo tão pouco ou quase nada na minha vida?
Esta questão da validade do que fazemos está subjacente ao episódio do Evangelho que escutámos, pois também João tinha acreditado em Jesus, tinha criado uma expectativa e por causa dela não se considerava digno de levar as sandálias daquele que considerava como Messias, como escutámos no Evangelho do domingo passado. Contudo, e já na prisão, aquilo que ouve dizer de Jesus está bem longe dessas expectativas, da esperança que tinha acalentado, e por isso sente necessidade de enviar os seus discípulos para que lhe possam confirmar a esperança e a validade do realizado por aquele Jesus.
Jesus responde com imagens e promessas messiânicas que podemos encontrar no profeta Isaías, mas mais importante que as curas e os milagres que possam testemunhar da opção acertada de João quando acreditou em Jesus, o anúncio da boa nova aos pobres é o que marca a diferença, é o que deve levar João a não ter qualquer dúvida relativamente a Jesus. Afinal também ele desde o primeiro momento se encontrava na sua pregação na lógica desta boa nova.
Para nós, também este anúncio da boa nova deve ser a marca da diferença, a realidade que nos alimenta na caminhada e nos faz ver com outros olhos aqueles que podemos considerar num primeiro momento como fracassos. Diante daquilo que não fomos capazes de fazer, que apenas tentámos, não houve um qualquer anúncio de boa nova? Não houve um toque que fez a diferença, que nos faz sentir mais dolorosamente a incapacidade ou infidelidade?
Em cada Advento, em cada Quaresma, de cada vez que nos lançamos num processo de conversão, a Boa Nova do Reino é anunciada à pobreza do nosso ser, das nossas forças, e até da nossa fé vacilante. Afinal, e bem no fundo dos nossos propósitos, estamos conscientes de que Deus vem, que vem para fazer justiça, que caminha connosco para nos salvar e portanto cada tentativa, cada esforço aplicado, é uma aproximação de Deus, é um apelo lancinante à nossa coragem para não temermos nem desanimarmos da aproximação.
Tal como nos diz São Tiago na leitura que escutámos temos que ser agricultores da fé, temos que semear na esperança, temos que acreditar na colheita, e pacientemente esperar que o fruto germine, cresça, floresça e dê fruto. Há todo um processo, um tempo, e como diz Coelet um tempo próprio para cada coisa. A nós, a cada um de nós, compete-nos fazer o devido a cada tempo, pois é por essa dedicação e fidelidade que seremos julgados nos frutos que produzirmos.
Assim, que esta cor festiva dos paramentos que vestimos, que o convite de Isaías a alegrar-nos, o apelo de Tiago a esperarmos com paciência, e a afirmação de Jesus que o menor no Reino dos Céus é maior que João, nos ajudem a retomar a nossa caminhada com mais afinco e coragem, com um espirito mais dinâmico e confiante. Deus vem ao nosso encontro nos passos que damos em sua direcção.

 
Ilustração:
“São João Baptista apresentando Jesus”, de Bartolomé Esteban Murillo, Art Institut of Chicago.  

domingo, 4 de dezembro de 2016

Homilia do II Domingo do Advento

O Evangelho que escutámos apresenta-nos a figura de João Baptista, uma das grandes figuras do Advento, a par com Maria e o profeta Isaías que nos acompanha na primeira leitura de cada domingo deste tempo de preparação para o Natal.
João é um profeta, o último dos profetas, o precursor do Messias, e desenvolve desde o primeiro momento uma actividade que não deixa de nos parecer estranha, inadequada, quando temos presente que João é filho de um sacerdote do templo, como era o seu pai Zacarias.
Respondendo ao apelo de Deus, à sua vocação se assim se pode falar, João abandona aquela que poderia ser também para ele uma carreira sacerdotal, um futuro assegurado, e refugia-se no deserto para desenvolver de forma inusitada, e por isso profética, a actividade que lhe estava destinada no templo de Jerusalém pela linhagem de sangue.
Com João e a sua pregação opera-se uma transferência do centro de gravidade, pois deixa de ser o sacrifício de animais no templo da cidade santa que abre o acesso ao perdão, para passar a ser a conversão do coração, a mudança de atitudes. A pregação de João mostra que não é o sangue de touros e cabritos que pode mudar o coração do homem, mas é o seu desejo de conversão, de ser uma melhor pessoa. Inacreditavelmente, e sem que nada o fizesse supor, João desenvolve no deserto de forma sublime o verdadeiro ministério sacerdotal.
Esta pregação chega hoje até nós e uma vez mais nos recorda que a nossa conversão, que a nossa mudança de vida, a nossa conformidade com a mensagem de Jesus, não se realiza se não tivermos o coração aberto para tal, se não aplicarmos a nossa vontade e desenvolvermos algum esforço para que assim aconteça. Não é fora de nós que a conversão acontece, mas no nosso interior, no nosso coração.
E esta conversão, esta alteração da nossa vida, não é para vivermos um retorno à idade paradisíaca, a um tempo ou mundo em que as metáforas do profeta Isaías nos podem conduzir de uma forma imediata. No pensamento bíblico não há hipótese para a reencarnação, para o mito do eterno retorno, porque a vida e a história são processos que apenas avançam.
Assim, quando o profeta Isaías nos diz que o lobo viverá com o cordeiro, para apenas mencionar umas das realidades prometidas, não está a falar de um paraíso, mas de um mundo futuro, de uma consequência de um facto extremamente importante e significativo como é o da redenção da humanidade, da obra da criação operada pelo Filho de Deus.
Esta mesma ideia está presente na Carta de São Paulo aos Romanos que escutámos, embora não como um projecto ainda a realizar, mas uma realização já alcançada e portanto exigente para com todos aqueles que dela fazem parte, nela se integraram pela fé em Jesus Cristo.
Quando São Paulo escreve aos romanos, a comunidade cristã atravessa momentos muito duros, poderíamos dizer uma tragédia face à incapacidade de acolher aqueles que tinham sido expulsos da cidade de Roma. No ano 49 o imperador Cláudio tinha expulsado os judeus de Roma devido aos conflitos internos da comunidade por causa de um tal Cristo. Uma década depois quando o regresso é possível a comunidade oriunda dos pagãos não consegue aceitar aqueles que tinham sido expulsos.
Perante esta situação São Paulo apela à conversão, à abertura do coração e ao acolhimento, pois cada um foi acolhido de forma distinta mas pela mesma pessoa, Jesus Cristo. Se os judeus foram acolhidos pela fidelidade de Deus, os pagãos foram acolhidos pela misericórdia. É o mesmo que acolhe, ainda que de forma diferente, e por isso exige aos acolhidos a mesma atitude, a mesma fidelidade misericordiosa sem excepções.
É por esta razão que João Baptista diz aos que hipocritamente se abeiram do seu baptismo de conversão que Deus pode suscitar filhos de Abraão até das pedras, ou seja, Deus pode suscitar verdadeiramente discípulos em qualquer lugar, em qualquer tempo, nos homens e mulheres de qualquer condição, bastando para tal essa abertura de coração, essa disposição a uma alteração de vida.
É afinal o grande desafio deste segundo domingo do Advento, deixarmo-nos alterar por Deus, deixarmo-nos nascer para o discipulado, deixarmos aberto o nosso coração para que Deus o transforme, para que o aplane de modo a que o seu Filho aí possa fazer caminho de vida connosco.

 
Ilustração:
“São João Baptista pregando”, de Luca Giordano, Los Angeles County Museum of Art.

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Eu farei de vós pescadores de homens! (Mt 4,19)

É nas margens do mar da Galileia que Jesus chama os primeiros discípulos, homens habituados à faina da pesca, pescadores de toda a vida.
Por isso não é estranho que Jesus os tenha convidado para ser pescadores, para que no seu seguimento continuassem com o exercício da actividade que antes exerciam sem qualquer problema. Afinal tratava-se de deixar uma rede por outra rede.
Contudo, o objecto da pesca deixa de ser o mesmo, os pescadores do mar da Galileia deixam de pescar peixes para se tornarem pescadores de homens. Proposta inusitada e até desconcertante, propensa a questionamentos.
Se o Evangelho de Mateus não nos faz eco desses questionamentos, não é no entanto displicente fazê-los aqui e agora. Como é possível ser pescador de homens? Como se pescam homens? E sobretudo, sabendo nós que a pesca representa a morte dos peixes, retirados do seu habitat natural, como pescar homens não acarreta o mesmo fim, ou seja, a morte dos homens pescados?
A bem da verdade, temos que assumir que ser pescado representa verdadeiramente uma morte, mas no caso dos homens uma morte para a vida, pois deixamos as águas do nosso pecado, da nossa condição mortal, e somos elevados a uma outra vida, a uma outra dignidade e qualidade de vida, à vida divina.
Pelo baptismo, fomos pescados das águas do abismo do pecado e elevados para a barca da vida da graça. Interessa saber de que modo e até que ponto continuamos a debater-nos para nos libertarmos da rede e voltar às águas turvas, ou pelo contrário nos sujeitamos com humildade e confiança a ser elevados pelo grande pescador que é Jesus e a permanecer fielmente na sua barca!

 
Ilustração:
“O Chamamento de Pedro e André”, de Lorenzo Veneziano, Staatliche Museum, Berlim.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Revelastes estas verdades aos pequeninos. (Lc 10,21)

Os discípulos regressam da missão a que Jesus os tinha enviado. Cheios de alegria relatam as obras maravilhosas que tinham realizado e sem mais demora Jesus exulta de alegria e ora ao Pai: “Senhor do céu e da terra, Pai, eu te bendigo, porque escondeste estas verdades aos sábios e inteligentes e as revelastes aos pequeninos”.
A oração de Jesus desconcerta-nos no nosso orgulho e faz-nos olhar para as nossas capacidades, as nossas forças e inteligência com outros olhos, com a humildade necessária, porque afinal não é pelo que consideramos grande e forte que nos é revelada a verdade, que nos encontramos com Deus.
É a pequenez que nos conduz à verdade, que nos propicia o encontro com Deus, pois ao ser pequenos não colocamos o centro em nós, não confiamos nas nossas forças nem nas nossas capacidades, somos capazes de ver o que vem ao nosso encontro, Aquele que vem ao nosso encontro.
Os pequeninos sabem da sua dependência de um outro, sabem como não podem fazer tudo, sabem como uma mão estendida, um coração aberto, um espirito de acolhimento os realiza verdadeiramente e os faz encontrar-se com a novidade.
Neste tempo de Advento, somos chamados a ser pequeninos para nos encontrarmos com a verdade, somos convidados a abrir o nosso coração, a dar até passos vacilantes como o bebe que aprende a andar para nos encontrarmos com Deus que vem ao nosso encontro.
Não é um menino em palhinhas deitado que nos é oferecido? Porque nos custa tanto procurarmos ser como ele? Deixemos a nossa grandeza, procuremos ser simples e humildes, carentes daquele que nos pode verdadeiramente engrandecer.

 
Ilustração:
“Jesus em oração”, vitral em Bukit Doa Getsemani Sanggam, Ambarita, Samosir, Indonésia.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Senhor, eu não sou digno que entres em minha casa! (Mt 8,8)

Estamos a iniciar o Advento e o Evangelho desta primeira segunda-feira relata-nos o encontro de Jesus com o centurião romano na cidade de Cafarnaum.
Encontro surpreendente, que nos coloca imediatamente no horizonte da vinda do Senhor, da sua habitação na nossa casa. O encontro de Jesus com o centurião romano é um Natal, antecipadamente coloca-nos diante do presépio com o Menino Deus que vem habitar entre os homens.
Diante da situação do servo que sofre horrivelmente, Jesus dispõe-se imediatamente a ir até casa do centurião. É a expressão do movimento da kenosis, de Deus que desce da glória para viver entre os homens e partilhar a sua condição sofredora.
Conscientemente, o centurião romano diz a Jesus que não é digno que entre em sua casa, pois é um estrangeiro, um pagão, um homem do império opressor, e a ida a sua casa seria uma ocasião para colocar aquele mesmo Mestre a quem se dirige em situação de impureza.
Contudo, há uma solução para ultrapassar este impasse, esta dificuldade de movimentação, é a palavra, o poder da palavra, porque ambos sabem a força que tem a palavra proferida com autoridade, o centurião enquanto chefe de soldados, Jesus enquanto a Palavra encarnada.
Também hoje, nos primeiros momentos deste Advento, temos que apresentar as nossas situações de paralisia e sofrimento, aquelas situações que nos impedem de caminhar como homens e mulheres. Também hoje temos que dizer ao nosso Mestre e Senhor que não estamos em condições de o receber em nossa casa, mas que pela sua Palavra Ele nos pode purificar e levantar, pela sua Palavra pode preparar uma condigna habitação no nosso coração.
Senhor, eu não sou digno que entres em minha casa, mas dignifica-a com a tua Palavra e o teu amor.

 
Ilustração:
“O Centurião romano e Jesus”, de Paolo Veronese, Museu do Prado, Madrid.

domingo, 27 de novembro de 2016

Homilia do I Domingo do Advento

Celebramos o primeiro domingo do Advento e com ele iniciamos o novo ano litúrgico e um novo tempo de preparação para celebrarmos o Natal. Todos os anos somos convidados a preparar esta grande festa, esta grande celebração, mas para isso necessitamos estar atentos e vigilantes.
A sociedade em que vivemos, o mundo em que nos situamos, prepara também esta festa, e as decorações feéricas das ruas e centros comerciais despertam-nos para ela, podíamos dizer que nos colocam no espirito do Natal. Contudo, e temos que o assumir, esse espirito de Natal é frequentemente um espirito superficial, um espirito que muitas vezes termina no papel de embrulho, nas fitas e luzes coloridas, que perdeu o coração que verdadeiramente constitui o Natal.
Com isto não quero dizer que sou contra as luzes e as fitas coloridas, as árvores bem enfeitadas, as músicas americanas de Natal. Gosto imenso do Natal cheio de luz e cor, mas por essa mesma razão creio que necessitamos todos de estar atentos e vigilantes para não nos perdermos no feérico, no acessório, que nos deve conduzir ao centro que é o Menino Deus e não distanciar-nos dele.
Quando olhamos para as decorações de Natal que vamos encontrando pelas nossas ruas, nas prateleiras das lojas e supermercados, já pouco vemos de referências ao Menino, ao grande anúncio dos anjos de que nos tinha nascido um Salvador naquela noite feliz. Celebramos como que o seu aniversário, e contudo, distraidamente ou nem por isso, não o temos presente, esquecemo-nos de o convidar!
As palavras de Jesus, no Evangelho de São Mateus que escutámos, colocam-nos na necessidade de estar atentos, vigilantes, não só porque não sabemos a hora a que o Filho do homem virá, mas sobretudo porque no meio das ocupações das nossas vidas podemos, tal como acontecia com os contemporâneos de Noé, não nos darmos conta do que está a acontecer, da vinda do Filho do homem a cada um de nós.
Se, pelo mistério da Encarnação, o Filho de Deus veio habitar a nossa carne há dois mil anos, a verdade é que pelo mistério da Ressurreição continua a vir todos os dias, continua a querer nascer nas nossas vidas, continua a querer fazer caminho connosco, continua a querer fazer-se carne da nossa carne. Porque elevado ao céu, pelo seu Espirito, continua presente no meio de nós e apela ao nosso acolhimento, apela à preparação do nosso coração para o receber, tal como o receberam Maria e José, os pastores e os magos, a noite fria e silenciosa do seu nascimento.
Esta atenção e vigilância conduzem-nos ao sonho, à utopia, mas simultaneamente ao despertar do sonho e à acção. Na expectativa do Senhor que vem ao nosso encontro sonhamos o seu projecto de um Reino de Paz, elaboramos tal como o profeta Isaías a utopia de um mundo em que os homens colocarão as armas ao serviço da construção, em que todos poderão viver lado a lado sem inveja e sem rivalidades. Pela mesma expectativa despertamos do sonho, deixamos as trevas de egoísmo e desejos de poder, e procuramos levar a cabo e realizar com as nossas capacidades e inteligência o Reino sonhado, a utopia idealizada, procuramos viver a solidariedade e a fraternidade, procuramos construir uma casa comum e uma única família a partir de Deus.
Tal como nos diz São Paulo na Carta aos Romanos, ao sabermos em que tempo estamos torna-se necessário que deixemos de estar distraídos, torna-se necessário que assumamos a nossa fé, a nossa esperança e a nossa caridade, a salvação em que estamos envolvidos e deve transfigurar a nossa vida.
Este é o tempo de despertar, de tomar a resolução de que alguma coisa pode e deve ser feita de diferente, de colocarmos o nosso esforço em acção para que tal aconteça. Este é o tempo de nos revestirmos de Cristo para que este seja novamente um tempo de glória para Deus nas alturas e de paz para os homens por ele amados.
Aproveitemos pois o tempo de Advento que agora iniciámos.

 
Ilustração:
“A profecia de Isaías”, de Jan Brueghel o Velho, Alte Pinakothek, Munique.   

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Homilia da Solenidade de Jesus Cristo Rei do Universo

Estamos a celebrar a Solenidade de Cristo Rei, o último domingo do Ano Litúrgico e também o encerramento do Ano Santo da Misericórdia. No próximo domingo iniciaremos o Advento e com ele um novo ano litúrgico.
As leituras que escutámos nesta celebração solene e de modo particular o Evangelho de São Lucas colocam diante de nós o significado da realeza de Jesus Cristo, e a forma de a vivermos também nós que desde o baptismo e por Jesus Cristo somos sacerdotes, profetas e reis.
Neste sentido é de todo conveniente olhar as palavras proferidas pelos chefes dos judeus, pelos soldados romanos e pelo ladrão que injuria Jesus. Cada um, e fazendo eco da sua concepção do poder real, reclama que Jesus se salve a si próprio, que desça da cruz e dessa forma mostre que é Messias, que é verdadeiramente rei ao estilo do imperador, que tal como um chefe de bando de salteadores ou rebeldes é capaz de se libertar pelas suas forças e artimanhas.
Contudo, a solicitação de cada um destes observadores e interpeladores de acção acarreta consigo uma impossibilidade, uma impossível resposta de Jesus, pois se Jesus realizasse o que cada um deles pedia estaria apenas a salvar-se a si próprio, e desenvolver o seu egoísmo e orgulho, estaria a negar toda a sua palavra e missão até ali realizadas. O salvar-se a si mesmo contradizia tudo o que até ali Jesus tinha realizado, não revelaria a sua realeza.
A sua realeza manifesta-se e realiza-se nas palavras do chamado bom ladrão, quando este lhe pede que Jesus se lembre dele quando vier na sua realeza, ou seja quando tiver realizado a sua missão de salvar os homens, de o salvar a ele pobre condenado justamente pelos seus crimes. A realeza de Jesus manifesta-se nessa salvação dos outros, nessa entrega da vida pelos outros.
A realeza de Jesus é assim a misericórdia, esse mistério de sair de si mesmo para ir ao encontro do outro, para o resgatar na sua condição de pecado e sofrimento e o levar a partilhar a glória divina. E é desta forma que podemos viver a nossa condição real adquirida no baptismo, é desta forma que podemos construir e colaborar na instauração do Reino de Deus, sendo tal como Jesus misericordiosos.
A realeza de Jesus Cristo e o seu reinado não se desenvolvem assim no mundo segundo as formulas a que estamos habituados, não se trata de poder ou força para ser maior, para ser capaz de fazer coisas extraordinárias, não se trata de dominar o outro, de construir um império para satisfação orgulhosa do ego. Quando os cristãos o tentaram displicentemente em contradição com o projecto de Jesus os resultados foram desastrosos.
Contudo, quando na humildade, na verdade, no amor e na justiça os cristãos procuraram colocar o outro em primeiro lugar, procuraram a salvação do outro, o Reino de Deus foi-se desenvolvendo, a realeza de Jesus foi-se tornando visível. Quando se colocaram as forças e capacidades ao serviço do outro, num espirito de confiança mútua, num espirito de aliança, quando os cristãos não tiveram medo de perder a sua vida por Aquele que é o Caminho, a Verdade e Vida, o reinado e a realeza de Jesus tornou-se actual, presente, poderíamos dizer palpável.
Assim, se queremos honrar Jesus Cristo como nosso Rei, se ao estilo medieval lhe queremos prestar a nossa vassalagem, não podemos deixar de nos colocar ao serviço do outro, não podemos deixar de procurar a salvação do outro, mais que a nossa, pois é salvando os outros que assumimos a salvação que nos foi alcançada em Jesus Cristo.
Que nos lembremos sempre dos outros e do Outro, que é Deus e habita em cada um deles, para podermos todos juntos partilhar a glória real e divina do Paraíso.

 
Ilustração:
“Jesus Salvador do Mundo”, de El Greco, Museu El Greco, Toledo.

domingo, 25 de setembro de 2016

Homilia do XXVI Domingo do Tempo Comum

O Evangelho que escutamos neste domingo apresenta-nos a parábola do homem rico e do pobre Lázaro, uma parábola de certo modo célebre, mas que algumas vezes nos distrai do verdadeiramente importante, da questão que está em causa. As chamas do tormento, o abismo de separação, a imagem do inferno, apontadas ostensivamente durante séculos, dispersam-nos da mensagem que afinal elas próprias querem transmitir.
Necessitamos por isso ler com atenção a parábola e desde o primeiro momento perceber que ela é proferida num contexto de debate com os fariseus, portanto, em confronto com aqueles que se achavam os melhores, os verdadeiros cumpridores da lei e que questionavam Jesus face ao seu procedimento. Estamos assim perante uma crítica, ou uma chamada de atenção, que não pode ser desligada desta circunstância.  
A parábola, com o rico que se banqueteia e o pobre que à porta nada tem, desenvolve na disparidade de situações a satisfação pessoal, o egoísmo e egocentrismo, em contraponto à dependência total, à pobreza e ao sofrimento. Na parábola não se encerra uma crítica de Jesus à riqueza, manifesta nos lautos banquetes e nas roupas finas e cuidadas, mas um alerta face à cegueira que a riqueza pode provocar. Centrado no seu próprio bem, na sua satisfação pessoal, o homem rico ficou cego à necessidade do pobre Lázaro que jazia à sua porta.
Voltando aos fariseus, a quem Jesus apresenta a parábola, percebe-se que afinal a crítica se dirige-se à cegueira destes homens face aos seus irmãos necessitados, face às fragilidades daqueles que não viviam de acordo com a Lei, percebe-se que a crítica se dirige ao espirito de superioridade de cada um deles face aos outros.
E se tivermos presente as últimas palavras de Abraão ao rico, que os irmãos que ainda vivem têm Moisés e os profetas a quem podem escutar para não incorrer no mesmo fim, percebemos a questão da centralidade da Lei, e da fraternidade e solidariedade que dela deriva, mas que não estava a ser cuidada por aqueles que se diziam os melhores cumpridores da Lei.
Não podemos esquecer que no conjunto da Lei e dos profetas, e tal como se nos apresenta no Salmo que intercala as duas leituras, o pobre, a viúva, o órfão, o emigrante, afinal todos os necessitados, são aqueles nos quais Deus mais tem colocado os olhos, são a maior expressão de apelo a uma outra atitude por parte dos irmãos. E neste sentido, tal como diz Abraão, não será um ressuscitado, um milagre extraordinário, que irá converter os corações daqueles que estão encerrados em si próprios.
A lei e os profetas, a história da revelação, desafiam cada homem a essa atitude de descentralização; e, ou há um acolhimento desse desafio e se estabelece a fraternidade, ou então o homem soçobra na sua própria individualidade e egoísmo, constrói o seu próprio inferno de solidão. O filósofo Jean-Paul Sartre dizia que o “inferno são os outros”, mas à luz da parábola de Jesus temos que lhe responder que o inferno somos nós sem os outros.
Por esta razão, a parábola apresenta um rico sem nome, sem identificação, ao contrário do pobre que nos é apresentado na sua identidade pessoal e nominal. O homem rico que se satisfaz a si próprio, egoisticamente centrado em si, é um homem sem relações, não tem ninguém que lhe sirva de espelho à sua identificação, e por isso vive desde já no abismo, encontra-se já no inferno, fechado em si.
Pelo contrário, Lázaro, na sua pobreza e dependência total dos outros, torna-se passível de ter um nome, um nome que revela a relação profunda com Deus, pois Lázaro significa “Deus ajuda”. Não tendo nada, não podendo encerrar-se em si próprio, Lázaro está aberto aos outros, é uma relação constante com aqueles que o podem ajudar e com o próprio Deus de quem depende totalmente. E os cães que se aproximam para lhe lamber as feridas simbolizam essa relação total e aberta, Deus vem também ao seu encontro nesses animais.
As ciências humanas dizem-nos que todos nós, homens e mulheres, desde o primeiro momento da nossa vida necessitamos alguém que nos olhe, que nos chame, que nos nomeie e por esse nome nos identifique. Quando chamamos alguém pelo seu nome, o apelo descentra essa pessoa, faz com que ela se volte, saia de si e se encontre com um outro, estabeleça uma relação. Por isso é tão importante chamar os outros pelos seus próprios nomes, abrir-lhes a porta a uma relação. Desafio que devemos cuidar cada vez mais no trato de uns com os outros, na medida em que estamos cada vez mais face a face com ecrãs que nos filtram e inviabilizam a relação.  
A parábola do homem rico e do pobre Lázaro chama-nos assim a atenção para a cegueira que podemos incorrer quando nos centramos em nós próprios, na nossa satisfação, e não temos os outros em atenção, os outros que constroem a nossa própria identidade e liberdade de ser. Mas chama-nos igualmente a atenção para a eternidade que construímos ou desenvolvemos, uma eternidade que acontece aqui e agora.
Como dizia o Papa Bento XVI no Ângelus de 26 de Setembro de dois mil e dez, “ o nosso destino eterno está condicionado pela nossa atitude actual, e cabe-nos a nós escolher o caminho que Deus nos apresenta para chegar à vida eterna, um caminho de amor, que não pode ser entendido como sentimento, mas como serviço e atenção aos outros, na caridade de Cristo”.
Procuremos pois na abertura aos nossos irmãos, na franqueza das nossas relações, viver o caminho que Jesus nos oferece, viver a eternidade que nos é oferecida aqui e agora.

 
Ilustrações:
1 – “O rico e o pobre Lázaro”, de Hendrick ter Brugghen, Museu Central de Utrecht.
2 – “O rico e o pobre Lázaro”, iluminura do Codex Aureus Epternacensis.

domingo, 18 de setembro de 2016

Homilia do XXV Domingo do Tempo Comum

Ao terminar a leitura do Evangelho de São Lucas deste domingo uma dúvida inquietante salta aos nossos olhos; como interpretar estas palavras de Jesus, o que nos quer dizer, quando por um lado parece que elogia a desonestidade do administrador e depois denuncia a servidão ao dinheiro, a impossibilidade de servir a Deus e ao dinheiro.
Numa abordagem prévia a uma resposta que nos elucide as palavras de Jesus, temos que olhar com um pouco mais de atenção o início da parábola, pois o administrador aparece em cena porque é denunciado como andando a desperdiçar os bens do seu senhor.
O problema de fundo é assim a administração, a boa ou má administração que fazemos do que nos foi confiado para administrar. E muitas vezes, temos que o assumir, a nossa má administração, o desperdício, começa porque consideramos as coisas como nossas, como propriedade nossa, e portanto não as vemos como bens em administração e dos quais temos que dar contas. Será bom recordar aqui a parábola dos talentos, os que produzem e os que são desperdiçados quando enterrados.
Atentos ao cuidado e responsabilidade exigidos na administração, percebemos as palavras de Jesus relativamente às acções desonestas do administrador. Não se trata de um elogio do engano, da mentira ou da fraude, mas um elogio da diligência, da sagacidade do mau administrador para não perder o que tão caro lhe era. Este homem, com habilidade, procura assegurar o seu futuro.
As palavras de Jesus, que nos provocam e destabilizam, visam assim e apenas marcar a diferença de atitude, a forma como facilmente nos implicamos e esforçamos para alcançar os bens deste mundo, a nossa segurança temporal, e a dificuldade que temos em aplicar a mesma força e esforço relativamente às coisas do espirito, da vida eterna. O administrador desonesto procurou precaver o seu futuro terminada a administração. De que forma procuramos nós precaver o nosso futuro terminada a administração dos bens que o Senhor nos confiou?
E, como se não bastasse esta distracção ou preguiça administrativa, a leitura do profeta Amós vem colocar diante de nós uma outra atitude, cuja gravidade supera o nosso desleixo na administração. Tal como o profeta denuncia, muitas vezes usamos os bens que o Senhor Deus nos concede para explorar o outro, para violentar o outro, para o humilhar, como se não bastasse a sua pobreza ou desgraça. Outras vezes fazemos uso até do sagrado para diminuir o outro, para o subjugar e explorar.
Diante desta tentação violenta não podemos esquecer as palavras de Deus na profecia, o Senhor recorda-se de todas estas acções, pois os pobres, as viúvas, os órfãos, os emigrantes e os explorados estão sob o seu olhar atento, poderíamos dizer que são a sua presença mais acutilante no meio da humanidade, a presença que nos desafia no amor. E por essa razão, porque nos podem levar a Deus e até ao tesouro da eternidade, Jesus recomenda que se conquistem amigos com o vil dinheiro, não amigos que nos possam retribuir aqui o que lhes oferecemos, mas amigos que nos abram as portas da eternidade e aí nos acolham com o que com eles partilhámos.
E para aqueles que podem retorquir que nada têm para poder partilhar, São Paulo deixa-nos um campo vastíssimo de partilha e enriquecimento, a oração por todos os homens. Se não tivermos mais nada para partilhar podemos partilhar a nossa oração, inserir todos os homens e mulheres na nossa oração, os mais próximos e os desconhecidos, aqueles que são nossos benfeitores e aqueles que nos perseguem.
Quando São Paulo escreve a Timóteo esta recomendação da oração por todos os homens está preso nas cadeias de Roma, à espera da sua pena capital. Contudo, e apesar dessa situação São Paulo não deixa de ter presentes aqueles que o acompanharam e aqueles que se preparam para lhe pôr fim à vida. São Paulo assume-os a todos na sua oração e na petição que dirige a Timóteo porque quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade, a essa verdade de que há um só Deus e um único mediador que é Jesus Cristo.
Para que todos os homens cheguem ao conhecimento desta verdade também nós temos que tomar a sério a nossa fidelidade cristã, a administração dos dons e bens que o Senhor nos concede em cada dia, a integração de todos os homens e mulheres na nossa relação com Deus.
Se soubermos cuidar a nossa humanidade e a humanidade dos nossos irmãos, se formos fiéis aos dons que o Senhor nos concede, receberemos o que é nosso, tal com o Senhor promete. Receberemos a glória da eternidade porque nela tivemos sempre postos os nossos olhos e o nosso cuidado quotidiano, por ela fomos diligentes e sagazes administradores.

 
Ilustração:
1 – “Parábola do administrador desonesto”, de Andrey Mironov.  
2 – “O pobre Lázaro”, de Jacopo Bassano, Kunsthistorisches Museum, Viena.

domingo, 11 de setembro de 2016

Homilia do XXIV Domingo do Tempo Comum

A Leitura do Evangelho de São Lucas, designado como o Evangelho da misericórdia, apresenta-nos hoje uma das passagens mais conhecidas deste Evangelho, a parábola do filho pródigo, certamente aquela que mais conhecemos porque também aquela em que mais facilmente nos somos capazes de rever. Não somos todos nós filhos? Não estamos chamados a ser pais?
O contexto em que a parábola é proferida por Jesus é significativo para a sua compreensão e para o desenvolvimento da mesma parábola e seus actores. Afinal, e o evangelista São Lucas apresenta-nos isso, estamos diante de um confronto entre o grupo composto por fariseus e escribas que vivem sob a justiça implacável e exclusiva da lei e o grupo dos publicanos e pecadores que acolhem a novidade e a mediação das palavras de Jesus e vivem a alegria da gratuidade do perdão.
Os dois filhos, que o pai da parábola tem, representam estes dois grupos antagónicos de fariseus e pecadores, os quais fazem experiências diferentes da verdade fundamental de que o pai é imagem, verdade que é o amor de Deus. Um e outro filho mostram-nos como nos podemos afastar desse amor, mas mostram-nos também como há necessidade da participação pessoal para que o regresso aconteça efectivamente.
Neste sentido, e porque mais facilmente percebemos o afastamento do filho mais novo, pois é o que saiu de casa, temos que perceber o que provoca esse afastamento, e que não é propriamente o facto de sair de casa. O que provoca o afastamento do filho mais novo é a exigência feita ao pai de ter o que é seu, é este pedido orgulhoso que provoca o afastamento depois explicitado no sair de casa e no ir para um país distante.
O pedido da parte da herança revela-nos o nosso desejo de apropriação, o desejo de poder controlar e dominar o que é nosso, a idolatria que a leitura do Livro do Êxodo nos apresenta de considerarmos que o que é nosso é que nos salva. E este poder inevitavelmente afasta-nos de casa, da partilha do comum, da relação com o pai que é Deus. É a nossa auto-suficiência em funcionamento, que nos conduz no limite à perda de nós próprios, à perda de dignidade e à escravatura, tal como a vivia o filho mais novo quando foi obrigado a tomar conta dos porcos, e tal como a viviam os pecadores que escutavam Jesus.
Contudo, a auto-suficiência, o desejo de apropriação não são os únicos processos que nos afastam de casa e da partilha do comum. Podemos não reclamar nada, podemos não ir a lado nenhum e ficar em casa como o filho mais velho da parábola, mas ainda assim podemos estar tão distantes ou ainda mais que aquele que se foi com o que considerava que tinha de seu. É uma situação perversa, porque se vive num estado de subserviência, de uma forma servil, sem reconhecimento do partilhado, do confiado, da dignidade atribuída, porque afinal se vive como estranhos.
O filho mais velho, que ficou todo o tempo em casa do pai, revela-nos esta perversão, pois ao reclamar que o pai nunca lhe deu um cabrito para fazer uma festa com os amigos, expõe a sua relação fora de casa, a amizade com os outros e não com o pai, o desprezo daquilo que já era dele pela partilha feita no momento da reclamação do irmão mais novo, mas que não assumira de verdade. É afinal a situação do grupo dos escribas e fariseus que desprezavam o dom e a missão confiada de levar a bênção divina a todos os povos.
E nestas circunstâncias familiares da parábola, é o filho mais novo, aquele que já não tinha direitos em casa, que afinal se mostra como aquele que não perdeu nada, que no meio dos desaires da sua vida, dos afastamentos, acabou por não desperdiçar o que verdadeiramente é fundamental, o tesouro do amor no coração do pai. É significativo que no meio da sua desgraça reconheça que o pai tem um tratamento de amor, tem uma relação especial até mesmo com aqueles que o servem; e por isso, ainda que não possa ser recebido como filho, há a esperança de ser recebido como servo, porque o pai ama também os seus servos. O filho mais velho nunca percebeu isso, ainda que estando em casa com o pai.
A parábola constrói assim um abismo entre os dois irmãos e a relação que estabelecem com o pai, pois aquele que se afasta reconhece o pai e o seu amor, é capaz de se abeirar dele depois de tudo e chamar-lhe pai, enquanto o mais velho nunca é capaz de pronunciar tal palavra, de estabelecer a relação que essa significa. O filho mais velho dominado pelo espirito de justiça não é capaz de ver o amor incondicional do pai e por isso encerra-se no orgulho da sua fidelidade subserviente, deixa-se envolver pela inveja face ao que o pai concede ao irmão. E para um e para outro o pai não deixa de se revelar como disposto a acolher, de braços abertos, pois são ambos seus filhos.
A parábola do filho pródigo revela-nos assim o grande tesouro do amor de Deus, da gratuidade e liberalidade desse amor, de que São Paulo também nos fala na Carta a Timóteo, pois ele que era perseguidor dos cristãos foi achado digno de ser um deles e um apóstolo pela misericórdia de Deus. A parábola revela-nos também a necessidade que temos de participar do perdão, a necessidade de sair das nossas idolatrias para ir ao encontro do pai e do amor. O Pai espera-nos de braços abertos, mas nós temos que nos dirigir a ele, temos que ir ao seu encontro.
Por outro lado, e tal como o convite feito ao filho mais velho, temos que nos alegrar quando um dos nossos irmãos procura mudar de vida, tenta uma nova oportunidade de conversão. Não podemos ficar sem dar um passo, sem acolher e incentivar, sem interceder por eles como Moisés intercedeu pelo povo pecador, pois como nos diz São João se não somos capazes de acolher aqueles que vemos, de fazer a experiência de perdão com os nossos semelhantes como vamos poder acolher e fazer a experiência do perdão com Deus que não vemos?

 
Ilustração:
1 – “O filho mais novo recolhe a herança”, de Bartolomé Esteban Murillo, Museu do Prado, Madrid.
2 – “O filho pródigo”, de Eugène Burnand.

domingo, 4 de setembro de 2016

Homilia do XXIII Domingo do Tempo Comum

Aos poucos vamos retomando as nossas actividades, vamos deixando o tempo de descanso das férias e voltamos ao nosso ritmo habitual de todo o ano. Neste período de transição é bom que façamos uma breve pausa, que nos sentemos um pouco, e que perspectivemos aquilo que queremos que seja este ano de actividade, mais uma etapa de caminhada como homens e mulheres, que aspiram à sua realização profissional entre outras, mas também e sobretudo como filhos de Deus que não devem deixar de procurar viver fielmente essa sua condição essencial.
As leituras que escutámos nesta celebração dominical podem e devem ajudar-nos nesse perspectivar, pois colocam diante de cada um de nós uma convocatória, um desafio, que não podemos descurar, não procurar levar por diante, pois está nele contido uma parte significativa da nossa realização humana e cristã. Olhemos pois com um pouco de atenção para o que nos revela e solicita as leituras deste domingo.
Em primeiro lugar deparamo-nos com a atitude de Jesus, o seu caminhar à frente da multidão em direcção a Jerusalém. No entanto Jesus volta-se para trás, para essa multidão de seguidores, quando necessita interpelá-la, quando necessita dirigir-se-lhe. Acontece assim em todos os diálogos, em todos os momentos desta subida para Jerusalém e em cada encontro pessoal. Jesus olha-nos face a face, olhos nos olhos e provoca-nos com a sua palavra.
Esta certeza deve estar presente e orientar-nos, pois também a nós, a cada um de nós, Jesus se dirige pessoalmente, olhos nos olhos, para nos convidar a segui-lo, a não ter medo, a não desistir apesar das nossas fraquezas, das nossas infidelidades. Ele vai à nossa frente e nós seguimo-lo; contudo, para não nos perdermos ele frequentemente volta a face e olha-nos com ternura. Na nossa história pessoal já certamente experimentámos o apelo carinhoso de Jesus a continuar com ele o caminho iniciado.
Continuar com Jesus, tal como nos diz o Evangelho, exige uma preferência absoluta. São palavras radicais as que hoje Jesus nos dirige, quando nos diz que o devemos preferir a todos aqueles que partilham a nossa vida, que fazem parte da nossa história humana mais básica como é a da família. Não é uma tarefa fácil aquela que Jesus nos pede, e por isso não podemos deixar-nos cair no snobismo ou na relativização das nossas relações, que são uma resposta possível, mas indecente e indigna face à exigência de Jesus.
A preferência absoluta por Jesus conduz-nos a uma conversão da absolutização das nossas relações e amores, pois o que amamos deixa de estar na órbita das nossas preferências e satisfações pessoais e passa a estar na órbita do amor de Deus, da pessoa de Jesus presente em cada uma delas. É a partir do amor de Jesus que amamos os nossos irmãos, que construímos as nossas relações, mesmo as mais preciosas como a matrimonial ou a filial. O esposo ou a esposa que partilham o amor conjugal, os filhos que são fruto do amor conjugal, são amados em Jesus e por Jesus, na sequência e consequência desse apelo escutado e assumido de ir com Jesus.
Esta conversão, ou redimensionamento dos nossos amores, conduz-nos a viver de forma mais clara, divinamente iluminada, o apelo desafiante de Jesus a carregar com a nossa cruz. Afinal de contas, já não se trata apenas de suportar as contrariedades, as limitações e fraquezas dos outros, pois essa realidade desafiante até se vai vivendo humanamente, com altos e baixos, com mais ou menos paciência. Carregar a cruz, com o nosso amor redimensionado em Jesus Cristo, significa carregar a salvação do mundo, a salvação das almas, significa assumir que em cada gesto de carinho, em cada atitude de paciência, queremos participar da redenção operada por Jesus na sua paixão e morte na cruz, somos participantes activos desse mistério de salvação.
Desta forma é fácil perceber, não só o amor que os santos tinham à cruz, mas como se sentiam unidos à cruz de Jesus, como viviam cada momento, cada desafio relacional ou histórico, como se esse momento ou desafio fosse a sua própria paixão, como se da resposta positiva a amorosa deles dependesse a salvação do mundo. Afinal, viviam e convidam-nos a viver as palavras de São Paulo, “também eu estou pregado na cruz com Jesus Cristo”.
Centrados no amor de Jesus e com os olhos do coração iluminados pela dimensão divina da cruz que carregamos, podemos viver a renúncia aos bens que nos é necessária para ser discípulos de verdade. É à luz do amor divino e da consciência divina dos nossos gestos, palavras e atitudes, que somos capazes de nos desprender, de possuir como se não possuíssemos, pois os bens e até as pessoas estão apenas ao nosso cuidado, “ad usum frater” como antigamente se colocava nos objectos dos irmãos que partilhavam a vida conventual.
E neste sentido a leitura que escutámos da Carta de São Paulo a Filémon é paradigmática. Se não tivéssemos mais nada para apresentar como modelo do viver cristão, do seguir Jesus carregando a cruz com amor e liberalidade, tínhamos a história de Paulo com Onésimo e Filémon. Um homem necessitado de ajuda por se encontrar preso, por amor a Jesus envia aquele que o podia ajudar e ser companheiro na prisão ao seu antigo senhor, e pede-lhe que o acolha já não como um escravo mas como um irmão.
A centralidade de Cristo na vida de Paulo leva-o a acolher Onésimo, a estabelecer com ele uma relação de filiação, e depois a desprender-se dele, para que possa fazer crescer na caridade e no amor aquele que era o seu antigo dono, Filémon. Paulo assume a cruz da vida e da morte, do acolhimento e do desprendimento, da necessidade de semear para que no coração de outro possa nascer e frutificar o amor. Em tudo Paulo vive a dimensão da sua fé total em Cristo, que uma vez se encontrou com ele também cara a cara a caminho de Damasco.
É esta atitude de Paulo, esta exigência para connosco próprios e a liberalidade para com os outros que somos chamados a viver, esta atitude de em tudo procurar ver a mão de Deus, de em tudo viver no amor de Deus, que não deixa de cumular de bens todos aqueles que tudo lhe confiam. Ao retomarmos as nossas actividades que este espirito impregne os nossos projectos, os nossos sonhos; que saibamos viver na luz da sabedoria que pede ao Senhor a sua graça, a confirmação da obra realizada, porque ainda que nos sejam desconhecidos os desígnios do Senhor, conhecemos já a sua bondade e como ela nos sacia de alegria e paz.

 
Ilustração:
1 – “Para onde vais Senhor?”, pintura de Andrey Mironov.
2 – “São Paulo na prisão”, Rembrandt.

domingo, 28 de agosto de 2016

Homilia do XXII Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Lucas deste domingo apresenta-nos duas realidades, dois desafios cristãos, que não são muito fáceis de acolher e viver, que nos perturbam na nossa realidade quotidiana, pois não é nada fácil colocar-se no último lugar, nem acolher aqueles que sofrem alguma privação, alguma dificuldade ou deficiência física ou moral. Não é fácil sairmos da nossa zona de conforto, como se diz hoje, do nosso egoísmo, e contudo o Senhor convida-nos a isso, para dessa maneira podermos viver a experiência da redenção que nos foi alcançada, para dessa maneira a tornarmos própria da nossa vida.
Neste sentido, e para nos ajudar a dar passos concretos nesse processo de conversão que necessitamos realizar, temos que ter presente e acolher de forma positiva os desejos de glória e de honra que habitam o nosso coração e as nossas aspirações. Não são um pecado, porque esses desejos estão impressos na nossa matriz divina, todos nós fomos destinados à glória, mas à glória divina, a ser honrados por Deus no acolhimento que nos propícia.
Aquilo que classicamente se chamava a “natureza concupiscível” marca a nossa realidade e o nosso modo de agir, pois devido a essa natureza não descansamos enquanto não encontramos e não nos satisfazemos no que há de melhor, no que mais nos dá prazer, e entre esses objectos de satisfação e prazer encontra-se a glória, o brilho, a honra, entre outros mais sensíveis e carnais.
Assim sendo, o nosso esforço no seguimento de Jesus, nessa busca de fidelidade à fé que professamos, deve aplicar-se no sentido da direcção que damos aos nossos desejos de glória e honra, corrigindo essa tendência natural e cultivada pela sociedade actual de nos satisfazermos com os prazeres momentâneos, com a glória efémera deste mundo, para passarmos a ter presente e a orientar-nos por essa glória futura da eternidade, pelo bem último a que estamos destinados.
É neste sentido que vai a ordem que Jesus expressa na parábola àquele convidado que se foi sentar no último lugar, “amigo sobe mais para cima”, e que expressa antes de mais uma relação, uma intimidade expressa na palavra amigo. Não é a qualquer um que se manda subir, mas àquele que é amigo, e portanto àquele que previamente cultivou e mantém uma relação de intimidade, de amizade.
Depois, a ordem para subir coloca em evidência a necessidade de um processo, de um movimento de ascensão, de conversão como lhe podemos chamar. Um movimento que parece não ter fim, uma vez que a ordem é para subir mais, para nunca se dar por satisfeito senão quando colocado ao lado, poderíamos dizer como no Evangelho de São João, senão quando deitado sobre o coração do mestre, tal como acontecia com o discípulo amado.
Contudo, para subir mais e chegar acima é necessário ter presente que se parte de baixo, que há uma base da qual se parte para subir. Esta base, que deve ser sólida, verdadeiramente assumida, é a consciência da nossa debilidade, da nossa condição humana, da nossa fragilidade, é afinal a experiência da nossa condição pecadora, é a consciência do húmus de que procedemos e de onde fomos elevados por Deus.
A partir daqui sabemos o que é a humildade, podemos ser humildes, pois sabemos que não valemos nada, ou o que valemos é o que nos é dado valer por Deus e em Deus. A partir daqui podemos também realizar um processo de subida mais ligeiro, pois sabemos que não temos necessidade de muita coisa, que podemos viver a pobreza e nela nos encontrarmos com os outros que são tão pobres como nós.
A partir da humildade e do desprendimento da pobreza podemos encontrar-nos com os outros, sentarmo-nos à mesma mesa com cegos, coxos e aleijados, pois não só nós nos encontramos na mesma debilidade e fraqueza que eles, como somos capazes de ver neles o Filho de Deus e portanto viver em plenitude a caridade e o amor.
Santo Agostinho escreveu que possivelmente teremos vergonha de imitar um homem humilde, contudo não podemos envergonhar-nos de imitar um Deus humilde, um Deus que se abaixou da sua glória para nos resgatar do pecado e da morte. A vida de Jesus Cristo, a sua humildade até à morte da cruz, deve ser o nosso princípio e o nosso fim neste processo de vida.
As suas palavras, “quem se humilha será exaltado e quem se exalta será humilhado”, calaram fundo na consciência dos discípulos, naquele grupo de amigos que pouco antes lutavam entre si por um posto de governo e de glória. Que estas mesmas palavras calem fundo no nosso coração e nos purifiquem de todos os vãos desejos de glória e honra, que nos curem da auto-suficiência e do espirito de superioridade, para vivermos verdadeiramente e em plenitude as graças que o Senhor nos concede.
 
Ilustração:
“O Banquete em casa de Levi”, Paolo Veronese, Galeria da Academia de Veneza, pormenores da pintura.