domingo, 21 de março de 2021

Homilia Domingo V da Quaresma - Ano B

Queridos Amigos

A leitura que escutámos da Epístola aos Hebreus diz-nos que Jesus durante a sua vida mortal dirigiu preces e súplicas àquele que o podia livrar da morte. O momento que mais profundamente recordamos esta vivência e petição de Jesus é certamente o do momento da agonia de Jesus no jardim das oliveiras: Pai se for possível que se afaste de mim este cálice. Mas houve outros e o Evangelho de São João que hoje escutámos apresenta-nos outro.

Uma leitura e um momento que nos colocam perante um facto inevitável, uma realidade profundamente e intrinsecamente humana que todos nós vivemos e que Jesus não pôde também deixar de viver como verdadeiro homem.

Vivemos um processo de desenraizamento, usando uma imagem muito bíblica, vivemos em constante trabalho de parto. Desde que nascemos, ou melhor, desde que fomos concebidos vivemos num constante nascimento, num constante processo de partida, como se o lugar, o tempo e o modo em que nos encontramos fosse uma terra de exílio, um Egipto que temos que deixar para trás.

E paradoxalmente, vivemos este processo de forma descontinuada, como momentos de pausa para respirar fundo, e outros momentos para fazer força, muita força para que a vida nova veja a luz. As mães que estão aqui presentes sabem muito bem do que estou a falar. E há a dor, a angústia, o sofrimento, mas depois a alegria, a vida nova que se pode tomar nos braços. E nós homens, muitas vezes estamos lá ao lado para cair para o lado.

Jesus sabe como tudo isto funciona, como funcionamos, como somos capazes de fazer força, outras vezes como necessitamos de parar para respirar, de como estamos feitos para a vida e uma vida nova nos espera; mas para além disso, para além desse saber, ele sabe também que nenhuma dor lhe será poupada, que vai sofrer também as dores do parto de uma nova vida, que vai dar à luz, não um homem ou uma mulher, mas uma humanidade.

E por isso as suas palavras de que tem a alma em sofrimento, perturbada, em angústia; é uma manifestação da solidariedade para com as nossas dores, as nossas angústias e sofrimentos, mas é igualmente a manifestação da nossa profunda humanidade animal, que como bichos acossados, encerrados numa armadilha, procuram uma forma de escapar, um meio de sobrevivência. Face ao horror da morte como podemos escapar dela?

E paradoxalmente, inexplicavelmente, nós acreditamos num Deus que se deixou pregar numa cruz, que se deixou matar, que suportou o sofrimento. Como é que podemos acreditar? Jesus não nos livra da morte, da experiência da morte, coloca-a bem diante dos nossos olhos. Não é mais fácil escolher outro Deus, um ídolo que é um bezerro de ouro, dizermo-nos ateus?

E contudo, no meio desta trama da nossa vida, em resposta ao pedido para que o Pai glorifique o seu nome, uma voz que se faz ouvir do céu: já o glorifiquei e tornarei a glorificar. Na tua dor, na tua angústia, nesta terra de exílio e escravidão, és o meu filho muito amado, tens a garantia do meu amor de forma imutável, eterna, inquestionável.

Não são já os sacríficos antigos, os holocaustos, uma lei exterior que te governa e coloca em relação comigo, é a lei que inscrevi no teu coração, que gravei no mais íntimo do teu ser. Eu sou o teu Deus e tu és o meu povo, o meu filho, sois meus filhos. Eu amo-vos e espero apenas o vosso amor.

A assim, a vida perdida em amor, convertida em desapego e desenraizamento, em constante processo de nascimento, é uma vida válida, é uma vida para a vida eterna, como dizia o frei Bernardo uma vida vivida com dignidade garante-nos a dignidade eterna.

Jesus não nos propõe uma escapatória à morte, ele experimentou-a por cada um de nós e para cada um de nós, para nos propor uma caminhada de vida, para converter o nosso desenraizamento, para que a nossa partida deste exílio seja vivida sem amargura e azedume.

Não se trata de odiar a vida, mas amá-la com tudo o que ela encerra, vivê-la como única, irrepetível, inseri-la na longuíssima e eterna vida de Deus.

Como rezávamos no Salmo, Senhor, cria em mim um coração puro, um espírito firme, sustenta-me com um espirito generoso, para viver na tua presença, para viver o teu espirito de santidade, para ser luz nos caminhos dos homens nossos irmãos.   


Ilustração:

1 – Jesus ensinando a multidão, gravura de Heinrich Hofmann.

domingo, 14 de março de 2021

Homilia Domingo IV da Quaresma - Ano B

Queridos Irmãos

Continuamos a nossa caminhada quaresmal, a nossa preparação para a celebração da Páscoa, que em cada domingo da Quaresma se desenha no horizonte, tal como acontece hoje na leitura do Evangelho de São João e nesta cor festiva que quebra o roxo penitencial e nos convida a uma renovada alegria, a um espírito renovado da conversão. É a alegria, é a festa que nos espera ao fim desta caminhada.

A história de Nicodemos que escutámos na leitura do Evangelho de São João é a história de todos e cada um de nós, uma história de homens e mulheres que se encontram na noite, ainda que povoada de conhecimento e de sabedoria, mas obscura, sem a verdadeira sabedoria que dá a luz para o sentido da vida Nicodemos vem de noite, mas tal como lhe diz Jesus, ele é um mestre, é alguém que transporta um conhecimento que lhe deveria permitir dar um passo mais. Mas falta-lhe algo para que isso possa acontecer.

Nesta noite e neste encontro, que no seu términus parece não ter alterado muito a pessoa de Nicodemos, algo acontece, algo extraordinário, que leva à passagem da noite à luz, do encontro escondido à manifestação pessoal e convicta, ao testemunho presencial.

No Evangelho de São João, Nicodemos aparece por três vezes, neste primeiro encontro nocturno, às escondidas, no momento em que se decide a morte de Jesus e no qual Nicodemos sai em defesa de Jesus invocando a lei e o direito à defesa, portanto numa manifestação pessoal convicta que leva à acusação e suspeita de que possa ser dos influenciados por Jesus, e por fim no momento da sepultura do corpo de Jesus, em que aparece com as de mirra e aloés, uma quantidade de perfume e essências próprias para a sepultura de um rei.

Neste encontro de Nicodemos com Jesus que o Evangelho nos apresentou, a resposta de Jesus é feita de um conjunto de conceitos, expressões de vida, como o amor, o julgamento, a verdade e a luz, que estão de tal modo imbricados, torcidos, que tal como numa corda não poderão ser separados, pois tornar-se-iam demasiados frágeis e insustentáveis. E esta unidade, este entrançado, aparece num único nome que nos é proposto e poderemos assumir impronunciável, e que é o nome de Deus. É no nome de Deus que se unem o amor e o juízo, a verdade e a luz.

E é perante esta realidade, este nome que cada um de nós deve procurar a melhor atitude, a melhor resposta, que numa relação com a luz não poderemos deixar de apresentar como a lucidez. É esta atitude, esta virtude que em cada um de nós pode de certa maneira corresponder ao que Deus nos manifesta na nossa capacidade de acolhimento.

A lucidez é um trabalho, um processo de consciência que tende a colocar à luz, a iluminar, o que em nós não é fácil de iluminar, de se revelar. E Jesus, muito antes de Freud, revela esta dificuldade humana do nosso psiquismo que exerce o seu poder de esquecimento e de ocultamento daquilo que de uma maneira ou outra foi para nós doloroso, temeroso, humilhante, no conjunto das pretensões da nossa personalidade.

E por isso, como diz Jesus, nós preferimos as trevas à luz, pois ao mantermos na escuridão no profundo do nosso ser e do nosso medo as falhas e feridas, as frustrações das nossas ilusões, nós esperamos evitar a lâmina cortante da verdade e do julgamento

Contudo, como podemos encontrar sem a lucidez face a estas realidades fracturantes que conduz à verdade, ao julgamento e à luz e finalmente ao amor. Ao amor de nós próprios e ao amor dos outros. Como podemos verdadeiramente amar sem nos conhecermos, e conhecer nos ombros dos outros as nossas próprias sombras, falhas e faltas, nos seus julgamentos sobre cada um de nós as nossas próprias intransigências para connosco próprios?

Deus não enviou o seu Filho ao mundo para o julgar, mas para que o mundo seja salvo. A salvação vem de Deus como nos diz a leitura da Carta aos Efésios. O filho Jesus Cristo, é, portanto, essa luz que desde o prólogo do Evangelho de São João nos é apresentada como para a nossa salvação, para a nossa iluminação, que nos é oferecida para o nosso acolhimento.

Deus renuncia ao julgamento da condenação, porque o seu juízo é uma iluminação, é um colocar à luz do que é o seu amor, o seu desejo de realização, e as nossas potencialidades.

E no seguimento de Nicodemos, o que Jesus nos pede é de aceitar sem medo esta luz, esta iluminação, este deixar sair à luz os nossos medos e fracassos, porque a luz que nos é oferecida é amor, é o amor de Deus.

Como já dissemos, a experiência desta luz que Jesus nos traz, vai remodelar a vida de Nicodemos, não é num momento mágico que tudo se resolve, e a remodelação é de tal modo que o leva a não ter medo de se opor à forma como o pretendem condenar e depois, já elevado na cruz, de receber o seu corpo como um tesouro, como o corpo de um rei, poderíamos dizer como o corpo da eucaristia que cuida e recebe com a maior das devoções e consideração.

Que a luz de Jesus ilumine os nossos recantos escuros, os nossos medos, de modo a que o possamos acolher como vida, como luz, como verdade, que nos encoraja e seguir em frente, a lutar pelo bem que Deus coloca no nosso coração e espera de nós nas nossas obras.   

Ilustração.

1 – Nicodemos e Jesus, de Henry Ossawa Tanner. USA.

domingo, 7 de março de 2021

Homilia Domingo III da Quaresma - Ano B

Caríssimos Irmãos

A leitura do Evangelho que escutámos, coloca à nossa consideração, neste domingo da Quaresma, o acontecimento designado como expulsão dos vendilhões do templo, um acontecimento que podemos dizer escandaloso pela marca de violência que encerra nos gestos de Jesus.

Sabemos que é um dos gestos radicais de Jesus, ou pelo menos o que é recordado com traços de violência, que vai precipitar a sua prisão e condenação, e por isso os Evangelhos Sinópticos, Mateus, Marcos e Lucas, colocam este episódio na semana imediatamente anterior à prisão de Jesus.

Contudo, o Evangelho de São João, que escutámos hoje, coloca este acontecimento no início da sua narração; e, não fosse a insistência da mãe a Virgem Maria nas bodas de Caná, este era verdadeiramente o primeiro facto da vida pública de Jesus do Evangelho de São João, um facto que marca e faz a diferença.

Assim, não podemos ler este acontecimento e gesto intempestivo de Jesus como um acto de rebelião ou condenação do sistema religioso, uma condenação do templo, ou dos rituais; e isto, não só porque Jesus frequentou o templo em outras circunstâncias, como nos é relatado pelos Evangelhos, como até se serviu dos gestos rituais para nos ilustrar a mudança necessária na nossa relação com Deus, como no caso do publicano e do fariseu que se contrapõem na sua justificação e na sua penitência, ou da oferta da viúva pobre e do rico ofertante.

Jesus não pode condenar aquilo que é antropologicamente, humanamente, necessário ao homem, o rito, o culto, os templos, que são meios que o homem necessita para a sua vida, para ser verdadeiramente homem, para se encontrar com os outros homens, para iluminar a sua caminhada comum, para dar um horizonte comum, como ainda agora pudemos testemunhar nesta viagem do Papa ao Iraque, e como podemos constatar também na primeira leitura do Livro do Êxodo, onde encontramos um conjunto de preceitos que são comuns a quase todos os povos e culturas, antropologicamente fundamentais, e por isso assumidos como sagrados, de origem divina na história bíblica.

O gesto violento de Jesus, e que São João coloca logo no início do seu Evangelho quer dizer-nos que a nossa relação com Deus, ainda que mediada por gestos ou ritos, por construções ou ofertas, não pode reduzir-se a isso, não pode ficar limitada a essa exterioridade, uma vez que se torna uma idolatria na disfuncionalidade que pode provocar.

O verdadeiro culto é o que é prestado desde o coração, desde a nossa totalidade de homens e mulheres, com as nossas fragilidades e dons, como nos é dito pelo salmista no Salmo 40: “Tu não desejas sacrifícios nem oferendas, mas abriste-me os ouvidos, tu não pedes nem holocaustos nem sacrifícios pelos pecados, e eu digo eis-me aqui para fazer a tua vontade, para cumprir a lei que colocaste no fundo do meu coração”.

A apresentação que São João nos faz deste acontecimento no início do Evangelho vai conduzir-nos a essa realidade que Jesus assume de forma perentória e paradoxal, o verdadeiro templo de Deus é o seu corpo, podemos dizer como ele, é o nosso corpo, este conjunto de matéria perecível no tempo, mas habitada por uma vida, um desejo de felicidade e plenitude que a relação com Deus ilumina e realiza. E por isso o apelo de Deus a viver bem, à realização plena através da colaboração na obra da criação. Os preceitos e mandamentos são instrumentos para essa realização.

A narração de São João e a sua lógica estrutural conduz-nos também a essa novidade de que em Jesus pelo amor da sua vida e da sua entrega se realiza o verdadeiro e pleno sacrifício e os homens não necessitam de realizar mais holocaustos, mas apenas necessitam assumir a sua oferta, querer participar dela, ser beneficiários dela.

A leitura deste domingo do Evangelho termina com a afirmação de que Jesus bem sabia o que há no homem, de bom e de menos bom, e por causa do zelo e ciúme de que nos falava o livro do Êxodo Deus não deixa de vir ao nosso encontro, de nos procurar no pouco que podemos fazer para nos incentivar e desafiar a mais. Podemos dizer que é a fraqueza de Deus, o seu amor louco por nós, obra das suas mãos.

Procuremos, pois, beneficiar dessa loucura, deixando que com a sua graça o Senhor faça crescer em nós o bem que fazemos, o bem que podemos realizar.

Ilustração:

1 – A Purificação do Templo, de El Greco, The Frick Collection, Nova York.