domingo, 7 de junho de 2020

Homilia da Solenidade da Santíssima Trindade - Ano A


Caríssimos Irmãos
Celebramos hoje, primeiro domingo após o Pentecostes, a Solenidade da Santíssima Trindade, esse grande mistério que envolve o nosso Deus, o Deus em que acreditamos, único em três pessoas distintas. Um mistério tão grande que um dos melhores autores cristãos que escreveu sobre ele, Santo Agostinho, nos conta que um dia encontrando um menino na praia a tentar deitar a água do mar numa poça que tinha feito na areia, surpreendido e estupefacto com a acção, recebeu como resposta ao seu julgamento, que a busca que realizava da compreensão do mistério de Deus era mais ainda mais difícil de realizar.
E se na Sagrada Escritura não encontramos esta expressão, cunhada apenas no século quarto por Santo Atanásio de Alexandria, a verdade é que o mistério da Santíssimo Trindade se desenvolve na história da revelação de Deus aos homens. No Antigo Testamento a expressão icónica deste mistério apresenta-se nas três personagens que visitam Abraão e comem com ele. No Novo Testamento o baptismo de Jesus no rio Jordão é outra expressão icónica, encontramos novamente a presença das três pessoas no mesmo momento e acção, e quando Jesus no fim da sua missão de Verbo encarnado envia os discípulos a baptizar e a perdoar os pecados ordena-lhes que o façam em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
As leituras que escutámos ajudam-nos a compreender este mistério, podemos dizer que nos iluminam na conversão dos nossos conceitos mal adquiridos, ou até mal compreendidos, elas colocam em destaque essa unidade de acção, a unidade do amor que se desenvolve em cada uma das pessoas da Santíssima Trindade.
A leitura do Livro do Êxodo revela-nos um Deus que é clemente e compassivo, cheio de misericórdia e fidelidade, um Deus que se revela Pai, afastando de nós essa imagem tenebrosa de um deus distante e castigador, todo poderoso e dominador, que se deve mais temer que amar. Revela-nos também que é um Deus que se faz caminhante com o seu povo, com as suas criaturas, um Deus próximo, e sobretudo capaz de uma relação, capaz de perdoar e de fazer do outro a sua herança.
É um Deus que ama o seu mundo, as suas criaturas, e desde o primeiro momento, quando ainda o seu Espírito pairava sobre as águas. Já nesse primitivo momento o seu amor o leva a ordenar o caos existente, dando-lhe uma ordem, delineando-lhe assim um caminho e uma dinâmica de vida para a realização plena. Esse amor pelo mundo e pelas criaturas é de tal modo grande, incomensurável, que perante os desvios da ordem inicial, perante o mal introduzido nessa dinâmica, envia o próprio Filho para que quem acredite nele não pereça, mas tenha a vida eterna.   
O mistério da encarnação do Verbo de Deus não é assim para a condenação do mundo, mas bem pelo contrário para a sua libertação e salvação. O juízo que o Filho vem realizar no mundo e do mundo não é para a morte, mas para a vida, é a abertura de uma via de relação, como nos é dito em linguagem bíblica, para um nova Aliança.
Neste sentido, convêm não perdermos de vista o que acontece nos nossos próprios tribunais humanos e nos julgamentos. Todo o processo judicial tem como objectivo colocar à luz a verdade dos factos, dos acontecimentos, revelar aquilo que foi feito às escuras e às escondidas dos olhos dos outros, e só depois é proferida uma sentença de condenação ou absolvição.
Jesus, mistério da Encarnação de Deus, veio trazer-nos essa luz, veio abrir-nos as portas dos tribunais, para que as nossas realidades mais escondidas, as nossas palavras e sentimentos mais recônditos fossem iluminados, veio estabelecer uma nova relação connosco próprios no que temos de bom e de menos bom.
Consciente desta dificuldade de enfrentarmos a luz, do doloroso que é vermos as nossas chagas à luz da verdade e do amor, Jesus afirma em outra passagem do Evangelho que apesar da luz ter vindo ao mundo, o mundo e os homens preferiram as trevas. O mundo fecha muitas vezes a porta à luz reveladora de Jesus, e nós também, afinal é muito mais fácil viver na penumbra dos nossos hábitos e vícios, na tranquilidade dos nossos pactos internos.
Contudo, quando fechamos a porta à luz de Cristo, poderíamos dizer ao Espírito Santo, e apesar da tranquilidade da nossa consciência, sentimos a falta da verdadeira paz, dessa paz e alegria que nos vem de Deus, que ilumina e transfigura a nossa vida, que é capaz de fecundar a nossa vida, nos seus sentimentos, palavras e gestos.
Por isso a necessidade urgente de olharmos e procurarmos viver os desafios e convites de São Paulo que escutávamos na leitura da Carta aos Coríntios: sede alegres, vivei em paz, animai-vos uns aos outros, trabalhai pela vossa perfeição, porque dessa forma o Deus do amor e da paz estará convosco.  
Deus Pai que nos criou e nos ama, que nos veio libertar da morte eterna em Jesus Cristo, vem hoje ao nosso encontro pelo Espírito Santo para continuar a realizar a missão de amor iniciada nos primórdios dos tempos, dar vida e ordem aos caos das nossas existências, dos nossos gestos, palavras e sentimentos.
Ainda que não possamos dizer muito do mistério da Santíssimo Trindade, a verdade é que o podemos viver e experienciar em cada dia, nesse amor que sentimos da parte de Deus, nas graças e dons com que vamos sendo cumulados, na paz e na alegria que vamos experimentando sempre que deixamos a luz do juízo de Deus iluminar o nosso coração e a nossa vida, na plenitude que sentimos quando nos encontramos com os outros, quando construímos teias de relações.
A Santíssima Trindade é uma teia de relações e nós somos convidados e replicá-la de modo a alcançarmos a unidade de que Deus é o modelo.

Ilustração:
1 – O Trono da Graça, de Colijn de Coter, Museu do Louvre-Lens, França.
2 – As Trindades do Céu e da Terra, de Andrés Lopez, Museu Nacional de Arte, Cidade do México.