Queridos irmãos
Neste domingo entre a celebração do
Natal e o primeiro dia do ano, no qual celebraremos a Solenidade de Santa Maria
Mãe de Deus, somos convidados a celebrar a Festa da Sagrada Família. Uma família
que nos é apresentada como modelo como nos recorda a oração Colecta que rezámos
antes de dar início à Liturgia da Palavra.
No entanto, olhando para os relatos
que nos são apresentados pelos Evangelhos, os poucos elementos que nos são
revelados, podemos questionar-nos sobre que modelo nos é apresentado. Quem somos
convidados a imitar? O que somos convidados a imitar?
Os Evangelhos apresentam-nos algo
diferente de um modelo perfeito, imaculado, sem perturbações, e basta vermos um
filho condenado ao suplício da cruz, e imaginar a nódoa que não deveria ser na
família; o mesmo filho que no início da sua adolescência apresenta uma independência
e rebeldia que até a muitos pais actuais custará a aceitar; uma concepção fora
do leito matrimonial e uma perspectiva de repúdio por parte do marido que tão
pouco deve ter sido fácil de gerir.
A família de Nazaré, de Jesus, Maria
e José, não é assim uma família ideal, como tantas outras famílias que
encontramos na Sagrada Escritura e que tão pouco o são, pois todas têm as suas
fraquezas, os seus pecados. E se o Livro de Ben-Sirá que escutámos na primeira
leitura nos faz uma apologia dos deveres dos pais para com os filhos e dos
filhos para com os pais, é porque tinha diante de si uma realidade bastante
diferente.
Assim, temos de procurar na família
de Nazaré a razão da sua exemplaridade, o que a leva a ser nos apresentada como
modelo. E para tal não podemos fixar-nos nas histórias bonitas, quase mágicas,
que nos são apresentadas pelos Evangelhos Apócrifos, e que não foram aceites no
cânone das Escrituras Sagradas na medida em que não acrescentavam nada à
verdade da mensagem dos Evangelhos canónicos, mas devemos fixarmos nos elementos
simples e concretos dos mesmos Evangelhos, que nos contam algo da família de
Jesus, Maria e José, mas preservando a sua mesma intimidade.
Assim, o que podemos encontrar como modelo
a seguir na família de Nazaré é a sua disponibilidade para o acolhimento do
imprevisto, do que escapa ao planeado e desejado, esse imprevisível que tantas
vezes é fonte de conflito interno e com os outros. E o personagem que mais
exemplarmente vive essa disponibilidade para acolher o imprevisto é São José,
paradigma do acolhimento, e por isso apontado pelo Papa Francisco como exemplo
para estes nossos tempos, tão incertos e imprevisíveis.
É interessante observar que nos
relatos evangélicos José não tem opção de escolha, como aconteceu com Maria a
quem é anunciado um facto futuro e por isso passível de aceitação ou recusa.
São José é confrontado com os factos consumados, Maria já espera um filho que
não é seu, e ele deve aceitá-lo. José é enviado ao Egipto e tão pouco tem uma
palavra a dizer, e quando muito mais tarde encontra o filho no templo discutindo
com os doutores da Lei é a esposa que toma as rédeas de colocar o filho no
devido sítio.
São José é confrontado com os factos
consumados, que ele não discute, mas aceita na obediência e na humildade, na
gratidão de quem sabe pela fé que Deus tem planos que o homem desconhece, que
Deus escreve muitas vezes por linhas tortas. José aceita e assume o que não
escolheu, o que escapa aos seus planos e projectos, umas vezes na angústia outras
vezes na alegria, mas sempre na confiança em Deus.
E surpreendentemente, quando olhamos
para a nossa própria vida, percebemos que ela é igualmente uma sucessão de
acontecimentos e factos que não planeámos, que nos escapam, e que aceitamos sem
mais, afinal fazem parte da vida. Mas se isto funciona com alguns
acontecimentos, há outros que nos colocam à prova, que exigem a nossa humilde
aceitação, e através deles a aceitação de um acolhimento de Deus no imprevisto,
no acidental.
Assim, a família de Nazaré é modelo para
cada um de nós no acolhimento da doença de um familiar querido, no acolhimento
de um filho não planeado, na disposição para aceitar os projectos e escolhas
dos filhos que não são as nossas próprias escolhas para eles, na lucidez de
aceitar que os filhos têm limites e não são estudantes brilhantes ou estrelas
do mundo mediático, que o nosso companheiro ou companheira se revela por vezes
alguém que ainda não conhecíamos.
Contudo, se a família de Jesus, Maria
e José se nos apresenta como modelo de aceitação, de acolhimento, é também por que,
como nos recordava São Paulo na leitura da Carta aos Colossenses, cada um dos
seus membros estava revestido da caridade que é o vínculo que leva à perfeição,
estava revestido desse amor que vem de Deus e transfigura todo o amor, todas as
relações, perspectiva de uma forma diferente todas as realidades e
acontecimentos.
O relato que escutámos no Evangelho
de São Lucas da apresentação de Jesus no templo após os dias de purificação, e
nomeadamente o acolhimento que o sacerdote Simeão faz do menino, mostra-nos
essa alteração de perspectiva, esse novo olhar; um velho homem que esperava a
libertação de Israel vê num menino apresentado por uma família humilde essa
libertação e dá graças a Deus. O imprevisto e o insuspeito revelam Deus
presente e salvador do seu povo.
Peçamos, pois, a Maria e a José que ao
acolhermos o Filho de Deus nas nossas vidas, como eles acolheram, estejamos dispostos
a ver a sua presença e a sua graça nos momentos imprevistos, nos momentos em
que nos é exigido uma maior humildade de aceitação do incompreensível.
Jesus Maria e José vinde em nosso
auxílio.
Ilustração:
1 – Sagrada Família com São João
Baptista, de Francesco de Mura, Colecção Privada, Web Gallery of Art.