domingo, 27 de dezembro de 2020

Homilia Festa da Sagrada Família

Queridos irmãos

Neste domingo entre a celebração do Natal e o primeiro dia do ano, no qual celebraremos a Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, somos convidados a celebrar a Festa da Sagrada Família. Uma família que nos é apresentada como modelo como nos recorda a oração Colecta que rezámos antes de dar início à Liturgia da Palavra.

No entanto, olhando para os relatos que nos são apresentados pelos Evangelhos, os poucos elementos que nos são revelados, podemos questionar-nos sobre que modelo nos é apresentado. Quem somos convidados a imitar? O que somos convidados a imitar?

Os Evangelhos apresentam-nos algo diferente de um modelo perfeito, imaculado, sem perturbações, e basta vermos um filho condenado ao suplício da cruz, e imaginar a nódoa que não deveria ser na família; o mesmo filho que no início da sua adolescência apresenta uma independência e rebeldia que até a muitos pais actuais custará a aceitar; uma concepção fora do leito matrimonial e uma perspectiva de repúdio por parte do marido que tão pouco deve ter sido fácil de gerir.

A família de Nazaré, de Jesus, Maria e José, não é assim uma família ideal, como tantas outras famílias que encontramos na Sagrada Escritura e que tão pouco o são, pois todas têm as suas fraquezas, os seus pecados. E se o Livro de Ben-Sirá que escutámos na primeira leitura nos faz uma apologia dos deveres dos pais para com os filhos e dos filhos para com os pais, é porque tinha diante de si uma realidade bastante diferente.

Assim, temos de procurar na família de Nazaré a razão da sua exemplaridade, o que a leva a ser nos apresentada como modelo. E para tal não podemos fixar-nos nas histórias bonitas, quase mágicas, que nos são apresentadas pelos Evangelhos Apócrifos, e que não foram aceites no cânone das Escrituras Sagradas na medida em que não acrescentavam nada à verdade da mensagem dos Evangelhos canónicos, mas devemos fixarmos nos elementos simples e concretos dos mesmos Evangelhos, que nos contam algo da família de Jesus, Maria e José, mas preservando a sua mesma intimidade.  

Assim, o que podemos encontrar como modelo a seguir na família de Nazaré é a sua disponibilidade para o acolhimento do imprevisto, do que escapa ao planeado e desejado, esse imprevisível que tantas vezes é fonte de conflito interno e com os outros. E o personagem que mais exemplarmente vive essa disponibilidade para acolher o imprevisto é São José, paradigma do acolhimento, e por isso apontado pelo Papa Francisco como exemplo para estes nossos tempos, tão incertos e imprevisíveis.

É interessante observar que nos relatos evangélicos José não tem opção de escolha, como aconteceu com Maria a quem é anunciado um facto futuro e por isso passível de aceitação ou recusa. São José é confrontado com os factos consumados, Maria já espera um filho que não é seu, e ele deve aceitá-lo. José é enviado ao Egipto e tão pouco tem uma palavra a dizer, e quando muito mais tarde encontra o filho no templo discutindo com os doutores da Lei é a esposa que toma as rédeas de colocar o filho no devido sítio.

São José é confrontado com os factos consumados, que ele não discute, mas aceita na obediência e na humildade, na gratidão de quem sabe pela fé que Deus tem planos que o homem desconhece, que Deus escreve muitas vezes por linhas tortas. José aceita e assume o que não escolheu, o que escapa aos seus planos e projectos, umas vezes na angústia outras vezes na alegria, mas sempre na confiança em Deus.

E surpreendentemente, quando olhamos para a nossa própria vida, percebemos que ela é igualmente uma sucessão de acontecimentos e factos que não planeámos, que nos escapam, e que aceitamos sem mais, afinal fazem parte da vida. Mas se isto funciona com alguns acontecimentos, há outros que nos colocam à prova, que exigem a nossa humilde aceitação, e através deles a aceitação de um acolhimento de Deus no imprevisto, no acidental.

Assim, a família de Nazaré é modelo para cada um de nós no acolhimento da doença de um familiar querido, no acolhimento de um filho não planeado, na disposição para aceitar os projectos e escolhas dos filhos que não são as nossas próprias escolhas para eles, na lucidez de aceitar que os filhos têm limites e não são estudantes brilhantes ou estrelas do mundo mediático, que o nosso companheiro ou companheira se revela por vezes alguém que ainda não conhecíamos.

Contudo, se a família de Jesus, Maria e José se nos apresenta como modelo de aceitação, de acolhimento, é também por que, como nos recordava São Paulo na leitura da Carta aos Colossenses, cada um dos seus membros estava revestido da caridade que é o vínculo que leva à perfeição, estava revestido desse amor que vem de Deus e transfigura todo o amor, todas as relações, perspectiva de uma forma diferente todas as realidades e acontecimentos.

O relato que escutámos no Evangelho de São Lucas da apresentação de Jesus no templo após os dias de purificação, e nomeadamente o acolhimento que o sacerdote Simeão faz do menino, mostra-nos essa alteração de perspectiva, esse novo olhar; um velho homem que esperava a libertação de Israel vê num menino apresentado por uma família humilde essa libertação e dá graças a Deus. O imprevisto e o insuspeito revelam Deus presente e salvador do seu povo.

Peçamos, pois, a Maria e a José que ao acolhermos o Filho de Deus nas nossas vidas, como eles acolheram, estejamos dispostos a ver a sua presença e a sua graça nos momentos imprevistos, nos momentos em que nos é exigido uma maior humildade de aceitação do incompreensível.

Jesus Maria e José vinde em nosso auxílio.

 

Ilustração:

1 – Sagrada Família com São João Baptista, de Francesco de Mura, Colecção Privada, Web Gallery of Art.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Texto de Noite de Natal - Que dizem os teus olhos?...

Que dizem os teus olhos?...

São duas da manhã e o silêncio lá fora faz-se sentir, quase arrepia tanto como o frio da noite.

Olho para ti, envolto em panos que a tua mãe trouxe de casa, sabendo que algo poderia acontecer nestes dias aqui. Frágil, pequenino, de braços estendidos como pedindo colo.

Olhos os teus olhos, lindos, que ainda não me podem ver, que ainda não me podem acariciar com ternura como uma gota de água que rola pela face. Olho-te nos olhos e sonho que sonhos serão os teus. Quanto amor nesse olhar que ainda não me vê, mas que já me ama!

E nos teus olhos recordo outros olhos, outros olhares, outros homens e mulheres, a agitação do dia de hoje, a ansiedade da espera. Foi um dia longo, quase desesperante, mas agora o silêncio dá-lhe distância, relatividade, tu já estás entre nós, e que alegria, que paz, quanta serenidade.

Nos teus olhos que bailam como estrelas cintilantes revejo a agitação do dia, uma agitação alucinada, desenfreada, tão distante deste teu bailar de olhos. Procurámos um lugar, o conforto de quatro paredes e não conseguimos. Cruzámos olhares com gente apressada, ansiosa, preocupada, que não perceberam que podiam contemplar os teus olhos se nos abrissem a porta, se nos cedessem um lugar. Anda tudo tão ensimesmado que nem os olhos olham.

Nos teus olhos pequeninos vejo aqueles que nos trouxeram até aqui, que na sua pobreza e humildade partilharam o pouco que tinham connosco, ansiosos por ver o teu olhar, tanto ou mais que a tua própria mãe. Será menino, será menina? O que podemos fazer? O que podemos trazer? O que necessitam? Foram o abrigo e o conforto deste estábulo que de repente se tornou o lugar mais importante do mundo, todos te esperavam tão ansiosos como eu e a tua mãe.

E de repente, sem sabermos de onde, nem como, muitos outros começaram a chegar para te ver, a ti que tinhas acabado de nascer. Os seus olhos expectantes recordaram-me outros olhos, como os da Mafalda, do Duarte, da Vera, do Diogo, olhos cheios de curiosidade, de expectativa juvenil, interpelantes, conquistadores de um mundo que se abre diante deles.

Apareceram também os pastores e um deles mais ousado, o Pedro, encheu-se de coragem e cantou para ti, por ti, para nós, surpreendentemente, pulverizando os olhos de todos os presentes com o pó mágico de que somos capazes quando ousamos, quando não nos deixamos intimidar. Olho os teus olhos e descubro que também tu nunca de deixarás intimidar. Os teus olhos estão cheios de coragem e fortaleza.

Coragem e fortaleza para ti e para os outros. Os teus olhos plenos de bondade dizem-me já que nunca deixarás alguém sem levantar, sem dignificar, sem libertar. E recordo os olhos tristes e doridos, vazios, das mães que perderam os seus filhos; não podem estar se não vazios depois de perderem o fruto amado das suas estranhas. Não poderia suportar a dor do olhar da tua mãe se te perdêssemos.

E, de repente, noto no teu olhar uma nostalgia, uma luz que vem desde o princípio do mundo, uma luz que transfigura tudo o que perspectiva, que me transfigura no teu próprio olhar que não me pode ver. Essa nostalgia da primeira hora em que nos olhávamos sem medo nem vergonha, em que nos víamos como somos sem pudor. Olho os teus olhos que não me veem e sinto que sou visto até ao mais ínfimo do meu coração, que me conheces já por dentro e por fora, que nada do meu ser te é oculto.

Olho os teus olhos e vejo o amor que sentes por mim e nasce em mim um desejo de mergulhar nesse teu olhar, de me deixar envolver por ele, de como um naufrago afogar-me para sempre nesse mar profundo.

O silêncio lá fora, como o frio, aproxima-me de ti, obriga-me a aquecer o teu corpo com o calor do meu corpo, a proteger-te de todos os perigos. E mais próximo de ti, com a cabeça sobre a mão, contemplo os teus olhos, pequeninos, lindos e apaixono-me; já não saberei viver sem ti, sem esse teu olhar, meu menino Jesus.

 

 

domingo, 13 de dezembro de 2020

Homilia Domingo III do Advento - Ano B

Queridos Irmãos

 Estamos a celebrar o terceiro domingo do Advento, conhecido como o domingo Gaudete, o domingo da alegria. Em cada ano, em cada caminhada de preparação para uma festa importante, como o Natal e a Páscoa encontramos mais ou menos a meio do percurso um domingo de alegria, um convite a recobrar o ânimo face ao desgaste do esforço da caminhada.

Este convite feito a meio do Advento e da Quaresma deveria, no entanto, ser um convite e um desafio a ter presentes ao longo de todo o ano. Os cristãos deveriam ser homens e mulheres alegres. Já o filósofo Nietzsche dizia que se os cristãos fossem mais alegres ponderaria a sua conversão. Afinal o que fizemos com a nossa alegria, com a alegria de nos sabermos filhos amados de Deus, homens e mulheres resgatados à condenação da finitude eterna?

Ao prepararmos o Natal do Senhor e ao celebrar este domingo Gaudete o convite à alegria ressoa nos nossos ouvidos, mas poderemos confundir a alegria com a euforia, a alegria que nasce do coração e da sua segurança em Deus com a euforia que brota dos movimentos de satisfação imediata, do nosso egoísmo. E é necessário estar vigilantes, porque nos mecanismos de expectativa e satisfação que nos são inerentes podemos facilmente passar de uma experiência de dom a uma embriaguez de expectativa e satisfação.

Neste sentido, e para um discernimento das coisas boas, de que nos falava a leitura da Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, do discernimento da verdadeira alegria é bom que tenhamos presente a experiência e a história de João Baptista que escutámos no Evangelho de São João deste domingo.

João Baptista situa-se no deserto, porque é assim, nesse lugar de despojamento e de fragilidade que se pode encontrar e pode responder às razões da sua missão e da sua alegria. É essa experiência do encontro consigo e com Deus que lhe permite não se iludir nem se desviar com as multidões que o procuram, com a fama que tinha granjeado. É nessa experiência de despojamento e fragilidade que se descobre existente em função de outro, daquele que ele reconhece já presente no meio da multidão. João não é um profeta, não é Elias, não é o Messias, não é ninguém por si só, mas é a voz do que clama no deserto, é alguém em relação com o outro.

Também cada um de nós poderá fazer essa experiência, perguntando-se quem é, afinal quem é que eu sou, e certamente vai encontrar-se com as mesmas respostas que João Baptista, o não ser por si próprio, e ser por alguém. Eu sou filho de alguém, sou irmão de alguém, sou membro de uma família, de uma equipa de trabalho, de uma comunidade, de um partido ou de um clube. Nós somos alguém por referências externas a nós próprios, porque se nos formos construir e definir simplesmente por nós descobrirmos que não somos.

E é interessante verificar como João Baptista faz a experiência da alegria em relação com outro, e de modo claro com Jesus, ainda antes do seu nascimento, quando Maria visita Isabel e João estremece de alegria no seio de Isabel. Não sabemos qual foi o tipo de relação entre estes primos, mas os encontros devem ter sido sempre experiências de profunda alteridade e dessa forma de grande alegria.  

E é aqui que se joga a nossa experiência de alegria, o nosso encontro com esse dom que Deus nos faz, na experiência de alteridade, um Deus que é outro que vem ao nosso encontro, que se faz humanidade para que nos possamos encontrar com ele, mas também para que possamos perceber nos outros nossos irmãos, homens e mulheres, o quanto diferentes são e dessa forma instrumentos da nossa alegria. É nesta alteridade que descobrimos e fazemos a experiência de que aquele que vem depois de João está já também presente no meio de nós.

Ao iniciarmos esta terceira semana do Advento, ao darmos mais um passo no sentido da experiência profunda do Natal de Jesus, procuremos, pois, estar atentos aos que nos definem, aos nossos irmãos que nos fazem ser, nos dão corpo identitário, e apesar das nossas fragilidades e das fragilidades deles não desistamos de fazer a experiência da verdadeira alegria.

Afinal, a vocação de todo e qualquer cristão é a de gritar no meio do deserto, no meio desta pandemia que nos traz desorientados, desalentados, que aquele que esperamos, aquele que nos dá a verdadeira e definitiva identidade está já presente no meio de nós, faz-se vida e carne que podemos tocar em cada um dos nossos irmãos, na fraternidade e no amor que partilhamos na prossecução da plenitude e realização de todos.


Ilustração:

1 – Aparição de Cristo ao povo, Alexander Ivanov, Tretyakov Galery, Moscovo.

domingo, 6 de dezembro de 2020

Homilia Domingo II do Advento - Ano B

Queridos Irmãos

A leitura do Evangelho do domingo passado, primeiro domingo do Advento, convidava e desafiava-nos a vigiar, a estar atentos ao que vai acontecendo na nossa vida, e de modo particular ao que vamos fazendo com a graça e missão que o Senhor nos confia.

Hoje a leitura do Evangelho de São Marcos, bem como a leitura do profeta Isaías, convidam-nos e desafiam-nos a preparar o caminho do Senhor, a endireitar as veredas da nossa vida para que ele possa vir ao nosso encontro.

Neste sentido, é de todo conveniente perguntar-nos o que temos feito, que preparação temos realizado, e sobretudo qual a sua qualidade. E para nos elucidar da necessidade de qualidade desta preparação nada como recordar um acontecimento histórico do final do século dezoito na Rússia.

Quando Catarina II quis visitar a Crimeia, o seu ministro, para que ela não visse a miséria e pobreza em que vivia o povo russo, foi tapando as miseráveis moradias dos camponeses com fachadas falsas feitas de cartão, que iam sendo mudadas ao ritmo da passagem da czarina. Ficaram conhecidas como as casas Potemkine, pois assim se chamava o ministro.

Na nossa caminhada de preparação para celebrar o Natal de Jesus, do Filho de Deus feito homem, podemos e devemos perguntar-nos sobre as fachadas que estamos a construir, as máscaras que estamos a colocar no nosso processo de preparação do caminho para o Senhor.

Propomo-nos rezar com um renovado afinco, planeamos um gesto de partilha e fraternidade com aqueles que não têm, esboçamos uma nova atitude para com aqueles que vivem connosco e partilham o nosso ritmo quotidiano. Mas será isto verdadeira preparação do caminho do Senhor, ou uma fachada para não nos envolvermos numa profunda reforma, para não enfrentarmos a nossa pobreza e miséria?

A leitura de hoje do Evangelho apresenta-nos também essa figura carismática, com verdadeiro perfil de líder religioso, que foi João Baptista, um homem que vive de forma austera, com uma palavra exigente, e que se situa nas margens do rio Jordão no deserto. A sua extravagância leva os outros ao seu encontro, a fazer essa experiência do deserto tão querida à história da revelação e ao encontro de Deus com os homens.

É no deserto que Deus se revela, nesse espaço imenso em que o homem faz a experiência das suas limitações, da sua incapacidade e pequenez, da sua fragilidade. Os homens de Jerusalém vão ao deserto escutar João Baptista e podem fazer esta experiência, encontrar-se consigo próprios e o apelo de Deus a uma vida mais justa.

A nossa preparação do caminho do Senhor passa assim inevitavelmente pela ida ao deserto, pelo encontro com a nossa pequenez e fragilidade, com a nossa condição pecadora. Só a partir desse confronto podemos verdadeiramente começar a reforma, a construir uma nova face para as nossa vidas, a preparar o nosso coração para o nascimento de Deus.

Na nossa caminhada de Advento, e de crentes ao longo do ano, podemos esforçar-nos por um objectivo, malhar duro como num exercício de ginásio, mas estaremos apenas a viver uma ascese heroica; podemos também desenvolver um activismo frenético, que não deixará de ser apenas isso; no entanto, para uma profunda e verdadeira conversão temos de deixar o coração deserto, abrir o coração pobre e pecador à graça filial que o Senhor nos concede. Como disse o Cardeal Daniélou, “o heroísmo mostra o que pode o homem, a santidade mostra o que Deus pode”.

E temos de contar mais com Deus que connosco, não numa espera passiva de domingo à tarde num inverno chuvoso sentados no sofá, mas empenhando-nos em viver uma vida santa, sem motivo algum de censura, como nos desafia a leitura da Segunda Epístola de São Pedro, para que o Senhor nos encontre na paz. Em outras palavras, vivendo a graça filial que recebemos no baptismo.

Muitas vezes assumimos o baptismo que recebemos como um mero rito, um fazer de algo, às vezes até como um acto mágico para nos livrar do mal, esquecendo-nos ou não querendo saber que o baptismo nos insere na intimidade da Santíssima Trindade, que recebemos pelo dom do Espírito Santo essa filiação que nos coloca no interior de uma relação. Ser baptizado, estar baptizado, é viver uma relação com outro, construir uma vida conjunta, unida, uma vida com Deus que é totalmente santo.

Como baptizados e desejando preparar o nosso coração para celebrar o nascimento do nosso Salvador, Jesus Cristo, do Filho de Deus que nos abriu o caminho de nos podermos chamar e ser filhos de Deus verdadeiramente, procuremos pois reformar e reconstruir as nossas atitudes e palavras, os nosso gestos e pensamentos, não como um mero gesto de cosmética para nos deixar bonitos para a festa, mas porque a nossa vida e os dons que Deus nos concedeu se destinam à perfeição, à plenitude, a uma completa realização.

Ilustração:

1 – São João Baptista, de Luca Giordano, San Antonio Museum of Art, Texas, USA.

 

domingo, 29 de novembro de 2020

Homilia Domingo I do Advento - Ano B

Queridos irmãos

Estamos a iniciar o Advento, este tempo de caminhada e preparação para a celebração do Natal do Senhor Jesus. Durante quatro semanas vamos procurar preparar o nosso coração para que o Menino que nasceu em Belém nasça também no nosso coração, em cada dia, em cada palavra, em cada gesto.

E ao iniciarmos este tempo e caminhada, o Evangelho de São Marcos que escutámos apela-nos a vigiar, a estar atentos, uma vez que não sabemos quando virá o Senhor. Certamente pela fluidez o tempo, pelo movimento em que vivemos e nos desenvolvemos, inconscientemente remetemos esta vinda do Senhor para o futuro. Contudo, a vinda do Senhor acontece em cada dia, e por essa razão não sabemos a hora.

Na nossa caminhada de fé, como discípulos de Jesus e filhos de Deus vivemos nesta grande amplitude do tempo que já foi, do tempo que virá e do tempo presente. O Jesus que esperamos é o mesmo Jesus que já veio há dois mil anos, e que em cada irmão continua a vir ao nosso encontro.

Assim, o apelo do Evangelho a vigiar não se joga num futuro desconhecido, na perspectiva de uma recompensa no futuro, mas joga-se no presente, no nosso tempo presente. É agora que o Senhor vem e este é o grande desafio.

Corroborando esta ideia de actualidade vemos como Jesus insere uma pequena parábola para nos chamar a atenção, uma parábola que se vai desenvolver nos outros Evangelhos de uma forma mais elaborada. O Senhor partiu e confiou aos seus servos os seus poderes e uma tarefa a cada um. O convite à vigilância e ao cuidado prende-se assim com estes poderes e esta tarefa. Que estou eu a fazer com aquilo que sou e que tenho?

E neste sentido, na busca de uma resposta, não podemos limitar-nos aos dons e talentos de cada um, às oportunidades que a parábola dos talentos nos aponta. Tendo presente a Carta de São Paulo aos Coríntios que escutámos, sabemos que recebemos os dons da graça, não nos falta nenhum, que fomos enriquecidos em tudo pelos mistérios da encarnação e da redenção operados por Jesus Cristo, e por isso a nossa pergunta deve ir ao encontro desta realidade. O que estamos a fazer com a graça divina que nos foi conferida no baptismo e que vamos alimentando em cada Eucaristia, em cada sacramento da reconciliação, com as nossas obras de piedade e misericórdia?

Contudo, na leitura do Evangelho de hoje, as palavras de Jesus vão um pouco mais longe, podemos dizer que se tornam mais radicais, ou no mínimo mais conscientes da realidade da nossa humanidade, quando nos é dito que ao porteiro se mandou que vigiasse. Será o porteiro alguém em particular? Os ministros da Igreja? Ou não estaremos todos incumbidos e envolvidos na mesma realidade e necessidade de vigiar à porta?

A porta é o espaço de fronteira, é o que separa o interior do exterior, o que se pode fechar e dessa forma isolar-nos ou se pode abrir e assim facultar-nos o acesso aos outros e ao mundo. No entanto, é nesse espaço, nessa brecha, que Jesus nos convida a colocar, a estar atentos e vigilantes, e como à beira de uma ravina vamos caminhando atentamente para nos cairmos, mantendo o equilíbrio tantas vezes exigente entre nós e os outros, entre o nosso interior e o mundo.

O convite e apelo a vigiar neste tempo de Advento é assim um convite a olhar, e a olhar atentamente o tempo presente, as oportunidades do tempo presente, e de uma forma equilibrada fazer a caminhada ao encontro de Deus e dos irmãos conjugando o que é melhor, o que é justo e verdadeiro, o que conduz à maior glória de Deus e à nossa santidade.

E neste sentido não podemos deixar de ter presente a metáfora belíssima que o profeta Isaías usa ao falar do barro nas mãos do oleiro e que nós podemos ler em duas dimensões.

A primeira, e que se prende com cada um de nós e as suas acções, a sua busca e caminhada; tal como o oleiro não desiste da perfeição da obra das suas mãos, também nós não devemos desistir de procurar a perfeição, o melhor que há em nós e nos outros, a santidade que Deus colocou no coração e na vida de cada um de nós. O Senhor deu-nos plenos poderes, os seus poderes.

A segunda, que se prende igualmente connosco, mas que tem já Deus como primeiro actor. Tal como o oleiro molda um vaso ou uma jarra perfeita na medida em que o barro está mais maleável, mais elástico, assim também nós nos devemos colocar nas mãos de Deus, de forma maleável, abertos à sua acção transformadora da nossa vida, acolhendo e assumindo os dons da sua graça, dons que nos tornarão irrepreensíveis para a sua vinda, que nos conduzirão à perfeição.

Assim, nesta primeira semana de Advento, nesta preparação de um Natal cujas celebrações serão diferentes do que estamos habituados, procuremos estar vigilantes, atentos, aos dons e graças que o Senhor nos concedeu e concede, aos poderes e missões que nos foram conferidas, maleáveis à sua acção divina em cada um de nós. Se o fizermos, certamente chegaremos junto do presépio do Menino Deus com uns bons presentes para lhe oferecer, os frutos da sua graça santificante nas nossas vidas.

 Ilustração:

1 – Escultura de oleiro com o seu torno, sobreporta da Rue Bayeux, Caen (Calvados) França.

domingo, 22 de novembro de 2020

Homilia Solenidade de Jesus Cristo Rei - Ano A

Caríssimos irmãos

Estamos a celebrar a Solenidade de Cristo Rei, uma solenidade instituída pelo Papa Pio XI em 1925 depois das atrocidades vividas na Primeira Guerra Mundial e a implantação do estado comunista na Rússia; e que visava não só realçar a realeza de Jesus Cristo, mas também o ministério dos leigos no mundo como construtores do Reino de Deus nas mais diversas realidades humanas, como a política ou a economia.

Este conceito e estatuto da realeza de Jesus Cristo não é, contudo, novo, pois na Idade Média encontramos diversas representações de Jesus crucificado e coroado com uma coroa de ouro, como um rei, fruto da própria narração que encontramos no Evangelho, e neste caso em particular do momento da paixão e morte de Jesus e do pedido do bom ladrão, “lembra-te de mim quando estiveres no teu reino”.

Este momento, e este pedido, é paradigmático da realeza de Jesus, uma realeza escondida aos olhos do mundo, mas visível aos olhos do coração e daqueles que procuram a justiça. Todo o Evangelho se constrói, nesta questão, numa espécie de equívoco que visa cegar os que procuram o poder do mundo e iluminar os que procuram a sabedoria e a humanidade.

Já na narração do nascimento de Jesus encontramos este jogo de escondidas, quando os reis vindos do oriente chegam a Jerusalém à procura de um rei que tinha nascido e nada encontram do que buscavam. Será numa manjedoura, envolto em paninhos, que irão encontrar esse rei tão desejado e procurado, num recém-nascido frágil e indefeso, humilde e pobre.

A entrada de Jesus em Jerusalém, aclamado como rei pela multidão, é igualmente uma cena equívoca, pois aquele que é aclamado como rei apresenta-se montado num jumentinho, e uma vez mais numa fragilidade e vulnerabilidade que escondem aos olhos do mundo o poder e a realeza daquele que vem ao encontro da cidade santa com o dom da sua vida, para a sua salvação e redenção de todos os homens.

É esta mesma realidade escondida que nos é apresentada no Evangelho de São Mateus que escutámos, pois tanto aqueles que entram na glória do reino como aqueles que são condenados não sabem dizer nem têm consciência de quando se encontraram ou desencontraram com o Senhor. Quando é que te vimos?

Talvez, por esta razão, não encontremos nos Evangelhos nenhuma descrição física de Jesus, nenhum esboço do seu rosto, pois afinal é em cada um de nós que se encontra o seu rosto, e de modo muito especial após a ressurreição. Na manhã de Páscoa Maria Madalena não reconhece o rosto do amado na figura do jardineiro, no caminho de Emaús os discípulos não reconhecem o caminhante que se junta a eles, nas margens do lago Pedro não reconhece aquele que lhes pergunta se pescaram alguma coisa.

Hoje, e ainda hoje, é desta forma que Jesus se nos apresenta e nos oferece a sua realeza, no rosto dos nossos irmãos, nas suas mãos estendias e nas suas necessidades. É quando vamos ao encontro do outro e das suas necessidade e fragilidades, quando percebemos aí o apelo de Deus, que Ele se nos revela, é nessa humildade e pobreza, nessa fragilidade. A realeza de Jesus é como um vazio que necessita ser preenchido, por algo de nós que partilhamos com o que os outros partilham connosco.

Quanta beleza e poder de Jesus Cristo podemos descobrir na dança alegre e esfusiante de uma criança com trissomia, uma alegria e efusão que nos contagiam, que nos fazem sorrir, que nos ajudam a relativizar os nossos problemas e dificuldades. Como necessitamos ter os olhos bem abertos, os olhos do coração, porque há verdades que só os olhos do coração podem ver.

Olhos que nos permitem ver também que este rei que é Nosso Senhor, caminha connosco, vem ao nosso encontro como o pastor de que nos falava a leitura do profeta Ezequiel, para nos cuidar, para nos reconduzir ao bom caminho, para impedir que nos desgarremos numa noite de nevoeiro, nas incertezas da nossa vida, no desalento e desespero face às dificuldades.

E neste sentido, é bom recordar uma realidade e conceito da época medieval, posteriormente criticado, mas que nos ajuda a perceber esta dinâmica de Deus connosco na sua realeza, e que se trata da chamada vassalagem. Tal como os vassalos colocavam ao serviço do senhor as suas forças e armas, assim o senhor garantia a cada um deles a protecção e a segurança. Havia uma partilha e responsabilidade mútuas, uma corresponsabilidade e fidelidade.

Com Jesus Cristo, Rei do Universo, o processo é semelhante, uma vez que colocando ao serviço da construção do Reino as nossas forças e capacidades, manifestas na vigilância e atenção ao outro, assim o mesmo Senhor coloca ao nosso serviço a sua graça divina para desenvolvermos estas forças e capacidade de modo a sermos acolhidos no seu Reino, como amigos convidados a partilhar do seu banquete.

Assim, nestes dias que nos vão conduzir ao início do Advento e através dele à celebração do nascimento do Filho de Deus feito homem, que o nosso olhar sobre os nossos irmãos seja um olhar vigilante, atento, mas pleno de ternura, para encontrar e reconhecer essa presença real de Jesus em cada um dos homens e mulheres com quem partilhamos a vida. E colocando todas as nossas forças e capacidades em acção, possamos, pelos nossos gestos e palavras em desenvolvimento, transformar um pouco o mundo de modo a que ele seja cada vez mais Reino de Deus.

Ilustração:

1 – Cristo do Calvário de Atienza, Espanha.

domingo, 15 de novembro de 2020

Homilia XXXIII Domingo do Tempo Comum - Ano A

Queridos Irmãos

Estamos praticamente a terminar o ano litúrgico e neste último domingo, antes da Festa de Cristo Rei, a leitura do Evangelho apresenta-nos a chamada parábola dos talentos, um texto certamente conhecido de todos nós e objecto de diversas meditações e reflexões, e sobre o qual muito poderíamos dizer.

Contudo, vamos centrar-nos em apenas alguns elementos sobre os quais se constrói a parábola, mas que nos podem ajudar a viver estes tempos incertos e desafiantes que estamos a viver.

Antes de mais, e como primeiro dado de reflexão, temos de olhar o que o senhor faz, o homem que parte de viagem, que chama os seus servos e lhes confia os seus bens, segundo as capacidades de cada um.

Este homem viajante, o nosso Deus, confia em cada um de nós e entrega-nos os seus bens para que nós os administremos enquanto ele viaja. Este gesto deve ser para nós um motivo de confiança e de esperança, pois Deus acredita em nós, nas nossas capacidades, faz-nos cooperadores do seu património, dos seus bens, conta connosco. Este gesto de Deus deveria levar-nos a uma atitude mais confiante e activa face aos nossos dons e capacidades, às oportunidades que nos surgem na vida.

Esta entrega dos bens, segundo as nossas capacidades, deve levar-nos a amar e a considerar o que somos e o que temos, as nossas capacidades e dons. Quantas vezes não desperdiçamos a nossa vida porque nos distraímos a olhar para o que os outros têm, algumas vezes permitindo até que se gere no nosso coração a inveja.

A questão não é o que os outros têm, mas o que eu tenho e sou, e como faço frutificar esses dons, como os procuro desenvolver para a minha realização e felicidade, e para o bem dos outros e a glória de Deus. Quantas vidas não são vividas, quanta frustração não é gerada, porque se imagina a realização em outro lugar, alcançada de outra forma, e, no entanto, é onde estamos e com o que somos que Deus nos pede que demos frutos.

Um segundo dado a ter presente na nossa reflexão e para a nossa vida é o valor do que é confiado aos servos. Os estudos bíblicos dizem-nos que um talento representava anos de trabalho, pelo que todos recebem incomensuravelmente muito, mesmo o servo que recebe apenas um talento.

Este exagero e excesso de dádiva mostra-nos que não estamos apenas diante de um conjunto de dons e capacidades, de uma realidade meramente humana ou até produtiva, há algo intrínseco ao próprio Senhor que faz a oferta e que não nos dá do que lhe é externo, mas dos seus próprios bens, de si próprio. Esta dádiva exagerada mostra-nos que é o próprio Senhor que se entrega, a sua dignidade e vida divina, e por isso quando os servos entregam o fruto do que lhes foi confiado é dito a um e a outro que tomem parte na alegria do seu senhor.

Na parábola nada é dito da forma como cada um dos bons servos fez produzir o que tinha recebido do seu senhor, apenas há um produto e resultado que é entregue. Desta forma fica ao discernimento e critério de cada um a frutificação do recebido, poderíamos dizer a forma como a vida da graça é vivida, essa confiança e colaboração que Deus conta que assumamos. Diante do exagero do valor confiado, o importante não é a quantidade do produzido, pois o que se poderia entregar face a tão grande generosidade, mas o vivido e realizado com tal valor, a qualidade de vida vivida com o recebido do senhor. Aqui joga-se uma reavaliação das nossas prioridades, o que é afinal fundamental.

Um terceiro elemento a ter presente na leitura da parábola é a questão do medo, pois o servo que recebeu apenas um talento foi enterrá-lo por medo do senhor que colhia onde não semeava. Quantas vezes não deixamos que o medo nos impeça de fazer o que devemos fazer, de usar os nossos dons e capacidades, de viver e testemunhar dignamente a nossa condição de filhos de Deus, de herdeiros do seu Reino, participantes da sua dignidade e glória. Quantas vezes não inviabilizamos a alegria de ser acolhidos na eternidade pelo Senhor porque não vivemos nem somos testemunhas dessa mesma alegria que nos está prometida.

Mas se esconder o talento recebido conduz à morte, esta morte pode também acontecer pela nossa humildade, porque não queremos dar nas vistas, preferimos passar despercebidos, e, portanto, inviabilizamos a realização de todo o potencial que o talento acarreta consigo. Neste sentido convêm recordar o comentário de São Tomás de Aquino sobre este servo da parábola que não foi condenado por ter feito algo de errado, mas por não ter feito o bem com o que tinha e podia. São as omissões que tantas vezes nos esquecemos de confessar quando nos abeiramos do sacramento da reconciliação. Quanto bem não ficou por realizar?

Assim, e nesta linha de pensamento temos que assumir o apelo de São José Maria Escrivá a não nos aburguesarmos, a não nos deixarmos intimidar pela multidão, a combater a tibieza e a preguiça, para que a nossa vida produza verdadeiros e abundantes frutos, para que os dons recebidos e partilhados uns com os outros nos conduzam à plena participação na alegria do Senhor desde já pelo bem realizado.

Ilustração:

1 – Parábola dos Talentos, de Andrey Mironov. (Wikimedia Commons)

domingo, 1 de novembro de 2020

Homilia Solenidade de Todos os Santos

Caríssimos Irmãos

O cântico de entrada da nossa celebração dizia que “vimos para louvar o Senhor”, e se todos os domingos e em cada Eucaristia nos reunimos com essa intenção, hoje o nosso louvor faz eco desse dom que Deus concede a todos os homens, a santidade. Estamos reunidos para celebrar a Solenidade de todos os santos, os que a Igreja reconheceu e reconhece oficialmente e todos aqueles que no anonimato e no silêncio das suas vidas viveram esse grande dom de Deus.

A cada uma das Bem-Aventuranças que escutávamos na leitura do Evangelho podemos facilmente associar um santo, alguém que conhecemos pela hagiografia e no qual reconhecemos a encarnação de cada uma destas palavras de Jesus. Podemos dizer que elas desenham, traçam o retrato de um homem cristão, de um fiel seguidor de Jesus Cristo.

Mas se esta associação é correcta, não podemos deixar de ter presente que as Bem-Aventuranças traçam antes de mais o retrato de Jesus, ele é o primeiro bem-aventurado, o protótipo da nossa vida e busca da plenitude, porque ele foi o que viveu em primeiro lugar e plenamente cada uma destas Bem-Aventuranças. Até a da perseguição e do ódio pela sua própria pessoa, que por momentos parece que nos vai caber a nós também viver.

Contudo, muitas vezes, procuramos viver as Bem-Aventuranças como uma realidade negociável, numa óptica da remuneração e recompensa, pois se procuramos a verdade ou a justiça temos uma promessa de felicidade na eternidade à nossa espera. Outras vezes, e ainda nesta mesma linha, vivemos as Bem-Aventuranças como uma necessidade de sofrimento, uma via dolorosa que associamos inerente ao seguir Jesus, ao carregar a cruz, neste mundo, para depois podermos gozar da felicidade eterna.

Face a esta perspectiva, não é de todo descabido recordar o que nos dizia o frei Bernardo enquanto estava entre nós, sobre a qualidade da vida eterna e a sua dependência e relação intrínseca com a qualidade da nossa vida neste mundo. É a qualidade que procuramos colocar nesta vida, através da verdade, da justiça, do amor que vivemos, que nos alcançará a qualidade da vida eterna.

As Bem-Aventuranças são assim um convite a procurar fazer e viver como Cristo Jesus, são como que uma espécie de oito vias para nos assemelharmos a Deus na sua divindade feita humanidade para nossa instrução. Há assim um caminho para cada um, um processo, que cada um pode desenvolver e traçar na sua própria identidade e na fidelidade à graça que recebeu no baptismo e de que a simbólica que encontramos na leitura do Livro do Apocalipse nos faz menção.

Tal como encontramos na leitura do Livro do Apocalipse, no baptismo fomos marcados com o selo de Deus, com o sinal da cruz logo no início da celebração do sacramento, depois fomos purificados no sangue do cordeiro e como símbolo dessa vida nossa e dignidade inerente é-nos dada uma veste branca que devemos apresentar sem mancha na vida eterna. Como nos recordava a leitura da Primeira Carta de São João, que também escutámos, passamos a ser filhos de Deus, de uma forma misteriosa, mesclada na nossa fragilidade pecadora, mas que se manifestará um dia na sua plenitude, quando formos semelhantes a Deus, quando o pudermos ver cara a cara.

No Evangelho as Bem-Aventuranças são uma nova lei, uma nova orientação, que não visa tornar o mundo um pouco mais suportável na expectativa de um futuro, de uma eternidade, mas visa tornar o mundo melhor, aqui e agora. As Bem-Aventuranças são uma proposta de vivermos como Jesus e com Jesus e nele saborear a beleza e a grandeza dos momentos presentes.

Os santos que hoje celebramos foram homens e mulheres que tiveram esta capacidade, diríamos esta inteligência, de se perceberem consagrados pelo amor de Deus e por causa desse mesmo amor procuraram saborear na vida todos os momentos com fé, com verdade, com esperança, na fidelidade. E este é o grande desafio que nos deixam, de não deixarmos de acreditar no amor de Deus e de procurar olhar todas as realidades com os olhos amorosos e confiantes de Deus.

Se eu der o melhor de mim, se fizer o melhor que sei, sempre com amor e esperança, a santidade de Deus estará a desenvolver-se em mim e naqueles com quem partilho a vida.

Ilustração:

1 – Coroação da Virgem Maria, Fra Angélico, Uffizi, Florença.

2 – Juízo Final (Pormenor), Fra Angélico, Gemaldegalerie, Berlim.

domingo, 25 de outubro de 2020

Homilia XXX Domingo do Tempo Comum - Ano A

A leitura do Evangelho de São Mateus que escutámos apresenta-nos mais uma discussão de Jesus com os fariseus, mais um confronto na linha dos que temos vindo a assistir nos últimos domingos na leitura do Evangelho.

Hoje, a questão que os fariseus colocam prende-se com os mandamentos, querem saber na opinião de Jesus qual deles é o maior, e não deixa de ser uma questão pertinente na medida em que sabemos que aqueles homens e mulheres viviam subjugados a uma panóplia diversificada de seiscentos e sessenta e cinco mandamentos ou preceitos. Afinal o que é verdadeiramente importante, significativo.

Novamente, e à semelhança dos confrontos anteriores, Jesus responde utilizando a Sagrada Escritura, citando os textos que os seus interlocutores conheciam do estudo que lhes dedicavam. “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu espírito”. Para dizer qual é o maior dos mandamentos Jesus cita uma passagem do Livro do Êxodo. Resposta perfeita, irrepreensível, poderíamos dizer.  

No entanto, é esta mesma perfeição, e a satisfação idolátrica que podia gerar, que leva Jesus a imediatamente dizer que há outro mandamento semelhante a este, igualmente irrepreensível, ainda que diverso do primeiramente formulado, “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Um mandamento do Livro do Levítico, do livro das coisas sagradas.

A resposta dada por Jesus podia, no entanto, dar azo a objeções, a alguma questão justificativa, como aconteceu no caso do doutor da lei que se queria justificar sobre quem seria o seu próximo e nos possibilitou a parábola do bom samaritano. Para evitar esta derivações Jesus remata as suas respostas dizendo que nestes dois mandamentos se resumem toda a Lei e os profetas. O amor a Deus e o amor ao próximo são as faces da mesma moeda.

Ao responder desta forma aos seus interlocutores, Jesus coloca o acento no que era verdadeiramente importante, central, o amor, que se devia traduzir no amor a Deus e no amor ao próximo e que entre ambos não havia nenhuma incompatibilidade, bem pelo contrário se complementavam e alimentavam.

Esta afirmação de Jesus vem hoje ao nosso encontro e coloca-nos face à duplicidade de critérios que tantas vezes usamos para estar com Deus, para nos relacionarmos com Deus, e para estar com os irmãos, com os outros homens e mulheres. Quantas vezes não vivemos num abismo que nos divide no amor, esquecendo-nos que um e outro se alimentam mutuamente. Não podemos amar a Deus sem amar os irmãos e nem amar verdadeiramente os irmãos se não amarmos a Deus, como lapidarmente nos recorda a Primeira Carta de São João.

A grande questão que se nos coloca, e deriva da resposta de Jesus, é se o nosso amor a Deus e aos irmãos é por obrigação, porque nos está preceituado, ou porque o consideramos como algo natural à nossa própria essência, como uma força que nos habita e transforma, um dom que nos transcende e por isso reivindica ser partilhado.

Se assumimos a prescrição do amor, o amor como algo que nos é imposto a viver de forma regulamentada, esse amor ficará sempre na superfície, como uma máscara, que não nos permitirá desfrutar plenamente nem do amor de Deus, nem do amor de nós próprios, nem do amor do outro. Poderemos dizer que será como uma armadura para vencer os nossos apetites devoradores, a nossa tendência animal a ver no outro uma presa a abater, um adversário ou um obstáculo a vencer.

Pelo contrário se assumirmos o amor como um dom, um fruto do Espírito Santo, a participação na natureza do mesmo amor que é gerado mutuamente entre o Pai e o Filho no âmbito da Santíssima Trindade, amar a Deus, amar o outro e amarmo-nos a nós próprios será uma dinâmica transformadora da nossa vida, porque afinal o nosso amor é participação num outro amor maior, numa dinâmica interpessoal que nos leva à plenitude.

Num mundo em que tudo nos aparece regulamentado, em que há tantas leis de protecção, mas no qual parece que os instintos devoradores estão cada vez mais galopantes e desenfreados, somos chamados a ser testemunhas do amor para os outros homens e mulheres. Testemunhas frágeis, certamente muito limitadas e pobres, mas testemunhas de que há um amor que nos assume e capacita para não nos deixarmos devorar pelos apetites.

É o testemunho da paciência para com o familiar ou colega de trabalho, da amabilidade para com um estranho, da atenção para com o ignorante, da partilha simples com quem aqueles que não têm, e tantas vezes apenas necessitam de um ombro amigo, de um ouvido que escute, de um olhar de ternura. É o testemunho de encontrar no outro a presença de Deus, o abismo do amor que tantas vezes espera apenas uma ponte para ser vivido plenamente e com alegria.

À semelhança dos cristãos de Tessalónica, a quem Paulo se dirigia na Carta cuja leitura escutámos, que também em nós ressoe a Palavra de Deus que escutámos neste domingo e nesta celebração, e pelo amor partilhado nos gestos e palavras desta semana que vamos iniciar os nossos irmãos se possam encontrar com Deus e o seu amor e o louvem pela alegria desse encontro transformador.

 

Ilustração:

1 – Jesus e os fariseus, de James Tissot, Brooklyn Museum, Nova York.

2 – Santíssima Trindade, de Sandro Botticelli, Courtauld Institute of Art, Londres.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Carta de Frei João de Mansilha ao Vigário in Capite do Convento do Porto

 

A 8 de Julho de 1775 Frei João de Mansilha, Visitador da Província de Portugal, escreve ao Vigário in Capite do Convento de São Domingos do Porto, Frei Manuel de Seabra, e face aos distúrbios devido à divisão de governo institui o Vigário como Prior do Convento.

Reverendo Padre Presentado Vigário in Capite do nosso Convento de São Domingos do Porto.

Depois de ter mandado algumas providências precisas para o sossego e para o bem comum desse nosso Convento, continuamos a dar mais algumas outras, entre as quais é arrancar a semente das discórdias, que quase e sempre resultam em um governo a que presidem muitas cabeças; como a experiência tem mostrado no caso presente, no qual a Vossa Paternidade se atribui o governo da espiritualidade, e ao Padre Leitor Frei António de São Bernardo o da temporalidade; do que tem resultado todos os embaraços, e desconcertos, que a Vossa Paternidade tem afligido e a nós tem tomado muito tempo, que devemos empregar em coisas mais úteis à nossa Ordem.

Há muito tempo tínhamos nós previsto esta dificuldade; motivo porque já em parte provemos alguns remédios que fizessem cessar: não sendo porém suficientes para o restabelecimento da paz, e da observância regular, que devemos estabelecer nesse, e em todos os Conventos da nossa jurisdição; nos resolvemos mandar a Vossa Paternidade a Patente inclusa de Prior.

Ao mesmo tempo lhe mandamos também a outra Patente, pela qual Nomeamos e Instituímos a Vossa Paternidade Colector e Administrador das Esmolas, Bens e Rendas do Sagrado Lausperene do Senhor Jesus desse Convento. Assim que Vossa Paternidade receber esta nossa Carta mandará chamar à sua cela ao Reverendo Padre Leitor Frei António de São Bernardo, e lhe dará a Carta inclusa, que lhe escrevemos, na qual lhe ordenamos execute o que pela dita nossa Patente determinamos a respeito da entrega da Administração do Sagrado Lausperene; e ao mesmo tempo lhe damos certas providências para que o dito Padre nem fique desgostoso nem deteriorado; antes sim muito satisfeito.

Remetendo-nos à Carta que escrevemos a Vossa Paternidade no correio passado, esperamos que neste novo emprego e em tudo o que a ele respeita haja Vossa Paternidade de proceder com aquela probidade e zelo que até o presente tem praticado; pois que do contrário lhe não poderão resultar as boas consequências que Nós muito lhe desejamos.

Deus guarde a Vossa Paternidade Reverendíssima

São Domingos de Lisboa em 8 de Julho de 1775  

domingo, 18 de outubro de 2020

Homilia XXIX Domingo do Tempo Comum - Ano A

Caríssimos Irmãos

Certamente já todos ouvimos dizer que Jesus foi um revolucionário, certamente nós próprios já o afirmámos em algum momento, em algum debate. Podemos dizer que se utiliza esta categoria para falar e apresentar Jesus aos mais novos, num ímpeto de apresentar aquele em quem acreditamos como alguém que se configura com o nosso desejo de mudança, com o nosso sonho de um mundo melhor.

Contudo, e a bem da verdade, Jesus não foi um revolucionário e muito menos um idealista, por muito que isso nos custe e até nos dificulte o discurso sobre ele. E a passagem do Evangelho de São Mateus que escutamos hoje dá-nos claramente essa informação. Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Desolação para os herodianos e fariseus que pretendiam apanhar Jesus numa manifestação revolucionária e de desobediência, assim como para os zelotas independentistas que perceberam que Jesus jamais tomaria o partido da luta armada contra o invasor e opressor.

Para compreender melhor a marginalidade da política de Jesus, a sua posição ideológica, se assim podemos falar, basta-nos olhar para o exemplo de duas grandes revoluções, a revolução francesa de 1789 e a revolução russa de 1917, e lê-las à luz dos critérios apresentados nos tratados e ensaios políticos, como o de Louis Latzarus de 1928.

Qualquer revolução começa sempre por um movimento idealista, por uma proposta de algo inatingível, mas ainda assim atractivo e passível de existir, como a igualdade para todos. Esse ideal move os homens à acção e nesse movimento surgem os demolidores, aqueles que na sua acção destroem as estruturas e a organização social e política, como se tudo fosse mau e se tivesse que começar do zero, um novo mundo que deve surgir. O caos gerado nesta destruição conduz ao aparecimento do tirano, do salvador da pátria que tudo subjuga para que a ordem seja restabelecida, numa proposta ainda idealista de que é para o bem de todos.

Face à logica e desenvolvimento deste processo Jesus não pode ser visto como um revolucionário, pois não quis demolir nada, apenas entregou o templo do seu corpo para ser destruído; nunca se apresentou com aspirações de tirano, mas concedeu a liberdade a todos os que eram escravos do pecado e da marginalização religiosa; e muito menos pode ser considerado um idealista, uma vez que não nos apresenta um ideal inatingível, mas pelo contrário um projecto muito concreto, muito humano, que não conduz a uma ilusão.

O Jesus que os Evangelhos nos apresentam é um homem simples, humanamente desconcertante na sua simplicidade e pureza, no seu acolhimento dos outros, mesmo daqueles que atentam contra si, um homem que é reconhecido como o Messias de Deus pelo caminho de libertação que nos revela e oferece. Por isso se nos torna tão difícil falar dele às vezes, na medida em que é difícil falar de liberdade.  

E para cada um de nós, seus discípulos, é esta a dimensão que nos interessa e deve ocupar, pois também a cada um de nós é confiada esta missão de libertação, tal como foi confiada ao rei Ciro da Pérsia, que a leitura do profeta Isaías nos apresentava. Um pagão, um estrangeiro, é eleito e enviado por Deus para reconduzir o povo de Israel à sua terra, para o libertar da escravidão nos países estrangeiros. Ciro é um ungido de Deus como vai ser Jesus, apesar da dimensão e natureza das missões ser completamente díspar.

Como cristãos que estamos no mundo e convidados a transformar o mundo em que nos encontramos, a resposta de Jesus à interpelação dos fariseus e herodianos sobre o tributo a pagar a César é iluminadora da nossa relação com a política e o mundo; afinal não estamos chamados a provocar uma revolução, mas a desenvolver uma libertação. Essa é a nossa missão de baptizados.

No contexto histórico em que nos encontramos, quando o desânimo nos ataca e surgem desejos de revolução, provocados pelas injustiças e incoerências, temos que discernir os modos de proceder, de modo a não cairmos na tentação de uma revolução, mas a conduzirmos conjuntamente uma verdadeira e profunda libertação de todos.  

Neste sentido, é de todo urgente atentar nas palavras de São Paulo aos cristãos da comunidade de Tessalónica. “Recordamos a actividade da vossa fé, o esforço da vossa caridade e a firmeza da vossa esperança”. Três virtudes teologais, fé, esperança e caridade, e três virtudes morais, disposições para actuar bem, acção diligente, esforço paciente, firmeza perseverante.

Assim, nesta semana que agora vamos iniciar, que as nossas palavras e gestos estejam iluminados e marcados pela fé, pelo sentido de que Deus nos chama e nos envia a fazer o bem, a colaborar na sua obra da criação, de uma forma diligente, sem preguiça e sem medo; que a nossa caridade apesar do que possa implicar de esforço e paciência não deixe de estar presente em pequenos gestos de atenção ao outro, somos responsáveis uns dos outros, “fratelli tutti”; e por fim, que sejamos perseverantes na esperança, porque pode não acabar tudo bem, para as vítimas mortais da pandemia não vai acabar bem, mas ainda assim que a nossa consciência não nos acuse de termos deixado alguém para trás, de termos derrotado alguém com uma palavra de desalento.

Demos a César o que é de César, ao mundo o que pertence à idolatria do mundo e às suas forças, e a Deus o que é de Deus, a divina humanidade de cada um de nós cuidada diligentemente com amor e humildade.

Que a Senhora do Rosário nos proteja e acompanhe na missão destes dias.


Ilustração:

1 – Dai a César o que é de César, de Jacek Malczewski, Museu Nacional de Poznan.

2 – Ciro e os Hebreus, de Jean Fouquet, Antiguidades Judaicas, Biblioteca Nacional de França.

 

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Homilia XXVII Domingo do Tempo Comum - Ano A

Queridos Irmãos

O Evangelho de São Mateus continua a apresentar-nos o conflito de Jesus na cidade santa de Jerusalém com os príncipes dos sacerdotes e os anciãos do povo. Sabendo que não tem nada a perder, Jesus é cada vez mais audaz e confronta as autoridades religiosas com a inevitabilidade da perda da aliança com Deus face à infidelidade a essa mesma aliança.

No domingo passado a infidelidade era apresentada através da parábola dos dois filhos convidados a trabalhar na vinha do pai, hoje essa infidelidade e as suas consequências são apresentadas nesta parábola conhecida como dos vinhateiros homicidas. Tomando como pano de fundo a profecia de Isaías que escutámos na primeira leitura, Jesus apresenta aos príncipes dos sacerdotes e aos anciãos do povo a sua infidelidade, a falta de cuidado da vinha do Senhor, e a consequente perda dessa vinha para outro povo que dará a seu tempo o que é devido.

A consequência da falta de cuidado da vinha e da recusa em entregar os seus frutos a devido tempo é intemporal e por isso pode estar também à espreita na nossa vida, se não nos precavermos e não tivermos cuidado com os dons que nos são concedidos, com a graça de Deus, pois não só somos também vinhateiros da vinha do Senhor, mas somos primordialmente a própria vinha, as videiras escolhidas que foram plantadas pelo Senhor, e possuímos desde já a herança que o Filho nos alcançou, razão para não o matarmos e lançarmos fora da vinha com as nossas incoerências e infidelidades, com o nosso pecado.

A verdade, é que nos é muito mais fácil perceber e assumir o papel dos vinhateiros, a função de administradores. Temos um conjunto de dons que administramos, o que nos dá prazer e satisfação, que de certa maneira nos satisfaz no nosso desejo de propriedade e apropriação. Contudo, já não é tão fácil perceber nem assumir que a propriedade não é nossa, e mais ainda, que esta propriedade só tem existência substancial na medida em que está ligada, filiada a uma outra existência, a outra pessoa que é Deus. Afinal nós somos as vides enxertadas na única cepa que é Cristo e da qual recebemos a seiva que nos alimenta e faz produzir frutos.

Assim, a nossa função de vinhateiros é fundamentalmente uma função de canalizadores ou catalisadores da seiva que circula da nossa relação com Jesus Cristo, uma seiva que leva por si própria, pela sua vitalidade intrínseca, à produção dos verdadeiros frutos, que devemos deixar crescer e desenvolver na nossa própria vida e existência. Estes frutos são já participação antecipada na herança, uma vez que são geradores de plenitude, de sentido de realização, de felicidade, da configuração com o Filho de Deus.

Não é no entanto fácil viver nesta dinâmica, de certa forma nesta dependência relacional, e por isso deixamo-nos muito facilmente vencer pelo nosso orgulho, pelo nosso desejo de ser donos e senhores da vinha e dos frutos, e desta forma possibilitamos que entre no nosso coração a inquietação, uma espécie de turbulência que nos distrai de nós próprios, dos outros e fundamentalmente de Deus. Assim, é com muita frequência que escutamos e dizemos na confissão que na nossa oração somos frequentemente invadidos por pensamentos e problemas que nos distraem na nossa oração, que nos impedem de experimentar a paz da oração.

Perante tal realidade, São Paulo deixávamos na leitura da Carta aos Filipenses um conselho, uma sugestão, que é o de apresentarmos a Deus as nossas inquietações, o de fazermos oração a partir dessa turbulência que nos invade, pois dessa maneira não só estamos a libertar o espírito das inquietações, mas com elas estamos a apresentar as pessoas, os problemas, que à luz de Deus encontram outra dimensão, outros contornos, uma paz que apenas Deus nos pode conceder. No entanto, temos de assumir que muitas vezes esta intranquilidade, estas inquietações são também falta da vivência das virtudes de que igualmente a mesma Carta nos fala. Quando olhamos para os nossos pensamentos, palavras e acções, quanto podemos avaliar de verdade e nobreza, de justiça e pureza, de amabilidade e boa reputação?

E no entanto São Paulo recomenda-nos que todas estas virtudes devem estar no nosso pensamento, devem cunhar tudo o que fazemos e somos. Na medida em que elas estão presentes, nos moldam, a paz de Deus guardará os nosso corações, libertar-nos-á da turbulência das inquietações na oração, e fará com que o nosso espírito seja mais livre, mais humilde, mais confiante na aceitação da vida que Deus nos concede enquanto intimamente ligados a Ele.

Procuremos pois, nesta semana que vamos iniciar, pautar o nosso agir por alguma destas virtudes, para que possamos não só estar mais em sintonia com Deus, mas também mais fortes para partilharmos a vida com os nossos irmãos a quem o Senhor nos envia para ajudar na recolha dos bons frutos. Que o Espirito de Deus nos inspire e ilumine.

Ilustração:

1 - Os vinhateiros homicidas, de Domenico Fetti, Currier Museum of Art, Mancheste, New Hampshire.