domingo, 31 de janeiro de 2021

Homilia Domingo IV do Tempo Comum - Ano B

Caríssimos Irmãos

A leitura que escutámos do Evangelho de São Marcos apresenta-nos o início da vida pública de Jesus, o seu debutar como pregador, e a sua primeira demonstração de poder sobre os demónios e os espíritos impuros.

É interessante registar que ainda que estejamos no primeiro momento da vida pública de Jesus, na sua primeira acção com a massa do povo, o evangelista grava sem pudor que a assembleia se maravilhava com o que Jesus dizia, que ele ensinava com autoridade. Não houve preocupação em registar as suas primeiras palavras, o seu primeiro discurso, mas os ecos e os sentimentos que elas geraram, e mais ainda, confrontando-as com as palavras dos escribas.

Assim, desde o primeiro momento da sua pregação, Jesus impõe-se pela sua palavra, porque ela tem autoridade, responde à promessa feita ao povo de Israel por Deus, como escutámos na primeira leitura, de que lhes haveria de ser enviado um profeta com poder de palavra, que fosse verdadeiramente escutado, pela sua própria autoridade.

Neste sentido, é útil perceber o significado que o autor grego utiliza para falar da autoridade de Jesus, da autoridade da sua palavra; ao utilizar o termo exousia quer significar que o seu poder, a sua autoridade é uma emanação ex da sua essência ousia. A autoridade de Jesus procede assim das profundezas do seu ser, da sua própria essência e natureza.

O que Jesus ensina com autoridade, que é reconhecido como novidade surpreendente, não é um catecismo, um conjunto de preceitos e valores aprendidos e apreendidos à superfície da pele, mas é uma difusão do seu ser, um prolongamento da sua própria pessoa e essência. Jesus é o que prega e prega o que é.

Face a esta realidade não podemos disfarçar o desafio e o apelo que nos é feito quando falamos, quando pregamos, quando nos lançamos na missão de anunciar e oferecer a verdade de Jesus aos outros. Quanto do que anunciamos é verdadeiramente fruto da autoridade da nossa pessoa, da nossa intimidade e vida com Deus? Tantas vezes nos queixamos que os outros não nos ouvem e tão poucas vezes nos acusamos de que falamos como papagaios.

Prosseguindo com a autoridade de Jesus não é de todo despiciente anotar o sentido latino da autoridade, que em latim provém do verbo augere que significa fazer crescer. A verdadeira autoridade é aquela que liberta o outro, que o faz crescer, desenvolver nas suas potencialidades e capacidades.

E é por isso que imediatamente à apreciação da autoridade da palavra de Jesus o evangelista São Marcos nos apresenta o exorcismo daquele homem que tinha um espírito impuro. A palavra com autoridade, verdadeiramente essencial, tem esse poder de libertar o outro, de o dignificar, de o transformar e fazer crescer. A palavra de Jesus realiza o que significa, tal como tinha acontecido no momento da criação quando a Palavra deu origem a todas as coisas, tal como acontece hoje nos sacramentos em que as palavras de Jesus proferidas pelo sacerdote realizam aquilo que significam, perdoando os pecados, transformando os dons do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo.

Este exorcismo realizado por Jesus manifesta, logo no princípio do Evangelho de Marcos, o objectivo do mistério da encarnação do Verbo de Deus, uma missão de libertação do homem daquilo que o impede de ser verdadeiramente homem e mulher, que o diminui e escraviza, o mal, o pecado, o demónio.

Assim, e como também nos dizia São Paulo na leitura da Carta aos Coríntios que escutámos, as nossas palavras para o outro devem sempre ser orientadas pelo interesse maior do outro, pelo seu bem, de modo a que não provoquem maior divisão ou instabilidade interior. É a caridade que devemos uns aos outros, ajudar-nos à libertação daquilo que nos divide, que nos destabiliza.

Que nesta semana que vamos iniciar possam as nossas palavras ser imbuídas de autoridade, da autoridade da nossa experiência de vida, da nossa própria fragilidade, na qual Deus também vem habitar, mas sobretudo e pela graça de Deus que sejam imbuídas de esperança, de uma grande confiança no amor de Deus para com todos e cada um de nós.  

Ilustração:

1 – Jesus cura o possuído de um espírito, vitral da catedral Notre Dame de Strasbourg.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Registo do Óbito de Frei Manuel de Santa Joana Couto Guerreiro


Registo do Óbito de Frei Manuel de Santa Joana Couto Guerreiro que residiu nos Conventos de Azeitão, Montemor-o-Novo e Setúbal, onde residiam os seus pais, e que a partir de 1824 tomou contas das paróquias de Marateca e Landeira onde veio a falecer subitamente.

Aos sete dias de Outubro de mil oitocentos e cinquenta anos, nesta freguesia de Nossa Senhora da Nazaré de Landeira dei à sepultura o corpo do Pároco da mesma o Padre Frei Manuel de Santa Joana Couto Guerreiro, egresso da Ordem de São Domingos; só recebeu o sacramenta da Extrema Unção por que não deu tempo para mais a moléstia repentina; e para que o referido conste e não haver quem já se chame pároco, faço este e assino: ano et supra.

Apontado da Marateca

Alexandre José Pinto Barroso

domingo, 24 de janeiro de 2021

Homilia Domingo III do Tempo Comum - Ano B

Caríssimos Irmãos

A leitura do Evangelho de São Marcos que escutámos diz-nos que Jesus partiu para a Galileia depois de saber que João tinha sido preso. Partiu para proclamar o Evangelho de Deus.

Também nós, hoje e aqui, proclamamos o Evangelho de Deus, tomamos contacto com a Palavra de Deus, que o Papa Francisco nos convida neste domingo a colocar em evidência, a recordar a sua importância na nossa vida.

E tal como aconteceu com Jesus, ao proclamarmos a Palavra de Deus, há irmãos nossos que estão presos, que são perseguidos e torturados, que estão doentes, que são vítimas do isolamento e da violência, que estão desempregados e não têm com que viver. Vamos tomando conhecimento de todas estas realidades ao mesmo tempo que nos é dado escutar e saborear a Palavra de Deus, e continuamos o nosso caminho, seguimos na nossa vida.

Face a isto, podemos perguntar-nos sobre a relação de Jesus com João Baptista, que tipo de amizade, de companheirismo, solidariedade, partilham, quando Jesus deixa João na prisão e parte para proclamar o Evangelho de Deus. Urgência do Evangelho? É necessário ir a outros lugares como Jesus vai depois dizer aos seus discípulos? Alguma indiferença perante a situação de João, uma vez que ele já tinha cumprido a sua missão?

A questão pode ser ainda mais profunda e traumatizante, se olharmos as realidades de sofrimento que nos cercam, e que até nos alcançam, e para as quais não encontramos resposta ou saída. Acreditaremos nós num Deus que é indiferente à nossa situação? E quando nos sentamos para escutar a Palavra de Deus, não estaremos a ser indiferentes à situação dos nossos irmãos, a faltar à caridade?

Nós sabemos que o caminho que Jesus enceta vai conduzir ao mesmo fim que neste momento João sofre, também Jesus vai sofrer a prisão, a condenação e a morte. Contudo, neste momento, o que pode ele fazer por João? E nós, que podemos nós fazer face a tantas vidas quebradas pelo sofrimento e pela violência, pela angústia e o desespero?

Como discípulos de Jesus, chamados a ser pescadores de homens, temos a obrigação de continuar a repetir as palavras do anúncio de Jesus: Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Esta é hoje a nossa missão de baptizados.

E para a compreendermos na sua profundidade temos de perceber a diferença que existe entre o tempo de que fala Jesus e o tempo como nós o concebemos, a diferença entre kairós, a palavra que Jesus utiliza e podemos traduzir por tempo presente, e o kronos, essa linearidade de momentos que se sucedem, o tempo cronológico. A leitura da Carta de São Paulo aos Coríntios vem em nosso auxílio nesta compreensão ao dizer-nos que o tempo é breve, que o cenário deste mundo é passageiro.

É no tempo presente, neste instante, que acontece o Reino de Deus, que o Reino de Deus se faz próximo, presente, que a sua Palavra se encarna uma vez mais através da nossa esperança, da nossa confiança, da nossa fé e caridade solidária para com os nossos irmãos. É aqui e agora que eu posso e devo responder ao apelo de Deus, ao apelo de conversão que altera completamente as nossas vidas, como aconteceu em Nínive após a pregação de Jonas. Não esperaram para ver se haveria melhores condições no dia seguinte, se todos estavam de acordo, acreditaram e proclamaram um jejum e revestiram-se de saco e cinza.

A Palavra de Deus que escutamos, que estudamos, que meditamos e que publicamente proclamamos permite-nos criar o espaço, uma brecha no tempo cronológico, um instante onde a subversão acontece, no qual, sem sabermos muito bem como, passamos a acreditar que é possível, que algo pode acontecer, que não estamos condenados e podemos vencer.

Nestes tempos incertos, difíceis que estamos todos a viver, necessitamos deixar as nossas redes nas barcas, por momentos, uns breves ou menos breves instantes, para nos encontrarmos com a Palavra de Deus, para criar essa oportunidade em que a subversão pode acontecer, a esperança pode ser requalificada.

E então voltaremos às nossas barcas, às nossas redes, aos nossos trabalhos e responsabilidades, como fizeram os discípulos de Jesus que nunca deixaram de ser pescadores de peixe, apesar de serem também de homens, com outra coragem, uma outra fortaleza, uma luz diferente sobre as realidades, com vontade de continuar a colaborar na construção do Reino de Deus.

Que o Senhor nos anime e ilumine com a luz da sua Palavra.

Ilustração:

1 – João o Teólogo e Procor, de Andrey Mironov. Wikimédia Commons.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Homilia Festa do Baptismo do Senhor - Ano B


Queridos irmãos

Estamos a celebrar a Festa do Baptismo do Senhor e com esta festa damos por encerrado o Tempo do Natal e iniciamos o Tempo Comum. Após contemplarmos os acontecimentos centrais do mistério da Encarnação do Filho de Deus entramos na contemplação dos acontecimentos da vida pública de Jesus.

Ao celebrarmos a Festa do Baptismo de Jesus é interessante notar que os quatro evangelistas fazem menção deste acontecimento, manifestando assim a sua importância na narração da vida de Jesus, a sua historicidade, que como em outros acontecimentos os Evangelhos não têm pudor em apresentar.

E este pudor, que poderia tomar conta dos evangelistas, prende-se com a necessidade que Jesus tinha do baptismo que recebeu no rio Jordão das mãos de João. Olhando para o que nos é apresentado, para o que os Evangelhos nos dizem de Jesus, temos de assumir que este baptismo era perfeitamente dispensável. No entanto, e como Jesus responde a João, é necessário que assim se cumpra para uma compreensão posterior.

O baptismo de João era um baptismo de penitência, e podemos perguntar-nos que necessidade Jesus tinha de penitência, ele que não tinha pecado. O baptismo de João era em ordem à conversão, e também nos podemos perguntar que mudança podia Jesus viver. O baptismo de João era um acto externo, um sinal, mas como nos diz o Evangelho o verdadeiro baptismo é o realizado pelo Espírito, aquele que Jesus vai confiar aos seus discípulos. Por fim, e ainda que se manifeste o amor do Pai pelo seu Filho, através da voz, podemos questionar-nos se Jesus não tinha já essa consciência do amor do Pai, ele que como Filho partilhava da sua intimidade.

Desta forma, o baptismo a que Jesus se submete no rio Jordão e às mãos do seu primo João é um sinal, uma manifestação da sua encarnação, da humildade com que assume a debilidade e a fragilidade da natureza humana. O baptismo no próprio rio Jordão, um rio que geograficamente se situa abaixo do nível do mar, manifesta essa kenose do Filho de Deus, esse abaixamento à nossa mais miserável condição.

Mas o baptismo de Jesus não é apenas essa manifestação pessoal, é igualmente um apelo e uma convocatória a percebermos o nosso próprio baptismo, o baptismo que recebemos no Espírito Santo, que nos mergulha na paixão e morte de Jesus e nos eleva na sua ressurreição, que faz de nós filhos amados de Deus, e como Jesus chamados e enviados a realizar uma missão, a partilhar a grande obra da criação e da nossa redenção de que somos beneficiados e cooperantes.

E neste sentido, nesta missão a que somos convocados, é importante no contexto em que nos encontramos de uma pandemia, de uma grande incerteza face aos próximos tempos, olharmos duas tarefas que são apontadas pelo profeta Isaías na primeira leitura.

A primeira delas é a de não sermos daqueles que quebram a cana fendida ou apagam a torcida que ainda fumega, mas bem pelo contrário, e como ainda nos recordava o Papa Francisco nas suas mensagens de Natal e Ano Novo, a de sermos cuidadores uns dos outros e de modo particular dos mais fracos, dos que estão quebrados, dos que já perderam o alento. Como baptizados, e nestes tempos nossos tão estranhos, somos convocados a ser homens e mulheres de esperança, de atenção, vigilantes, cuidadores com ternura e sensibilidade, percebendo na fraqueza do outro uma oportunidade para partilharmos o amor com que Deus nos ama.

A outra tarefa que o profeta Isaías também nos apresenta, podemos dizer que ao contrário da primeira que se prende com a caridade esta é uma tarefa de fé, é a tarefa de não desfalecer nem desistir, de confiar e permanecer, e como nos dizia o profeta, até se estabelecer a justiça. Face a tantas dificuldades, problemas, a tanta instabilidade e incerteza, podemos cair na tentação de baixar os braços, de deixar de ir à luta, afinal não sabemos para onde vamos, como podemos caminhar, para quê lutar?

Como baptizados, temos de assumir a nossa fé e confiança que Deus caminha connosco, e mais, que Jesus Cristo vai à nossa frente, que ele não nos abandona nem deixa de nos conceder a força e a luz para podermos continuar em frente. Como aconteceu com ele, o caminho pode às vezes ser sinuoso, tanto nos pode levar ao deserto, como nos pode obrigar a ir mais ao largo para não cairmos das mãos dos inimigos, pode conduzir-nos a um gesto de profunda humildade como confiar-nos nas mãos daqueles que se reconhecem incapazes e indignos, mas se o fizermos em intima união com o Pai certamente experimentaremos a manifestação da mesma luz e do mesmo amor que Jesus experimentou no baptismo, “em ti ponho toda a minha complacência”, em ti me realizo com alegria e glória.

Nesta semana que vamos iniciar, e que nos vão trazer desafios duros, que vão exigir a nossa responsabilidade, firmeza, perseverança, que os procuremos enfrentar com confiança, com lucidez, sem temor, porque no baptismo do Espírito que recebemos fomos mergulhados na morte e com Jesus dela saímos vitoriosos, e se acreditarmos e nos apoiarmos mutuamente venceremos também esta batalha com a graça de Deus.

Que o Senhor seja a fortaleza do nosso refúgio e a força do nosso combate.


Ilustração:

1 – Baptismo de Jesus, de S. G. Rudl, fresco na igreja Svatého Vaclava, Praga.

 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Homilia Solenidade da Epifania do Senhor

Queridos Irmãos

Estamos a celebrar a Solenidade da Epifania do Senhor, mais popularmente conhecida como Festa dos Reis, pois são estes personagens as figuras em destaque nesta passagem do Evangelho de São Mateus que acabámos de escutar.

Festa e mistério que não podemos deixar de associar a uma outra, ao Pentecostes, pois ambas desenvolvem essa ideia dinâmica de um acolhimento geral por parte de todos os povos da Boa Nova de Jesus, da própria pessoa de Jesus. Os Magos vindos do oriente, à luz da profecia que escutámos na leitura do profeta Isaías, representam os mais diversos povos que buscam o Senhor e no grande acontecimento do Pentecostes vemos como os apóstolos são capazes de ser entendidos em todas as línguas. Estamos assim diante da dimensão católica da Igreja.

Contudo, quando olhamos para estes dois mil anos de história do cristianismo, quando olhamos para os milhares de homens e mulheres que entregaram a sua vida ao anúncio da Boa Nova de Jesus junto dos povos pagãos, é inevitável que nos interroguemos sobre o que aconteceu e acontece para que os mais diversos povos não tenham ainda acolhido esta Boa Nova. E assim, da decepção face à expectativa quantitativa podemos ser tentados por uma decepção qualitativa. A verdade de Jesus Cristo é afinal mais uma oferta, existem em outros povos e outras culturas ofertas igualmente válidas.

E, porque esta tentação está à nossa porta, o Segundo Concílio do Vaticano nos documentos que abordam a relação com as outras religiões e com a missão da Igreja frisou com clareza a necessidade de estar atentos ao que de bom existe nelas, mas de não deixarmos de apresentar a verdade de Jesus Cristo. E porque o multiculturalismo cresceu nas últimas décadas do século vinte, o Papa João Paulo II, ao abrir o novo milénio, voltou a sublinhar com veemência a necessidade de não cairmos no relativismo, de não abdicarmos da verdade da salvação que nos foi oferecida em Jesus Cristo.

Face a esta realidade, e múltipla oferta, temos de assumir que os homens vivem sob o mesmo céu, buscam a mesma verdade, mas cada um tem a sua busca própria, tem a sua visão do mesmo céu, e que nesta busca muitas vezes os interesses mesquinhos, o orgulho, o egoísmo e o espírito de superioridade enviesam a busca dessa verdade. Por isso a Igreja no Concilio apela a que não se perca o que há de bom.

O relato do encontro dos Magos em Jerusalém com o rei Herodes é mais um dos muitos relatos que podemos encontrar na história da humanidade desse desencontro de buscas, dessa manipulação por interesses mesquinhos, ou por medo. O rei de Jerusalém face à visita daqueles homens vindos de longe em busca de um menino, promove a sua própria busca, encontra-se e confronta-se com o que é anunciado nas escrituras e que os príncipes dos sacerdotes e escribas do povo lhe apresentam, mas encerra-se na verdade do seu poder e da sua segurança, impõe-se a negação do prosseguimento da busca e o encontro da verdade, ou melhor, incentiva-a nos outros para poder apoderar-se dela e destruí-la.

É interessante notar que, após este encontro frustrante em Jerusalém, a estrela que tinha guiado os Magos desde o oriente volta a aparecer e conduz a busca até ao local certo onde se encontra o rei menino. É um sinal, um incentivo que também cada um de nós não pode desistir da sua procura da verdade, que não nos podemos deixar distrair nem intimidar por aqueles que não buscam a verdade como nós, que pelo medo ou pelo orgulho também não querem que busquemos a verdade. Se nos deixarmos guiar pela estrela, pela luz, pela sede como diz São João da Cruz, esta mesma sede e luz nos conduzirão à sua fonte, à verdade plena.

No contexto actual em que vivemos, numa cultura líquida, em que nos é dito que não existe uma verdade, na qual o valor das palavras é cada vez mais difuso, menos claro, é importante esta busca, o sentido de que devemos buscar responsavelmente a verdade. A dignidade da vida, o cuidado e o respeito pelo corpo, a consciência da necessidade do outro, que Jesus nos revelou no mistério da sua encarnação são demasiado importantes para abdicarmos de continuar a colocá-los encima da mesa de trabalho da verdade a que todos aspiramos.

E nesta busca, neste trabalho comum, é de registar algo que nos pode iluminar, e que podemos encontrar nas representações iconográficas dos Reis Magos, e que certamente nem notamos quando os olhamos, de tão habituados que estamos. Se olharmos atentamente vemos que os três reis têm idades diferentes, há um mais jovem, que habitualmente oferece o incenso, o de média idade, que oferece o ouro, e o mais idoso que oferece a mirra.

Sabemos que cada uma destas ofertas se dirigem à natureza de Jesus Cristo, verdadeiro Deus, verdadeiro homem e verdadeiro senhor e rei. Contudo, já nem todos sabemos que estas ofertas representam também as diversas fases da vida do homem, o que cada um de nós pode oferecer a Deus.

E se para o mais idoso é fácil associarmos a mirra à experiência da vida, à sabedoria adquirida na experiência da finitude e da fragilidade, já não é tão fácil assim com o Mago da média idade que oferece o ouro e o jovem que oferece o incenso. O ouro da meia idade representa as obras bem feitas, poderíamos dizer o brio do bem feito, os tesouros que acumulamos no céu com as nossas obras de misericórdia. O incenso do jovem Rei Mago representa a busca do sentido da vida, a busca da sabedoria, o divino que existe em cada homem e que anseia a sua plenitude.

Os Reis Magos são assim a manifestação dos diversos povos chamados a acolher o Filho de Deus, mas representam igualmente as diversas fases da busca da verdade de cada homem, representam cada um de nós no que desejamos oferecer a Deus de verdade, apesar das dificuldades e dos contratempos da mentira, conscientes de que pertencemos ao mesmo corpo e somos herdeiros da mesma herança divina como nos dizia São Paulo na leitura da Carta aos Efésios.    

 

Ilustração:

1 – A Adoração dos Reis Magos, de Luca Signorelli, Yale University Art Gallery.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Homilia Solenidade Santa Maria Mãe de Deus

Queridos irmãos

Iniciamos mais um ano e uma vez mais colocamos este novo ano, este tempo novo, sob a protecção da Virgem Maria que hoje veneramos com os títulos de Mãe de Deus e Mãe da Igreja.

Antes de mais, é interessante registarmos que este dogma assumido pela Igreja em Concílio é não só o primeiro dogma mariano, mas como virá depois a acontecer com os outros dogmas marianos assumidos na Igreja, uma declaração que é fruto da piedade e devoção do povo cristão, do sentimento dos homens e mulheres que no seu coração perceberam este íntimo mistério. Não foi a hierarquia que impôs ao povo esta verdade de fé, mas foi o povo que a assumiu e solicitou à hierarquia a sua proclamação formal.

Assim, também nós, hoje, nos colocamos sob esta invocação e dinâmica, também nós assumimos que Maria é a Mãe de Deus assim como é a Mãe da Igreja, e sob a sua protecção apresentamos a Deus os nossos propósitos e desejos para este ano de 2021. E ao fazê-lo não podemos perder de vista o que foi o ano de 2020, o que vivemos e o que sentimos, a carga e a experiência que levamos para estes novos tempos.

Neste sentido, temos de fazer o mesmo que Maria fazia, que Maria fez durante toda a sua vida, e que a leitura do Evangelho de São Lucas que escutámos nos faz eco. Maria conservava todos os acontecimentos e meditava neles no seu coração.

Com o desejo de nos libertarmos da experiência de limitação e fragilidade que vivemos em 2020, com o desejo de nos libertarmos dos confinamentos e recuperarmos a nossa normalidade e liberdade, corremos o risco de não fazer memória, de perdermos esta experiência, certamente dolorosa, cansativa e desgastante, mas também bastante instrutiva do que somos e como somos chamados a viver.

Tal como Maria fazia, o que guardamos deste tempo que nos foi dado viver, das experiências que fizemos? E mais ainda, o que guardamos no coração, pois era aí que Maria guardava e meditava todos os acontecimentos. Podemos fazer memória, quase me atreveria a dizer que podemos guardar os acontecimentos no disco externo, mas será que aí essa memória configura a nossa realidade, reconfigura o que somos depois do que vivemos? Não será necessário uma actualização o sistema operativo? Uma actualização de nós próprios e das nossas prioridades?

Tal como a Virgem Maria, somos desafiados a guardar estes últimos acontecimentos no nosso coração, a fazer deles parte integrante da nossa história e a meditar neles no nosso coração, uma meditação que não pode ser envergonhada nem temerosa, mas audaz e confiante, uma meditação que parte dos princípios que nos devem reger e nos são apresentados nas leituras do Livro dos Números e na Carta de São Paulo aos Gálatas.

Antes de mais, devemos ter sempre presente que Deus nos libertou e nos fez seus filhos adoptivos e, portanto, já não somos escravos, mas filhos, homens livres, herdeiros da vida divina. A nossa vida, a sua plena realização, depende da dignidade que colocarmos naquilo que fazemos e procuramos ser, nesta condição e estatuto de filhos de Deus, colaboradores activos da obra de Deus, na criação e na redenção. Como filhos de Deus estamos convocados a cuidar a nossa casa comum, o mundo como o conhecemos na sua beleza e grandeza e que queremos legar às gerações futuras, para que também elas possam apreciar a obra de Deus e louvar o seu criador na diversidade das suas criaturas.

Depois, e como participantes na obra de redenção, não devemos esquecer que somos um povo de bênção, chamados a abençoar os nossos irmãos, homens e mulheres que partilham a nossa vida. E, como nos recordava nestes últimos dias o Papa Francisco, esta nossa missão não exige grandes e difíceis tarefas, mas passa por coisas tão simples como um “obrigado”, ou um “por favor”, uma atenção ao outro que está diante de nós e que podemos abençoar na nossa ternura, no nosso carinho, no minuto que atenção que lhe dispensamos.

Os acontecimentos de confinamento do ano transato mostraram-nos como somos frágeis, mas sobretudo, mostraram-nos como somos dependentes uns dos outros, como um gesto de cuidado e prudência, pode fazer toda a diferença entre a vida e a morte, como uma palavra de carinho partilhada pode ser mais vivificante que um complexo vitamínico.

Ao iniciarmos este novo ano, que a nossa humanidade ferida seja um impulso a estarmos mais atentos uns aos outros, que os confinamentos e as limitações de circulação sejam um alerta para o cuidado a ter com a nossa liberdade e a responsabilidade que lhe está inerente, que as privações que tivemos em festejos nos ajudem a olhar o essencial, o quão tão pouco necessitamos para viver e ser felizes com os outros.

Que a Virgem Maria Mãe de Deus, juntamente com São José, que nos foi proposto pelo Papa Francisco como modelo para estes tempos de precaridade e incerteza, nos iluminem e ajudem a guardar e meditar em nossos corações os acontecimentos dos tempos presentes sempre certos da proteção de Deus como eles o foram.

Ilustração:

1 – Virgem Maria com o Menino, de Charles-André van Loo, Museu de Belas Artes de Rouen.