sábado, 1 de novembro de 2025

Homilia da Solenidade de Todos os Santos


O filósofo do século dezoito Jean-Jacques Rousseau escreveu, no seu livro “Émile ou de l’éducation”, que todo o homem nasce naturalmente bom e inocente e que é a sociedade onde cresce e se forma que o perverte, tornando-o mau.

A revelação cristã, da qual Rousseau partiu para a sua formulação, assume também o mesmo princípio, o homem foi criado bom e inocente, mas capaz de agir em liberdade, e por isso foi possível romper a comunhão intrínseca com o seu criador, desobedecendo ao mandamento que lhe tinha sido dado de não comer do fruto da árvore

A revelação diz-nos que o homem não é o criador do mal, a origem do mal, mas consentindo nele o homem fica com o coração ferido, perde qualidades da sua natureza de criatura criada à imagem de Deus.

No Livro do Génesis há uma imagem que nos ajuda a compreender esta realidade do homem, bem como a acção e misericórdia de Deus para com ele.

Após ter comido do fruto da árvore proibida o homem vê-se nu, percebe-se despido, ou seja, sem a glória que o revestia desde o momento da sua criação pela mão de Deus e que o devia elevar e manter em relação com o seu criador. Diante desta nudez, o homem procura revestir-se com as folhas da figueira, tapando assim a sua vergonha, fruto “de se ter rebaixado tão profundamente em relação à dignidade que fora a sua condição primeira”. (Varden, Castidade, 36)

E nas leituras que frequentemente nos são propostas do relato da queda de Adão é aqui que terminamos, deixando de fora um versículo extremamente importante, no qual nos é dito que Deus cobre o homem e a mulher com uma roupa de peles para que eles possam sobreviver, para que possam conviver um com o outro.

“As vestes de pele dadas por Deus são um manto de misericórdia, um sacramento de bondade. Embora despojado de glória, Adão continua envolto na graça. Protege a existência actual de Adão, salvaguardando a sua natureza icónica num cenário de afastamento.” (Varden, Castidade, 37)

Esta roupa, estas peles que nos cobrem, manchadas por dentro pela desobediência primordial, confiadas pela misericórdia e bondade de Deus, são as túnicas brancas que obrigatoriamente devem ser purificadas e lavadas no sangue do Cordeiro de que nos fala a leitura do Livro do Apocalipse de hoje.

“E quanto mais conscientes estivermos de que estamos revestidos de misericórdia, mais serenamente poderemos viver connosco próprios, com os nossos desejos e defeitos, contradições e esperanças”, (Varden, Castidade, 44), e mais coragem e esperança teremos para mergulhar no banho do sangue e da água do Cordeiro, que é o que nos recorda a multidão dos santos que hoje celebramos.

Também os santos, com as suas limitações e fraquezas, com as circunstâncias da sua humanidade e história, procuraram lavar as suas peles no sangue do cordeiro, procuraram purificar-se a si próprios, como nos recorda a Carta de São João que escutámos, assimilando e integrando nas suas vidas a misericórdia de Deus, transformando as suas vidas em mecanismos de bondade, graças à esperança que os habitava.

Ao celebrar os santos recordamos que a santidade é acolher a graça de Cristo, e deixar desenvolver no tempo e nas circunstâncias próprias de cada um o amor com que o Pai nos consagrou adoptando-nos como filhos. A santidade e a salvação que nos é oferecida é assim uma realidade que se acolhe, um dom que se recebe, e por isso podemos e devemos libertar-nos da ilusão da conquista que tantas vezes nos alcança no nosso orgulho.

A santidade não é assim um presente a oferecer a Deus, uma oferta da nossa vida, mas um tesouro que nos é oferecido, que devemos recolher das suas mãos, pois como nos recorda a Palavra da Escritura foi Ele que nos amou primeiro, é Ele que vem antes de nós nos erguermos e nos pormos a caminho. A Santidade está do lado do consentimento, da nossa disponibilidade e abertura para receber a graça, o Espírito Santo, e fazer frutificar todos os seus dons.

Por esta razão a enunciação das Bem-Aventuranças se inicia pela bem-aventurança dos pobres de espírito, ou pobres de coração, pois só aqueles que se reconhecem pobres, carenciados, em necessidade estão dispostos a acolher, só os que têm fome podem ser saciados.

Desta forma a santidade que nos é oferecida e procuramos viver não pode ser tratada como um negócio de perfeição moral, de performance dos mandamentos e preceitos; assim como não pode ser tratada como uma força especial de carácter, ou um equilíbrio psicológico e relacional excepcional. Se assim fosse quantos daqueles que veneramos estariam excluídos pelas suas contradições e histórias desalinhadas.

Podemos e devemos dizer que os santos são nossos antepassados, membros das nossas famílias, e nós somos seus herdeiros nas fraquezas e deslizes assim como na graça que lhes foi oferecida e acolheram, e também a nós nos é oferecida e podemos acolher ou recusar.

A vida, as histórias pessoais, o tempo dos santos, manifestam a capacidade do nosso coração para acolher o tesouro de Deus, para nos deixarmos amar, consolar, ajudar e reerguer por Ele. É a dinâmica própria da graça da santidade.

Por isso não podemos esquecer nem guardar silêncio desta grande maravilha, desta grandeza que nos é disponibilizada. “Somos filhos de Deus e ainda não se manifestou o que havemos de ser” (1Jo 3,2), mas sabemos que na medida em que nos formos assemelhando a Deus poderemos vê-lo tal como Ele é e manifestá-lo aos outros espelhado na bondade do nosso coração.

Que a luz de Cristo Jesus nos atraia e guie neste caminho de semelhança.