domingo, 7 de outubro de 2012

Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São Marcos deste domingo não deixa de ser um aguilhão na nossa realidade de Igreja, nas nossas comunidades, uma vez que todos os dias nos encontramos com homens e mulheres que já não vivem como uma só carne, que vivem separados, enquanto outros, que não vivendo separados, se encontram em grande sofrimento na sua relação.
Perante estas realidades e aqueles que se mantém unidos e chegam às nossas igrejas para celebrar as suas bodas de prata ou de ouro, que dizer ou que fazer, quando nos defrontamos com este texto evangélico e as palavras de Jesus de o homem não separar o que Deus uniu?
Creio que para uma resposta a esta questão não podemos deixar de ter em conta aquilo que o mesmo texto evangélico nos diz, e nos diz na sua complementaridade de uma questão sobre divórcio e o acolhimento do reino de Deus como uma criança.
Como podemos constatar, os fariseus chegam junto de Jesus com o objectivo de o colocar à prova, com segundas intenções, esquecendo o fundamental da questão e para o qual Jesus imediatamente remete através da chamada de atenção para a Lei de Moisés.
De facto, se a lei de Moisés permite a passagem de um certificado de divórcio é porque a realidade existe, é algo social e culturalmente praticado. Contudo, e ainda que aceite socialmente, não deixa de ser uma realidade marcada pela injustiça, uma realidade que deixa a mulher sem condições de sobrevivência se não for aceite pela família.
A carta de repúdio visa assim garantir à mulher uma outra oportunidade, que de outra forma não era possível na medida em que ela continuava como propriedade do marido, daquele a quem tinha sido entregue pela família, e portanto sem direitos nem oportunidades.
A carta é assim, e como Jesus diz, um testemunho da dureza de coração, um testemunho da injustiça a que a mulher ficava sujeita, um testemunho da discriminação que desde o primeiro momento da criação tinha sido inviabilizada através da carne da minha carne e ossos dos meus ossos.
O relato da criação, para o qual Jesus remete como princípio fundamental da relação homem mulher, a primordial vocação do homem, coloca um homem em pé de igualdade com a mulher, coloca-os no mesmo patamar de dignidade e portanto de complementaridade na realização do outro.
A primeira consequência da criação do homem é afinal esse reconhecimento colocado na boca de Deus, de que não é bom que o homem esteja só. Estamos feitos uns para os outros e se encontramos vocações de consagração, religiosas e sacerdotais, homens e mulheres que abdicam da relação matrimonial, da constituição de uma prole, isso não significa que abdiquem da complementaridade nem da relação de alteridade.
Nenhum homem é uma ilha, todos necessitamos de alguém para amar e de alguém que nos ame, que nos revele o verdadeiro e total amor para o qual todos fomos criados; e qualquer que seja o nosso estado civil não se pode prescindir de buscar na nossa vida o amor divino que nos transcende e nos plenifica.
Neste sentido não podemos deixar de ter presente o acolhimento que Jesus faz das crianças e a sua reprimenda aos discípulos por não as deixarem aproximar, afinal uma atitude igualmente marcada pela dureza de coração, pela discriminação.
Ao acolher as crianças e ao ser-nos apresentado esse acolhimento após a questão do divórcio colocada pelos fariseus, o Evangelho remete-nos obrigatoriamente para a necessidade do acolhimento do outro, do outro como uma criança, frágil, necessitada de protecção, mas igualmente carregada de potencialidade, de futuro a construir e desenvolver.
As relações matrimoniais que chegam às nossas igrejas para celebrar as suas bodas de ouro ou prata testemunham-nos como viveram este acolhimento do outro como uma criança, como foram descobrindo como o outro os completava e desenvolvia, algumas vezes entre sofrimentos, entre acidentes, que a compreensão e o perdão, uma nova oportunidade de acolhimento, ajudaram a superar.
Aqueles que nos chegam com relações desfeitas, com traições, separados de quem um dia representou um projecto a dois, uma história de acolhimento, não podem ser descriminados, não podem deixar de ser acolhidos pelo nosso coração duro, porque muitas vezes não foi por sua vontade que a relação não funcionou, que não teve oportunidade de prosseguir e se desenvolver, que o acolhimento sonhado e desejado fracassou.
Há elementos nas relações sobre os quais não temos poder nem controlo e que não se alteram com a nossa boa vontade ou disponibilidade. E ainda que devamos aplicar todo o nosso esforço e as nossas capacidades para um fim feliz, para um acolhimento mútuo plenificante, para o qual devemos também solicitar a graça de Deus e a luz do Espirito Santo, pois está em causa a nossa realização, a nossa felicidade, não nos podemos surpreender nem condenar por um desastre.
O mal também atinge as nossas relações e devemos estar preparados e atentos a isso, pois em muitas circunstâncias o amor que dizemos a outra pessoa não é mais que um disfarce das nossas satisfações mais egoístas, um sentimento de apropriação que conduz à falta de liberdade do outro, à injustiça e à falta de dignidade que condenam e inviabilizam toda e qualquer relação. O amor deve ser sempre dom, humilde oferta ao outro para que a aprecie e faça crescer.
Como cristãos não podemos pois deixar de estar atentos à forma como vivemos o amor e o acolhimento do outro, quer nas nossas relações de amizade, nas nossas relações matrimoniais, nas nossas relações comunitárias, e quer com aqueles que batem à porta da Igreja desfeitos pelo acolhimento fracassado nas suas vidas.
Como nos diz a Carta aos Hebreus, Jesus não se envergonha dos seus irmãos, dos nossos fracassos, apenas quer que todos continuemos a conduzir-nos para a glória, vivendo na santidade daquele que nos santifica pelo sacrifício da sua vida dada com amor.
 
Ilustração: Adão e Eva, de Lothar von Seebach, Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Estrasburgo.  

 

1 comentário:

  1. Frei José Carlos,

    O excerto do Evangelho de S.Marcos (10, 2-16) e a Homilia do XXVII Domingo do Tempo Comum que teceu não nos deixa indiferentes seja por motivos de ordem pessoal ou pelo conhecimento da vivência de outras pessoas que nos estão próximas ou ainda pela análise da realidade do casamento como vivência do amor e projecto de constituição de uma família em qualquer período da História da Humanidade. O tema abordado é delicado, multifacetado, em que o ideal que se pensou ou desejou construir e a realidade opõem-se por múltiplas razões e, em certas situações, não soubemos ou pudemos avivar e alimentar a tempo a chama que ainda podia existir. E como não chegasse o sofrimento, a dor, assumindo as fragilidades e responsabilidades de cada um de nós, não posso deixar de dizer que a Igreja continua a revelar alguma dificuldade em acolher as novas situações que carecem de acolhimento, compreensão. O que quero expressar “não é um vale tudo”. Não sei se posso ter a ousadia de dizer que é uma outra forma de divórcio, de separação. Como podemos Jesus acolher ...” o reino de Deus como uma criança”?
    O texto que partilha toca-me particularmente. Permita-me que respigue alguns excertos.
    …” A primeira consequência da criação do homem é afinal esse reconhecimento colocado na boca de Deus, de que não é bom que o homem esteja só. Estamos feitos uns para os outros e se encontramos vocações de consagração, religiosas e sacerdotais, homens e mulheres que abdicam da relação matrimonial, da constituição de uma prole, isso não significa que abdiquem da complementaridade nem da relação de alteridade.
    Nenhum homem é uma ilha, todos necessitamos de alguém para amar e de alguém que nos ame, que nos revele o verdadeiro e total amor para o qual todos fomos criados; e qualquer que seja o nosso estado civil não se pode prescindir de buscar na nossa vida o amor divino que nos transcende e nos plenifica. (…)
    (…) Aqueles que nos chegam com relações desfeitas, com traições, separados de quem um dia representou um projecto a dois, uma história de acolhimento, não podem ser descriminados, não podem deixar de ser acolhidos pelo nosso coração duro, porque muitas vezes não foi por sua vontade que a relação não funcionou, que não teve oportunidade de prosseguir e se desenvolver, que o acolhimento sonhado e desejado fracassou.
    Há elementos nas relações sobre os quais não temos poder nem controlo e que não se alteram com a nossa boa vontade ou disponibilidade. E ainda que devamos aplicar todo o nosso esforço e as nossas capacidades para um fim feliz, para um acolhimento mútuo plenificante, para o qual devemos também solicitar a graça de Deus e a luz do Espirito Santo, pois está em causa a nossa realização, a nossa felicidade, não nos podemos surpreender nem condenar por um desastre. (…)
    Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, profunda e que ilustrou com tanta beleza, pelo conhecimento e compreensão da realidade de muitas situações, por recordar-nos que …” O amor deve ser sempre dom, humilde oferta ao outro para que a aprecie e faça crescer.”
    Que o Senhor o ilumine, o abençoe e o proteja.
    Um abraço fraterno,
    Maria José Silva

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