domingo, 23 de agosto de 2015

Homilia do XXI Domingo do Tempo Comum

A leitura do Evangelho de São João que hoje escutámos finaliza o capítulo sexto deste Evangelho, um capítulo que temos vindo a ler de forma continuada nestas últimas semanas e depois da narração do milagre da multiplicação dos pães com que o mesmo capítulo se inicia.
É um capítulo que nos oferece a interpretação do milagre operado por Jesus, um milagre que manifesta o dom total de Deus, o alimento que Deus coloca à nossa disposição, mas é também um capítulo que nos revela as dificuldades de Jesus, a incompreensão face à sua mensagens e aos sinais que desenvolve para manifestar a sua pessoa.
Poderíamos dizer que é o capítulo de excelência das opções que são necessárias fazer, das responsabilidades que são necessárias tomar, da adesão total que é exigida, e por isso assistimos a uma progressão do geral para o particular, da multidão para o grupo restrito dos discípulos que é confrontado com essa questão de permanecer ou debandar.
Esta problemática aparece-nos patente em dois outros acontecimentos, também eles narrados pelo Evangelho de São João. De forma paradigmática vemos na narração do episódio da samaritana como as palavras de Jesus provocam a fé e a adesão dos homens e mulheres da aldeia. São estrangeiros, marginais ao núcleo da tradição sacerdotal e religiosa de Jerusalém, que aderem sem qualquer preconceito à verdade de Jesus.
Paradoxalmente, no episódio do cego de nascença, aqueles que são a elite, os membros do núcleo da tradição sacerdotal e religiosa do templo, são completamente obtusos à realidade manifestada por Jesus nesse mesmo milagre, são incapazes de perceber a luz que lhes é oferecida. Face a Jesus e à luz que manifesta da verdade a opção é assumidamente contrária, é uma rejeição liminar.
No capítulo sexto do Evangelho de São João e depois do milagre da multiplicação dos pães é possível ver ao modo de um jogo de xadrez como as opções também se vão assumindo, umas mais equivocadas, outras nem tanto, e no fim de forma clara, ainda que sob a forma de mistério, que é afinal a única opção possível.
Logo após a multiplicação dos pães, a multidão procura Jesus, e, tal como ele próprio o assume, apenas movida pelo interesse material. Estão ali porque foram saciados, assim como a samaritana pede a Jesus a água viva para não ter que voltar ao poço. Equivocadamente movem-se e optam por Jesus apenas fundados nos seus interesses materiais, na sua satisfação e bem-estar, o que conduz inevitavelmente ao desencontro, a uma não opção.
Diante da explicação dada por Jesus da realidade do milagre, do seu significado mais profundo, afinal trata-se da dar a sua carne para que tenham vida, para um grupo de discípulos a opção é a da rejeição total, pois não só são palavras duras como um desafio a um dos mais fundamentais interditos da vida humana, a alimentação a partir do outro igual a mim, o proibido dos proibidos. Afinal como pode ele dar-nos a sua carne a comer?
Como clímax e conclusão desta progressão encontramos a pergunta que Jesus coloca aos discípulos, pois também eles podem querer ir embora. É o momento de fazer uma opção, de dar uma resposta, de assumir o seguimento, a fé naquele que é o Santo de Deus.
E uma vez mais é Pedro que responde ao desafio, iluminado, tal como em outro momento e em outra pergunta, pelo Espirito Santo. Se não foi a carne que lhe permitiu dizer que Jesus é o Filho de Deus, também agora não é a carne que lhe permite dizer, a quem iremos se só tu tens palavras de vida eterna.
A resposta e a opção de Pedro, em nome dos discípulos e de toda a Igreja, é uma opção pelo mistério, pelo desenvolvimento de um processo com alguém que conhecemos mas está para além de tudo o que nos é permitido conhecer ou experimentar. Uma vez mais constatamos, e tal como Jesus tinha dito pouco antes, que é o Pai que nos concede o dom de nos encontrarmos verdadeiramente com o Filho, com o dom que nos faz, com a carne que é nosso alimento.
Encontro este que nos custa a realizar e a assumir, não só porque nos confrontamos com o interdito de nos alimentarmos uns dos outros, mas também porque apesar do mistério da incarnação continuamos a ter medo da nossa carne, continuamos a considerá-la como uma matéria pouco nobre.
E não só esta matéria viu Deus que era muito boa, como também a assumiu no momento da sua habitação entre os homens. Tal como São Paulo refere aos cristãos de Éfeso, para a santificar, para a poder apresentar a si mesmo sem mancha nem ruga, cheia de glória, santa e imaculada.
Desta forma, purificados pelo baptismo da água e da palavra, não podemos viver exilados do nosso corpo, da nossa carne, mas conscientes que na sua finitude e fragilidade se encontra o meio que Deus nos concede para experienciar a vida, enquanto dom que nos é concedido e dom que concedemos aos outros.
Somos habitação de Deus, templos do Espirito Santo, um mistério que Jesus iluminou com a multiplicação dos pães, mostrando-nos que somos alimento uns para os outros, que a nossa carne não deve estar sujeita à escravatura de qualquer vício ou idolatria, mas consagrada ao amor que liberta e nos conduz à plenitude.
É grande este mistério, mas na medida em que o vivemos mais nos aproximamos daquilo que acreditamos, que na nossa carne veremos a Deus.
 
Ilustração:
1 – Crucifixão de São Pedro, de Luca Giordano, Galeria da Academia, Veneza.
2 – Madalena Penitente, de Nicolas Chaperon, Museus de Belas Artes de Nancy.

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