Queridos Irmãos
A leitura que
escutámos comporta todo o capítulo nono do Evangelho de São João; uma vez mais
um grande relato que se constrói à volta de uma figura, de um personagem, o
cego de nascença, tal como aconteceu no relato do encontro de Jesus com
Nicodemos e no relato do encontro de Jesus com a samaritana, que escutámos no
domingo passado.
É um relato longo, no
qual podemos ver perfilado o processo que vai levar à condenação de Jesus à
morte, um outro interrogatório de surdos e cegos face à novidade que têm diante
de si. Tal como acontece com o cego, e vai acontecer com Jesus, os gestos e as
palavras vão funcionar de forma opaca, como uma barreira, para aqueles que não
se dispõem à novidade, que não se abrem à revelação de Deus no seu Filho Jesus
Cristo, que se encerram na segurança do seu ritualismo e tradição conservadora.
Face à extensão do
texto e à impossibilidade de o comentarmos numa homilia, importa olhar alguns
elementos, alguns factos que nos podem ajudar a viver este momento em que nos
encontramos, esta Quaresma tão particular que o Senhor nos concede.
Assim, e num primeiro
momento devemos olhar para a questão com que se inicia este relato, que é
colocada pelos discípulos e se sintetiza nesta pergunta: porquê? Porque é cego?
De quem é a culpa? Dele ou dos pais?
Todos nós que lidamos
com crianças e às vezes não só, já fomos confrontados com esta situação.
Porquê? Porquê? E a pergunta repete-se vezes sem conta. Porquê?
A verdade é que sempre
que colocamos esta questão, estamos a colocar um limite à face das realidades,
dos acontecimentos, esbarro na superficialidade ao querer saber e compreender o
mecanismo das coisas, que muitas vezes e como todo já experimentámos nos é
totalmente desconhecido, alheio, incompreensível. O porquê encerra-nos num
passado, numa justificação, num mecanismo e numa certa segurança do controlo
das coisas.
Ao porquê dos
discípulos, e de cada um de nós, Jesus não procura uma explicação confortável,
mas responde com um “para quê, abre-nos à criatividade, a novos horizontes,
olha para diante e desperta a esperança. A realidade é assim, o cego é cego
desde nascença, o que vais fazer? O que vais fazer?
A perspectiva de Jesus
é uma perspectiva de criação, de recriação, e por isso a utilização da saliva e
do pó da terra para curar a cegueira; cada coisa pode ser tomada e assumida
para criar uma outra nova. A cegueira daquele homem, cego de nascença, pode ser
transformada em obra de libertação.
Esta perspectiva de
Jesus, podemos dizer esta dinâmica em que vive e que nos oferece, está ao nosso
alcance, e assim podemos e devemos interrogar-nos sobre os materiais e
realidades inertes da nossa vida, as nossas zonas de sombra, que podem e devem
ser trabalhadas como obras do criador, como materiais a serem requalificados,
reciclados, como hoje tanto se fala. É todo o processo de conversão a que a
Quaresma nos desafia.
O relato do cego de
nascença do Evangelho de São João liberta-nos da busca de explicações e
justificações para os nossos desaires, das nossas circunstâncias, como diz
Ortega y Gasset, e abre-nos à novidade de um futuro, à potencialidade que
habita tudo o que somos e temos e devemos trabalhar para que dê frutos, abre-nos
a olhar as coisas com os olhos de Deus e não com os olhos dos homens, como
aconteceu com Samuel quando foi enviado à casa de Jessé para ungir o eleito do
Senhor.
A possibilidade de não
vivermos esta dinâmica aparece-nos no conflito que o cego vai viver com os
fariseus, um grupo de homens aferrados à lei e às suas proibições, à lei como
conhecimento total da vontade de Deus, à lei como Palavra última de Deus, cegos
pela luz da sua própria visão da lei, incapazes de mudar a sua visão do mundo,
de alterar a sua escala de valores, cegos ao enviado de Deus, em resumo, e em
linguagem bíblica, incapazes de converter-se.
Também nós podemos ter
os olhos abertos e permanecer cegos à verdade, também nós podemos fixar-nos na
tranquilidade dos hábitos adquiridos, na rotina da nossa fé, e Jesus vem
perturbar a segurança da instalação no ritualismo. A questão do sábado no
debate dos fariseus com Jesus é paradoxal nesta perturbação, nesta novidade
revolucionária, afinal o sábado foi feito para o homem e não homem para o
sábado.
Vivemos dias em que a
celebração dos sacramentos está restringida, até suspensa comunitariamente, e escutamos
queixas, acusações, poderíamos dizer manifestações da nossa cegueira ritual
farisaica. Contudo, cada um de nós é Igreja, é templo de Deus, é membro vivo do
Corpo de Cristo, é luz filho da luz, como nos diz a Carta aos Efésios, e esta
privação que nos é imposta deve ser olhada na óptica da resposta de Jesus “para
quê?
Não estaríamos nós
aferrados a uma prática religiosa, a um conjunto de actos e ritos
estereotipados e já vazios de sentido e significado? Não será este um tempo de
conversão, um tempo para dizermos adeus aos nossos hábitos e rotinas, às
ameaças e obstáculos a uma profunda e relação de amor com Cristo?
E se esta conversão
deve acontecer na dimensão religiosa, paralelamente deve acontecer na nossa
vida pessoal, familiar e profissional. Deus convida-nos à redescoberta do
sentido da família, do cuidado e do amor dos filhos, da paternidade e
maternidade, da nossa solidariedade, da responsabilidade comum pelo cuidado de
todos e de cada um, da realidade da casa comum que é a nossa aldeia global. Não
estávamos nós cegos devido à ânsia de poder e satisfação, devido à sofreguidão
de tudo em que vivíamos até há dias?
Como diz São Paulo, outrora
vivíamos nas trevas, mas agora fez-se luz. Procuremos, pois, fixar o nosso
olhar em Jesus Cristo, viver na luz que nos trouxe, uma luz de liberdade, uma
luz de fraternidade, uma luz de esperança que nos permite acreditar que daqui
pode nascer algo de novo.
Ilustração:
1 – A cura do cego de
nascença, de Orazio de Ferrari, Collezione d’Art della Banca Carige, Génova.
2 – A cura do cego de
nascença, Matthias Gerung, Ottheinrich Bible, pag. 126V.
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