quarta-feira, 5 de setembro de 2012

A multidão queria reter Jesus para que não os deixasse. (Lc 4,42)

Jesus viveu algum tempo da sua vida em Cafarnaum e ali realizou alguns milagres significativos, segundo nos contam os evangelistas.
Face a isto, não é de estranhar que, ao vê-lo afastar-se, a multidão o tenha procurado e o tenha tentado reter junto de si. Como não, se aquele homem tinha palavras que despertavam o interesse, se tinha poder sobre os espíritos impuros e sobre as doenças, se tinha uma autoridade até ali desconhecida.
Jesus tem contudo consciência da sua missão e por isso não se deixa vencer pelas pressões, pelo reconhecimento e agradecimento, e portanto não só lhes anuncia a necessidade de partir como o faz imediatamente.
Por outro lado, Jesus tem também consciência que aquela adesão, a sua procura, não é motivada pela sua pessoa, por um desejo de fidelidade à palavra que ele lhes tinha anunciado. Tal como no milagre da multiplicação dos pães, em que a multidão o procurou para fazer rei por causa de ter sido saciada, também aqui a multidão o procura e o quer reter pelos milagres operados, pela possibilidade de saúde para sempre.
A tentação desta multidão, e da multidão que o procurou para fazer rei, é muitas vezes a nossa tentação, pois queremos reter Jesus nas malhas da nossa fé e da nossa oração, na busca de fidelidade, como se pudesse ser uma propriedade ou um serviço ao nosso dispor.
Esta é de facto a nossa grande tentação, querer ser donos e senhores de Deus, colocá-lo ao nosso serviço, esquecendo-nos que em qualquer relação, e na relação com Deus também, o desejo de propriedade, de apropriação, destrói a relação.
Deus é livre de vir até nós e é livre também para nos deixar, para partir depois de nos despertar e deixar com desejo de mais. Nesta liberdade, a nós cabe-nos a obrigação ou tarefa de o esperar, de o desejar, como o povo de Israel esperou o Messias prometido, e de o buscar e seguir depois de nos encontrarmos com ele.
Tal como Salomão cantou no “Cântico dos Cânticos”, é atrás do seu perfume que devemos correr, porque depois de se cruzar connosco Jesus não deixou de ter necessidade de se cruzar com os outros, de despertar nos outros o mesmo desejo que despertou em nós.
 
Ilustração: “Maria, irmã de Lázaro encontra Jesus a caminho de casa”, de Nikolai Ge, Museus da Russia.

Uma oração em cada tarefa


 
Empreendei toda a tarefa, mesmo ínfima, com uma oração, pedindo que a Virtude divina desça sobre a vossa acção e que ela a eleve às alturas. Então as vossas acções não serão, não poderão ser más.
Alexandre Eltchaninoff

Ilustração: Nascer do sol sobre o rio Minho e Tui, Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Eu sei quem tu és, o Santo de Deus. (Lc 4,34)

Tal como acontece na vida de qualquer um de nós, também na vida de Jesus se deram encontros frutíferos e outros nem tanto, encontros agradáveis e outros menos simpáticos.
Pela narração dos Evangelhos percebemos que muitas vezes a ineficácia do encontro, o desencontro entre Jesus e os seus interlocutores, se ficou a dever ao facto de conhecerem a sua origem. Tanto os fariseus, como os habitantes da sua Nazaré, sabiam que era filho de José, conheciam a sua família, a sua procedência e a sua profissão.
Por causa deste conhecimento esbarraram frequentemente na palavra de Jesus, foram incapazes de ver para além do conhecido e do imediato, foram incapazes de ver o Filho de Deus que se lhes apresentava sob as roupagens do jovem carpinteiro. Foram mesmo incapazes de ler e interpretar os sinais extraordinários que lhes manifestava a origem divina daquele que se encontrava diante deles.
O encontro de Jesus, na sinagoga de Cafarnaum, com o homem que tinha um espirito impuro, mostra-nos a diferença de conhecimento, a possibilidade do reconhecimento divino por parte daqueles que não olham ao exterior mas ao interior.
O espirito impuro perante a pessoa de Jesus, e consequentemente perante o Filho de Deus, revela o conhecimento que possui, revela aos outros quem de facto têm diante de si. O espirito impuro não olha ao visível mas ao invisível, àquela realidade que como espirito podia conhecer. “Eu sei quem tu és, o Santo de Deus.”
A revelação e a denúncia do espirito impuro não se fica pelo banal, pelo acessório ou secundário, mas vai ao que verdadeiramente interessa e reconhece, o Santo de Deus. Aquilo que aos homens era impossível ver o espirito impuro é capaz de ver.
Num outro momento, quando Pedro confessa que aquele Jesus que o interroga é o Santo de Deus, Jesus diz-lhe que não foram a carne e o sangue que lhe deram aquele conhecimento mas o Espirito de Deus. Uma vez mais a confirmação que o acesso à santidade de Deus, ao seu ser mais essencial, não pode ser alcançado por força humana nem capacidades intelectuais, mas apenas por dom da graça.
Neste sentido, o nosso conhecimento de Jesus, a nossa relação de intimidade e amizade com ele, deve progredir cada vez mais do superficial e acessório para o fundamental e profundo. No mistério da Encarnação, na pessoa de Jesus de Nazaré, somos convidados a encontrar-nos com o Filho e o Santo de Deus, a santidade divina que veio ao nosso encontro.
Para tal necessitamos pedir o Espirito de Deus, pedir que o Espirito Santo venha até nós e ilumine o nosso coração para conhecermos e reconhecermos as graças de Deus, pois tal como São Paulo diz na Primeira Carta aos Coríntios, “ninguém conhece o que há em Deus senão o mesmo Espirito de Deus”.

Ilustração: “Quem é de Deus escuta a palavra de Deus”, de James Tissot, Brooklyn Museum.

O fim da vida cristã

 
O verdadeiro fim da nossa vida cristã consiste na aquisição do Espirito Santo de Deus. O jejum, a oração, a caridade e toda a boa acção realizada em nome de Cristo não são mais que meios para esta aquisição do Santo Espirito divino.
São Serafim de Sarov
 
Ilustração: Cruzeiro da ponte das Febres. Caminho Português de Santiago, 1 de Julho de 2012.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Entre vós não devia saber nada senão Jesus Cristo (1Cor 2,2)

A comunidade cristã da cidade de Corinto foi uma das mais importantes na expansão do cristianismo nascente, e por isso São Paulo manifestou sempre uma grande preocupação para com essa comunidade e os desafios que se lhe colocavam de inculturação, de inserção da fé cristã no meio cultural e religioso pagão de uma grande cidade portuária.
É no contexto deste desafio de inculturação e face à ameaça da compreensão do cristianismo como mais uma doutrina, uma ideia filosófica para uma vida boa, que São Paulo se vê obrigado a reafirmar, a colocar em evidência, o que tinha sido o seu ensinamento, o que afinal tinha tentado fazer e lhes tinha deixado como legado para a vida, qual era a mensagem de que era apóstolo.
Encontramo-nos assim com a primeira carta de São Paulo aos coríntios e com a memória do que tinha sido a acção e o ensinamento de São Paulo aquando da sua estadia entre eles, uma presença humilde e completamente centrada na pessoa de Jesus Cristo.
São Paulo recorda à comunidade que não tinha sido com grandes palavras nem sabedorias extraordinárias que lhes tinha anunciado a boa nova de Jesus Cristo, mas com humildade, com uma grande dose de fraqueza e temor, uma vez que o tesouro a partilhar era deveras valioso para ser desperdiçado em linguagens distractivas.
Ao apresentar-se em Corinto São Paulo não se preocupou com outra coisa senão com Jesus Cristo, com o anúncio da salvação de Jesus Cristo. Não teve preocupações retóricas nem idiomáticas, não se preocupou com a apresentação mas apenas com o conteúdo, porque só Jesus Cristo verdadeiramente importava. “Entre vós não devia saber nada senão Jesus Cristo.”
Esta preocupação e testemunho de São Paulo são para nós um desafio, porque muitas vezes nos preocupamos mais com a roupagem, com a forma, do que com o conteúdo. Na nossa transmissão e anúncio da fé esquecemos que antes de mais o que devemos saber e o que devemos anunciar é Jesus Cristo, porque é a sua pessoa, a sua vida, o que verdadeiramente contagia os homens, os pode converter.
É no balbuciar humilde de qualquer coisa que entrevemos da sua presença na nossa vida, do seu amor para connosco, num gesto de veneração diante da cruz com Jesus crucificado, na amizade e fraternidade que vivemos sem peias e compensações que podemos dar a conhecer Jesus Cristo.
Na mesma linha de pensamento de São Paulo escreveu Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, na Itália: “para abrir as pessoas à fé é necessário em primeiro lugar dar-lhes a conhecer e proporcionar-lhes o encontro com Jesus, para depois, através dele, fazer-lhes conhecer e abraçar o seu corpo que é a Igreja. Deus, em si mesmo, não é mais essencial no percurso, pois pode-se ser homem sem acreditar em Deus e o encontro com Ele não vai além disso. O encontro com Cristo, pelo contrário, aparece como uma fecunda possibilidade de abertura à fé. Quando se descobre Jesus, a sua pessoa intriga, interroga, fascina, provoca uma simpatia.” [Panorama 490 / Setembro 2012)
Como deveríamos saber bastante de Jesus Cristo pela nossa adesão à sua pessoa, pela nossa relação pessoal e biográfica com ele, porque a nossa fé nele não é um conhecimento intelectual, uma doutrina, mas uma intimidade de vida partilhada.
 
Ilustração: “Julgamento de São Paulo”, de Nilokai Bodarevsky, Museu Regional de Arte de Uzhgorod, Ucrânia.  

domingo, 2 de setembro de 2012

Homilia do XXII Domingo do Tempo Comum

O trecho do Evangelho de São Marcos que escutamos na Liturgia da Palavra deste domingo é um daqueles raros exemplos que nos mostram claramente a quem o autor se dirigia, a procedência pagã dos destinatários deste Evangelho.
Não é por isso estranho que, no contexto da discussão de Jesus com os fariseus sobre questões de pureza ritual, seja feita uma apresentação detalhada de várias práticas de purificação ritual no âmbito das refeições. Por esta apresentação percebemos que os leitores ou ouvintes do Evangelho desconheciam aquelas práticas, e portanto era necessário explicá-las para a compreensão da discussão de Jesus com os fariseus.
Práticas que na sua essência eram puras medidas higiénicas, de civilidade, mas que tinham adquirido uma dimensão religiosa, tinham sido sobrecarregadas de simbolismo e portanto na ritualização tinham alcançado o estatuto de norma, de preceito obrigatório.
Nesta situação, todo aquele que se descuidava no cumprimento desta obrigatoriedade, fosse voluntária ou involuntariamente, incorria numa transgressão que o excluía da comunidade ou da prática de outros ritos religiosos ou sociais.
O grupo de fariseus e doutores da Lei que desce de Jerusalém para aferir da doutrina de Jesus, do movimento que se gerava à volta dele, constata imediatamente que o grupo dos seguidores e nomeadamente os discípulos mais chegados tinham abdicado do cumprimento de algumas dessas regras higiénicas e rituais, o que os excluía do povo ou colocava numa situação bastante irregular.
Nada mais natural por isso que a acusação e a repreensão junto de Jesus, porque sendo ele Mestre, tendo a autoridade junto do grupo, devia ser o primeiro a vigiar e a fazer cumprir as normas da tradição. Esse cumprimento e essa vigilância eram a salvaguarda das mesmas tradições, da sua continuidade autêntica, porque a tradição é sempre uma transmissão de uma realidade do passado para o presente e o futuro.
É face a esta concepção cerrada, espartilhada, da tradição e das normas legais e rituais que Jesus se vai insurgir e manifestar contra, porque a Lei dada por Deus através de Moisés, que devia ter sido uma lei para a liberdade e para a construção, se tinha tornado limitadora e inviabilizadora da realização do seu propósito divino.
A Lei dada por Deus era um dom que devia ter conduzido à confiança no mesmo Deus e nos outros homens que partilham a vida e a caminhada de fé; mas a sobrecarga de preceitos e obrigações tinha levado a um temor exacerbado, a uma escravatura e a uma negatividade que era impossível continuar a manter.
Jesus não pode concordar com a exagerada observância ritual, pois tal situação condena o homem a uma vivência do meramente exterior, condena o homem a um mero formalismo, a uma falta de amor perante Deus e perante os irmãos, pois é muito fácil julgar os outros quando a pauta é uma regra ou uma norma. Cumpriu ou não cumpriu, é legal ou não é legal, são as questões que se colocam.
Hoje esta problemática coloca-se de forma acutilante e bastante interpelativa, pois os nossos comportamentos estão cada vez mais orientados e enquadrados por um esquema legal, jurídico, e cada vez menos por uma fundamentação ética ou moral. Assistimos assim a determinadas práticas que desde que não levem à condenação pelos tribunais são perfeitamente normais, perfeitamente aceitadas sem qualquer discussão ou pudor.
Para não enveredar pelos casos do mundo da política e da economia, que os nossos meios de comunicação ultimamente nos têm revelado, apresento um exemplo que é passível de nos alcançar a todos.
Quando numa auto-estrada cumprimos o limite dos cento e vinte quilómetros, estamos a cumprir a lei e portanto não temos qualquer problema. Estamos na legalidade. Contudo, quantas vezes dentro dessa legalidade, não nos acusa a consciência e os seus valores que face às condições meteorológicas, o excesso de peso, o cansaço que trazemos, a nossa velocidade deveria ser responsavelmente menor?
Acima da lei, da norma, do preceito, ou no seu fundamento devem estar os valores, uma sabedoria constituída de experiência, de história, de bondade, que nos faz apreciar as realidades em toda a sua plenitude e verdade.  
Ser cumpridores da Palavra, como São Tiago nos convida, é um desafio que como seguidores de Jesus Cristo não podemos deixar de aceitar, porque ao procurar ser cumpridores da Palavra estamos a procurar a humanização desejada por Deus, estamos a colocar-nos na órbita do mistério da Encarnação do Filho de Deus, que é para nós o primeiro e o último código legislativo de Deus.
 
Ilustração: “Secretário de Santo Agostinho”, pormenor do fresco “Disputa do Santíssimo Sacramento”, de Rafael, Stanza della Segnatura, Palácios Pontifícios, Vaticano.

sábado, 1 de setembro de 2012

O Senhor confiou-lhe os seus talentos (Mt 25,14)

“Nos cinco talentos, nos dois, e no um, só devemos entender, ou as diversas graças que a cada um foram confiadas, ou então que no primeiro se examinam os sentidos, no segundo a inteligência e as obras, e no terceiro a razão, que é pela qual nos diferenciamos dos animais.”
É desta forma que São Jerónimo no seu Comentário ao Evangelho de São Mateus, Livro IV, interpreta a parábola dos talentos e da distribuição diferenciada a cada um dos servos.
Uma interpretação interessante, na medida em que pelos cinco talentos, que correspondem aos sentidos corporais, contemplando as obras da natureza, podemos conhecer e apreciar a obra da criação de Deus, e portanto valorizar e enriquecer a nossa própria realidade humana e divina com o gozo dessa obra.
Os dois talentos, que correspondem à inteligência e às obras, na medida em que permitem uma relação construtiva e alterante das realidades em que estamos envolvidos, são chamadas também a produzir-se e a multiplicar-se. De certa forma é a resposta à recomendação de Deus no momento da criação, quando diz ao homem que cresça e domine a terra.
Um domínio que não podemos deixar de assumir que deve ser equilibrado, racional, justo, porque é um outro dom, um outro património do qual todos, e cada um, somos apenas usufrutuários, e portanto temos o dever de o deixar se não melhor do que o encontrámos pelo menos como o encontrámos.
O talento único é a razão, o talento que mais nos aproxima de Deus e portanto aquele que mais exige um cuidado na sua administração. Sendo a razão que nos diferencia dos animais, deveria também elevar-nos a um outro patamar de relações interpessoais e com Deus. Infelizmente parece que funciona ao contrário e serve muitas vezes apenas para humilhar o nosso próximo ou para nos afastar de Deus na medida no nosso racionalismo auto-suficiente.
Necessitamos por isso assumir que são muitos os talentos que o Senhor nos concede, que os devemos fazer crescer e multiplicar-se, e que o produto final da rentabilização será maior na medida em que todos nos levam ao encontro com o Senhor, com um proprietário que colhe onde não semeia, mas que deseja o retorno do entregue na plenitude da nossa própria realização.  
 
Ilustração: “São Jerónimo no seu estudo”, de Caravággio, Galeria Borghese, Roma.