O Evangelho de São
Lucas divide-se em três grande blocos, um primeiro bloco dedicado ao nascimento
e infância de Jesus e por isso chamado também Evangelho da Infância, um segundo
bloco dedicado à pregação e milagres de Jesus na Galileia, e por fim um
terceiro bloco, composto de dez capítulos, que nos narra a subida de Jesus para
Jerusalém, a sua caminhada para o fim que lhe estava destinado e Jesus assume
livremente.
É no início deste
terceiro bloco que encontramos os grandes desafios do seguimento, a questão da
identidade de Jesus, que o Evangelho nos apresentava no domingo passado, e que nos
desafia na nossa identidade, e as condições de realização desse seguimento
identificativo, que nos são apresentadas no Evangelho de hoje.
Estamos diante de um
texto exigente, um texto que nos deve fazer pensar e ajudar a aferir da nossa
vida e do nosso seguimento, pois ao convite de Jesus, poderíamos dizer geral e
abrangente, de assumir a cruz e seguir com ele, somam-se agora condições
concretas e reais, as condições que ele mesmo vive e portanto não pode deixar
de apresentar e exigir a quem se dispõe a segui-lo.
É um tudo ou nada, uma
radicalização, em que muitas vezes parece que nos é pedido mais do que as
nossas capacidades e condições humanas podem suportar. É um pedido, ou um
convite que conduz à renúncia total, que nos coloca num processo que nos deve
levar à renúncia total, mas que Jesus sabe, como também nós sabemos, que é
condicionado pela nossa liberdade e pela nossa apetência de posse. No fundo não
deixamos de querer guardar sempre alguma coisa para nós.
É neste quadro, com
estas condicionantes, que Jesus diz ao primeiro que se apresenta para o seguir
para onde quer que vá, que o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça, ao contrário
das raposas e dos pássaros que têm as suas tocas e ninhos. É o desafio do
despojamento, da pobreza, mas igualmente da falta de segurança, de um ninho ou
uma toca onde refugiar-se, onde voltar ao final do dia ou dos trabalhos.
Aquele que se propõe seguir
Jesus, que aceita o seu desafio de seguimento deve estar preparado e consciente
desta pobreza, deste despojamento, que atinge a radicalidade de não ter nada
senão o próprio Deus Pai no qual se deposita toda a confiança, toda a esperança
e toda a segurança. Afinal o Pai veste melhor os lírios do campo que o próprio
rei Salomão!
Seguir com Jesus e
subir a Jerusalém implica assim essa fé total no Pai que acompanha, vigia e não
deixará de estar presente nos momentos mais dolorosos e desafiantes para cobrir
com a sua capa de misericórdia aquele que confia e se entrega.
Ao convidado a seguir
o Mestre que necessita de ir sepultar o seu pai, Jesus contrapõe a radicalidade
de deixar os mortos sepultarem os mortos, porque afinal o chamamento ao
seguimento é inquestionavelmente para um serviço, para uma missão, como é a de
anunciar o Reino de Deus. Não estamos diante de uma quebra das relações familiares,
de uma usurpação de um membro à família e muito menos diante de uma crítica ao
cuidado dos defuntos. O desafio do seguimento é um desafio para um serviço de
vida, para um serviço muito mais significativo que o cuidado dos mortos como é
o do anúncio do Reino.
A resposta de Jesus
aponta-nos o fim do seguimento, mas igualmente a prioridade que lhe é devida, e
portanto não se devem colocar em primeiro lugar outras realidades, que em
definitiva devem estar subjugadas ao primeiro fim que é o Reino de Deus. Podemos
e devemos sepultar os pais defuntos mas na medida em que tal signifique uma
realidade do Reino, uma manifestação da realidade do Reino.
Por fim, e àquele que
depois de se sentir chamado e de se ter colocado no processo de seguimento
deseja ir despedir-se da família, Jesus responde que o olhar para trás
inviabiliza o serviço e a pertença ao Reino, impede o verdadeiro seguimento. É a
tentação de olhar para o passado, de nos deixarmos aprisionar naquilo que
vivemos e experimentámos, tal como o povo hebreu quando no deserto chorava as
cebolas e os pepinos do Egipto.
O desafio do
seguimento de Jesus joga-se no presente com a perspectiva de futuro, porque é
no presente que Deus age e nos pede acção. Olhar para o passado e viver nele é
não estar atento ao que Deus vai fazendo no presente, é não perceber a novidade
que cada dia Deus vai realizando na vida e na história de cada um. E seguir
Jesus implica estar aberto a essa novidade, disposto a vivê-la com a confiança de
que Deus nos conduz sempre à terra prometida.
A leitura do Evangelho
de hoje mostra-nos assim as condições do seguimento de Jesus, mas igualmente as
tentações que podemos sofrer, os pretextos que nos podem impedir e podem desvirtuar
o dom total a que o Senhor nos chama, como são a nossa liberdade, o amor à família,
a amizade aos próximos ou os bens que possuímos, que devem estar ao serviço do
Reino e não ser obstáculo para o seguimento.
Neste sentido, e neste
quadro existencial em que oscilamos entre o que nos desafia e lança no
seguimento de Jesus e as realidades que nos prendem, a nossa apetência para a
apropriação, devemos ter presentes as palavras de Elias a Eliseu, quando este propõe
ao profeta ir despedir-se da sua família: vai e volta porque eu já fiz o que
devia.
Ao terminar cada dia,
ao fazer o exame de consciência, deveríamos ter presente o que fizemos, o que devíamos
ter feito. Fazemos em cada dia o que de facto nos compete, o que Deus espera de
nós, o que nos realiza face aos dons e graças concedidas por Deus? Quando nos
apresentamos diante de Deus que colocamos nas nossas mãos?
Que a luz do Espirito
Santos nos ilumine e auxilie, para tal como Jesus podermos dizer “Pai nas tuas
mãos entrego o meu espirito”. Pai tudo recebi de ti e tudo te confio!
“O jovem rico”, de Heinrich Hofmann, Igreja de Riverside, Nova-York.
Será com alegria que, ao fazer o meu exame de consciência, lembrarei as palavras desta homilia. Obrigado por elas. Peço ao Pai que o continue a iluminar. Inter Pars
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