A leitura do Evangelho
de São Lucas que escutámos encontra-se na continuidade dos domingos anteriores,
na linha desse conjunto de ensinamentos que Jesus vai ministrando aos seus
discípulos e àqueles que os acompanham na subida para Jerusalém. Jesus sabe que
é uma viagem sem retorno e por isso aproveita todos os momentos para preparar
os discípulos para o fim e para a vida depois do seu desaparecimento do meio
deles. Poderíamos dizer que Jesus vai ditando o seu testamento.
E como acontece em
todos os testamentos há disposições a serem tidas em conta, mas há também
questões que se levantam devido a essas mesmas disposições. Há duas semanas
atrás, Pedro perguntava a Jesus se a parábola que tinha apresentado se dirigia
apenas aos discípulos ou se era para todos. Hoje alguém pergunta sobre a
quantidade daqueles que se salvam.
Face às palavras de
Jesus, e nomeadamente depois de ter refutado a ideia condenatória vigente face
àqueles que tinham morrido às mãos de Pilatos e nos escombros da torre de Siloé,
a questão da salvação é uma questão pertinente e que atormenta as mentes dos
discípulos, sendo por isso retomada diversas vezes. Afinal quantos são os que
se salvam?
Jesus recusa sempre
uma resposta estatística, numérica, uma resposta que supõe um número final. E
tal recusa não se deve a um desconhecimento, ou a uma má vontade, mas pura e
simplesmente porque não há números fechados, nada está decidido, pois tudo está
em aberto na história e na vida de cada um até ao último momento.
Ao perguntarem por
aqueles que se salvam, os discípulos estavam também a esquecer a parábola que
bem pouco antes Jesus tinha contado sobre a figueira que não dava frutos, e à
qual é ainda concedido um tempo para poder dar frutos com a colaboração do
servo que se propõe regá-la e adubá-la. Há sempre tempo, Deus concede sempre um
tempo favorável para a salvação.
E é face a este tempo
que tudo se joga e para o qual Jesus chama a atenção. Não importa o número dos
que se salvam, mas a atitude no tempo propício para alcançar a salvação. É esta
atitude que vai ajudar a passar a porta estreita, uma porta aberta já para cada
um de nós pelo próprio Filho de Deus no mistério da sua morte e ressurreição,
mas que exige a nossa colaboração, o nosso esforço, a nossa luta.
Santo Agostinho
escreveu: “Deus que nos criou sem nós não nos salvará sem nós”; ou seja, Deus
exige a nossa participação e colaboração, a nossa parte de luta no combate que
Ele mesmo já travou por cada um de nós. A salvação é assim em grande medida uma
questão de liberdade, da minha liberdade em aceitar e colaborar na obra da
salvação, da minha salvação e da salvação dos meus irmãos.
Nada é mais humilhante
para uma pessoa que ser declarada irresponsável, e é isso que Deus não quer
para nós, para cada um de nós. Deus não nos quer humilhar nem humilhados e por
isso oferece-nos a responsabilidade de livremente acolhermos o dom da salvação
e de a fazermos nossa com o nosso esforço.
Retomando as palavras
da Epístola aos Hebreus, Deus trata-nos como filhos, mas como filhos adultos,
homens e mulheres livres e responsáveis, aos quais como pai solícito pede que
não se deixem abater, que não desanimem, que não desistam, mas que
corajosamente se levantem e se dirigiam nos passos do irmãos mais velho que vai
à frente e por isso se tornou a porta por onde todos podem e devem passar.
Eu Sou a Porta,
diz-nos Jesus; uma porta larga de amor e misericórdia, mas igualmente uma porta
estreita porque nos exige responsabilidade, cooperação, combate, perseverança
até ao último momento, partilha das fraquezas e debilidades dos outros,
aceitação dos nossos fracassos na luta, humildade para acolher o dom gratuito
do amor de Deus; uma porta aberta na eternidade para o tempo de cada um de nós,
mas também uma porta que se fecha quando lhe voltamos as costas, quando nos
recusamos a transpô-la na nossa vida.
Que o Senhor nos conceda
a graça de fixarmos o nosso olhar e o nosso coração na meta a que estamos
destinados, para desta forma não descuidarmos nenhum esforço para a passagem
pela porta estreita, mas bem pelo contrário para os amarmos como já
participação da vitória alcançada por Jesus.
“Parábola do vizinho importuno”, de William Holman Hunt, Galeria Nacional de Vitória, Austrália.
E essa liberdade de colaboração na obra da salvação que nos é oferecida e à qual precisamos de dar atenção e realizar.
ResponderEliminar" Deus não nos salva sem nós" e espera a nossa colaboração, o nosso esforço, a nossa passagem pela "porta estreita" que se torna larga de graça.
Podemos ficar indiferentes? Inter Pars