A Leitura do Evangelho
de São Lucas, designado como o Evangelho da misericórdia, apresenta-nos hoje uma
das passagens mais conhecidas deste Evangelho, a parábola do filho pródigo, certamente
aquela que mais conhecemos porque também aquela em que mais facilmente nos
somos capazes de rever. Não somos todos nós filhos? Não estamos chamados a ser
pais?
O contexto em que a
parábola é proferida por Jesus é significativo para a sua compreensão e para o
desenvolvimento da mesma parábola e seus actores. Afinal, e o evangelista São
Lucas apresenta-nos isso, estamos diante de um confronto entre o grupo composto
por fariseus e escribas que vivem sob a justiça implacável e exclusiva da lei e
o grupo dos publicanos e pecadores que acolhem a novidade e a mediação das
palavras de Jesus e vivem a alegria da gratuidade do perdão.
Os dois filhos, que o
pai da parábola tem, representam estes dois grupos antagónicos de fariseus e
pecadores, os quais fazem experiências diferentes da verdade fundamental de que
o pai é imagem, verdade que é o amor de Deus. Um e outro filho mostram-nos como
nos podemos afastar desse amor, mas mostram-nos também como há necessidade da
participação pessoal para que o regresso aconteça efectivamente.
Neste sentido, e
porque mais facilmente percebemos o afastamento do filho mais novo, pois é o
que saiu de casa, temos que perceber o que provoca esse afastamento, e que não
é propriamente o facto de sair de casa. O que provoca o afastamento do filho
mais novo é a exigência feita ao pai de ter o que é seu, é este pedido
orgulhoso que provoca o afastamento depois explicitado no sair de casa e no ir
para um país distante.
O pedido da parte da
herança revela-nos o nosso desejo de apropriação, o desejo de poder controlar e
dominar o que é nosso, a idolatria que a leitura do Livro do Êxodo nos
apresenta de considerarmos que o que é nosso é que nos salva. E este poder
inevitavelmente afasta-nos de casa, da partilha do comum, da relação com o pai
que é Deus. É a nossa auto-suficiência em funcionamento, que nos conduz no
limite à perda de nós próprios, à perda de dignidade e à escravatura, tal como
a vivia o filho mais novo quando foi obrigado a tomar conta dos porcos, e tal
como a viviam os pecadores que escutavam Jesus.
Contudo, a
auto-suficiência, o desejo de apropriação não são os únicos processos que nos
afastam de casa e da partilha do comum. Podemos não reclamar nada, podemos não
ir a lado nenhum e ficar em casa como o filho mais velho da parábola, mas ainda
assim podemos estar tão distantes ou ainda mais que aquele que se foi com o que
considerava que tinha de seu. É uma situação perversa, porque se vive num
estado de subserviência, de uma forma servil, sem reconhecimento do partilhado,
do confiado, da dignidade atribuída, porque afinal se vive como estranhos.
O filho mais velho,
que ficou todo o tempo em casa do pai, revela-nos esta perversão, pois ao
reclamar que o pai nunca lhe deu um cabrito para fazer uma festa com os amigos,
expõe a sua relação fora de casa, a amizade com os outros e não com o pai, o
desprezo daquilo que já era dele pela partilha feita no momento da reclamação
do irmão mais novo, mas que não assumira de verdade. É afinal a situação do grupo
dos escribas e fariseus que desprezavam o dom e a missão confiada de levar a bênção
divina a todos os povos.
E nestas
circunstâncias familiares da parábola, é o filho mais novo, aquele que já não
tinha direitos em casa, que afinal se mostra como aquele que não perdeu nada, que
no meio dos desaires da sua vida, dos afastamentos, acabou por não desperdiçar
o que verdadeiramente é fundamental, o tesouro do amor no coração do pai. É significativo
que no meio da sua desgraça reconheça que o pai tem um tratamento de amor, tem
uma relação especial até mesmo com aqueles que o servem; e por isso, ainda que não
possa ser recebido como filho, há a esperança de ser recebido como servo,
porque o pai ama também os seus servos. O filho mais velho nunca percebeu isso,
ainda que estando em casa com o pai.
A parábola constrói assim
um abismo entre os dois irmãos e a relação que estabelecem com o pai, pois
aquele que se afasta reconhece o pai e o seu amor, é capaz de se abeirar dele
depois de tudo e chamar-lhe pai, enquanto o mais velho nunca é capaz de pronunciar
tal palavra, de estabelecer a relação que essa significa. O filho mais velho
dominado pelo espirito de justiça não é capaz de ver o amor incondicional do
pai e por isso encerra-se no orgulho da sua fidelidade subserviente, deixa-se envolver
pela inveja face ao que o pai concede ao irmão. E para um e para outro o pai
não deixa de se revelar como disposto a acolher, de braços abertos, pois são
ambos seus filhos.
A parábola do filho
pródigo revela-nos assim o grande tesouro do amor de Deus, da gratuidade e
liberalidade desse amor, de que São Paulo também nos fala na Carta a Timóteo,
pois ele que era perseguidor dos cristãos foi achado digno de ser um deles e um
apóstolo pela misericórdia de Deus. A parábola revela-nos também a necessidade
que temos de participar do perdão, a necessidade de sair das nossas idolatrias
para ir ao encontro do pai e do amor. O Pai espera-nos de braços abertos, mas
nós temos que nos dirigir a ele, temos que ir ao seu encontro.
Por outro lado, e tal
como o convite feito ao filho mais velho, temos que nos alegrar quando um dos
nossos irmãos procura mudar de vida, tenta uma nova oportunidade de conversão. Não
podemos ficar sem dar um passo, sem acolher e incentivar, sem interceder por
eles como Moisés intercedeu pelo povo pecador, pois como nos diz São João se
não somos capazes de acolher aqueles que vemos, de fazer a experiência de
perdão com os nossos semelhantes como vamos poder acolher e fazer a experiência
do perdão com Deus que não vemos?
1 – “O filho mais novo recolhe a herança”, de Bartolomé Esteban Murillo, Museu do Prado, Madrid.
2 – “O filho pródigo”, de Eugène Burnand.
É isso: quantas vezes estamos sem estar, sem entender os outros, sem partilhar, sem sermos capazes de ter o coração preparado para "fazer a experiência do perdão com Deus que não vemos"?!... Inter pars
ResponderEliminarBoa noite, Frei José Carlos.
ResponderEliminarPassou um ano sobre o dia em que o Pai recebeu o meu irmão na sua casa. "E nestas circunstâncias familiares da parábola, é o filho mais novo, aquele que já não tinha direitos em casa, que afinal se mostra como aquele que não perdeu nada, que no meio dos desaires da sua vida, dos afastamentos, acabou por não desperdiçar o que verdadeiramente é fundamental, o tesouro do amor no coração do pai."
Não encontro mais palavras, senão a transcrição da sua mensagem.
Uma santa noite e o desejo de uma obra profícua e abrangente que a semente que semeia tem produzido.
Um abraço até ao recomeço das minhas visitas ao Porto
GVA