Estamos a regressar das férias de verão, aos poucos vamos retomando as
nossas actividades, e sabiamente no plano de Deus as leituras deste domingo ajudam-nos
a olhar para o trabalho que vamos retomar, para as actividades que constituem o
nosso quotidiano e nas quais somos chamados a ser cristãos, a tomar a cruz tal
como Jesus nos interpela no Evangelho de São Mateus que escutámos.
Muitas vezes, e até mesmo nos comentários a esta passagem do Evangelho
encontramos, infelizmente, uma conotação muito negativa deste carregar a cruz; poderíamos
dizer, uma carga brutal de convicção de que a cruz é sofrimento. Temo que
sofrer, temos que sofrer, é a nossa cruz.
Esta convicção afasta-se contudo do plano de Deus e das próprias
palavras de Jesus. Não foi Deus que desejou o sofrimento do homem, assim como a
morte não é da sua vontade, uma e outra realidade são consequência do nosso
pecado e da nossa condição finita. Por outro lado, o anúncio que Jesus faz aos discípulos
não termina na cruz nem na morte, há a ressurreição, que Pedro não percebeu e
portanto como amigo tentou desviar Jesus do fim trágico anunciado.
Pedro tinha em vista as coisas dos homens, podíamos dizer a nossa
busca de felicidade sem qualquer entrave ou sofrimento. Contudo, o fim último
que Jesus apresenta, a felicidade da eternidade expressa na ressurreição, e que
nos deve orientar, passa para além do sofrimento e da morte, é superior, e é
ele que nos deve iluminar e guiar.
Neste sentido, ao retomarmos os nossos ritmos, somos convidados a
acolher a nossa cruz, não como um fim, uma fatalidade, mas como uma realidade intrínseca
a opções que se fazem por um fim maior, que se fazem por amor. Alguém que ama,
que está apaixonado, é capaz de acolher o sofrimento de não ter outrem ou não
estar em outro lugar, porque está com a pessoa amada. A dor da renúncia, o
sacrifício, são assim relativizados, pois o mais importante é o que amamos, o
que consideramos importante, e pelo qual abdicamos de outras coisas.
Assumir a nossa cruz, carregar com ela, exige assim na medida em que
priorizamos umas realidades e relativizamos outras, em que realizamos um
discernimento dos valores intrínsecos a cada objecto, pessoa ou actividade, uma
transformação interior, uma não conformação com este mundo, como nos diz São
Paulo na Carta aos Romanos.
Esta não conformação com o mundo passa pelas realidades exteriores que
não dignificam o homem, não respeitam a vida e a natureza, mas passa sobretudo
pela interioridade do homem e por esse culto espiritual que somos chamados a exercer.
A nossa vida deve ser uma manifestação da beleza e do amor de Deus, da ternura
da verdade de sermos filhos amados de Deus.
Como acontecia com o profeta Jeremias, da primeira leitura deste
domingo, há em nós um ardor, uma vida divina que nos impele a ir mais além, a
fazer o bem, a procurar a verdade, a tentar a perfeição, a buscar a
ressurreição, e que muitas vezes é obrigado a desenvolver-se no meio da
violência, do ódio e da perseguição.
A sedução de Deus, do divino que ansiamos, provoca-nos à busca
infinita e não podemos abdicar
dela, porque de contrário e como diz Deus ao profeta é dos homens que passaremos
a ter medo, e a nossa vida será uma total perda ainda que tenhamos ganho o
mundo, como diz São Paulo.
Como discípulos de Jesus, ao voltarmos ao nosso trabalho, aos ritmos
da nossa vida familiar, às nossas relações sociais, que o amor presida a todas
as nossas palavras e gestos, que não nos deixemos vencer pela tentação do mais
fácil, como é proposto a Jesus por Pedro e nas tentações do deserto, mas que
aspiremos sempre ao bem maior, à plena realização como homens filhos de Deus,
conscientes de que a lógica do amor implica uma morte, uma cruz, mas que ela não
tem a última palavra, essa chama-se ressurreição.
“Opção – Toma a cruz e segue”, de Andrey N. Mironov.
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