O Evangelho de São
Mateus que escutámos neste domingo apresenta-nos a magnanimidade do perdão, poderíamos
dizer a sua dimensão de mistério; que humanamente nos ultrapassa, mas que na fé
nos salva e nos edifica como homens e mulheres de verdade.
Nos nossos círculos de
relações, nas nossas conversas, é frequente confrontarmo-nos com a acusação de
que a Igreja não deixa de falar do pecado, que carregamos os outros com a
culpabilização dos erros cometidos, dos pecados. Poderíamos dizer que somos
acusados de um certo sadismo, de um gosto de ver os outros culpados.
Contudo, esses mesmos
que acusam a Igreja da exploração do pecado são os primeiros a exigir uma nova
lei de Talião, a expressar a exigência de olho por olho e dente por dente, a
assumir o dogma da nossa sociedade ocidental e capitalista de que tudo tem que
se pagar, tudo deve ser pago. Alguém que cometeu uma falta deve pagar por ela.
O Evangelho de Jesus
Cristo opõe-se determinantemente a esta concepção, podemos dizer que inverte os
polos, e assim o pecado passa para um segundo plano porque o verdadeiramente
fundamental é o perdão, é a grandeza do perdão que Deus nos concede e somos
convocados a viver uns com os outros.
A parábola do rei que
vem ajustar contas, e que Jesus apresenta a Pedro para ilustrar a necessidade
de não se ficar num perdão limitado, confinado a uma determinação, mostra-nos a
mudança operada, a disparidade de realidades.
Quando o rei se
apresenta para cobrar as suas dívidas estamos ao nível da justiça, estamos
ainda sob o regime da lei, e portanto se há alguma dívida é justo, é de lei,
que seja remida. E é perante esta lei, esta justiça, que é aceitável que o servo
tenha que perder tudo para pagar a sua dívida, como a mulher e os filhos.
Esta violência, este
exagero da usurpação do que é mais querido e fundamental como a família para
ser vendido, tem na parábola o efeito de ajudar a tomar consciência da dimensão
da dívida e das suas consequências. O pecado pode de facto levar-nos a perder
tudo, até o que nos é mais querido e fundamental como a família.
O pedido aflito do
servo, consciente da dimensão e gravidade da sua dívida, leva à mudança de
atitude do senhor e rei, que se enche de compaixão e piedade, sentimentos que
não são já da ordem da justiça, mas do amor e da dignidade do próprio senhor e
rei. É a sua dignidade, a sua magnanimidade que lhe permitem esta mudança de
registro. O direito da equivalência é substituído pela gratuidade, pela
liberalidade.
A cena seguinte da
parábola mostra-nos no entanto que o servo liberto e perdoado não percebeu nada
do que lhe tinha sucedido, pois ao espancar e condenar à prisão o seu
companheiro e igual ignora a sabedoria e grandeza daquele que lhe tinha dado
tanto, ignora e esquece a compaixão de que tinha sido objecto. Ao exigir o
pagamento do seu companheiro, o servo perdoado permaneceu no jugo da lei,
permaneceu preso à sua dívida, não assumiu a liberdade alcançada.
Por esta razão se
torna extremamente importante para nós a repreensão do rei quando o servo
devedor volta à sua presença. Antes de mais pela chamada de atenção pela falta
de sensibilidade para com o outro, e depois pela falta de semelhança da atitude
do seu senhor. Aquele a quem tinha sido perdoada toda a dívida não tinha sido
capaz de ser como o senhor, de o imitar nos seus gestos e magnanimidade.
Este “ser como” que o
senhor refere é bastante significativo na parábola, pois exige uma semelhança,
um acolhimento, um assumir de que o perdão só nos alcança na medida em que o
realizamos com os outros, em que somos capazes de perdoar os outros. Como nos
questionava a leitura do Livro de Ben-Sirá, como podemos pedir perdão a Deus se
somos incapazes de perdoar os nossos semelhantes? Como podemos pedir a Deus a
cura e guardamos rancor do nosso semelhante?
O perdão é uma
realidade divina, Deus perdoou-nos antes de nós o merecermos, como nos diz São
Paulo, e portanto mais não podemos fazer que perdoar os nossos irmãos. Poderíamos
dizer que o perdão é como um rio, um fluxo que parte de Deus, mas só nos irriga
e ilumina, na medida em que somos passagem, canalização, para outros.
Para nos ajudar e
facilitar a viver o perdão, a assumi-lo na nossa vida, para além da consciência
de que Deus nos perdoou primeiro, não podemos esquecer as palavras de São Paulo,
de que não vivemos nem morremos para nós próprios.
Assim, quando ao
procurarmos viver o perdão nos apareça a tentação de que será uma humilhação,
uma inferiorização, um desprestígio, devemos antepor e confrontar essa tentação
com a certeza de que não morremos, nem nos humilhamos, mas bem pelo contrário
assumimos o papel e a função de ser como aquele que nos perdoou primeiro, que é
um pai amoroso, um rei magnânimo, um servo que entrega a sua vida para a
salvação do outro.
1 – “A parábola do servo injusto”, Jan Sanders van Hemessen, University of Michigan Museum of Art, Ann Arbor.
2 – “A parábola do servo injusto”, Domenico Fetti, Gemaldegalerie Alte Meister, Dresden.
Não lhe parece que às vezes é tão difícil perdoar verdadeiramente como entender, até ao fim, o perdão de Deus? Mesmo quando dizemos que Deus nunca nos rejeita...Inter pars
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