A leitura do Evangelho
deste domingo termina com uma questão pertinente da parte de Jesus, com uma questão
que dirige aos seus discípulos e a cada um de nós, porque afinal todos nos
encontramos na mesma situação, todos nós somos confrontados na nossa vida com
as palavras de Jesus. Também vós quereis ir embora?
Todos sabemos como os
começos de um projecto, de uma caminhada, são agradáveis, diríamos fáceis, pois
estamos motivados, estamos perante uma novidade, um desafio que nos impele ou atrai.
Contudo, com o passar do tempo, parece que as coisas se complicam, se tornam
mais difíceis, poderíamos dizer, transpondo para o contexto do Evangelho de
hoje, que as palavras se tornam mais duras, mais difíceis de aceitar e acolher.
Também sabemos, que
nestas circunstâncias ou podemos abandonar o projecto, desistir, atirar a
toalha ao chão, ou volver o olhar para o primeiro momento, ou para o que o
precedeu, e perceber afinal o que nos moveu a começar, que desejo ou atractivo
nos colocou naquela situação. Na lógica das palavras de Jesus, no Evangelho de
hoje, é perceber o espirito e a vida do que fazemos ou do que nos moveu, é
passar para além da materialidade das palavras ou dos momentos, das dificuldades
e obstáculos. É acreditar e querer continuar, é fazer novamente opção por se
colocar em caminho ou em processo.
O escândalo que os discípulos
de Jesus estavam a viver, e de que o Evangelho nos faz notícia, é um verdadeiro
equívoco, porque à Lei de Moisés todos sabiam que ninguém podia dar a sua carne
em alimento ou o seu sangue a beber. O sangue é um elemento sagrado que
pertence apenas a Deus, e portanto Jesus jamais poderia estar a falar em termos
materiais, concretos daquelas realidades.
Assim, o escândalo dos
discípulos é apenas uma manifestação da disparidade de interesses, de espirito,
poderíamos dizer de leitura, um confronto entre a radicalidade das palavras de
Jesus e um interesse mais mundano por parte dos discípulos. Não nos podemos
esquecer que estamos no contexto e seguimento do milagre da multiplicação dos
pães. Um dom que lhes foi oferecido e que deveria ter conduzido a uma outra
percepção da pessoa de Jesus e da sua missão, do alimento que afinal oferecia a
todos os homens com a sua vida e simbolicamente manifestado e vivido naquela
abundância de alimento material.
Na nossa caminhada na
fé, no nosso seguimento de Jesus, estamos envolvidos no mesmo processo, há um
bem, um dom que nos precede, e que em determinado momento acolhemos livremente,
se nos tornou atractivo, e pelo qual optámos viver. Contudo, vivemo-lo na contingência
da nossa fragilidade, da nossa condição pecadora, transportamo-lo em vasos de
barro como diz São Paulo, e por isso é necessário estar vigilantes, desenvolver
uma dinâmica de uma permanente opção, de uma renovada actualização diária. Afinal,
é dizer em cada dia, em cada momento, perante cada dificuldade, cada obstáculo,
“a quem iremos nós Senhor se tu tem palavras de vida eterna”, se tu és a força,
a luz e a vida que me ajuda a ultrapassar esta situação, a viver de uma forma
mais plena.
Esta dinâmica de opção
actual e actualizante desenvolve-se de modo particular, porque muito prático,
nas nossas relações humanas, neste sentido de que somos membros do mesmo corpo,
muito concretamente, do Corpo glorioso de Cristo. Em cada um de nós habita a
graça divina, cada um de nós é manifestação do Deus em que acreditamos, uma vez
criados à sua imagem e semelhança.
Por esta razão São
Paulo fala, na Carta aos Efésios, da submissão das mulheres aos maridos e do
cuidado atento e diligente dos maridos para com as suas mulheres. Não se trata
de misoginia da parte de São Paulo, de qualquer preconceito, mas da
apresentação de uma atitude complementar à do homem, que nas palavras de São
Paulo está muito mais responsabilizado do que uma leitura preconceituosa e misógina
nos pode induzir. Para São Paulo cabe ao homem dignificar a mulher, amá-la como
ao seu corpo, cuidá-la como Cristo cuidou a Igreja, santificá-la.
Esta responsabilidade
é contudo de todos nós, homens ou mulheres, pais ou filhos, namorados ou
amigos, colegas ou apenas vizinhos do mesmo banco do transporte público. Todos estamos
chamados por Deus a ser instrumentos da santidade dos nossos irmãos, a procurar
a dignidade do outro, a sua pureza, a cuidar dele como cuidamos do nosso corpo,
a amar sem condições nem recompensas como Cristo amou a Igreja. Podemos dizer
que todos estamos implicados na felicidade do outro, na realização plena do
outro como homem ou mulher, como verdadeiros filhos de Deus.
E a submissão, seja do
homem seja da mulher, não é nada mais que uma atitude de acolhimento, de
participação ou cooperação nessa santidade que se busca em comum, que se sabe
que é dom que se partilha, porque como também diz São Paulo, usando ainda a
imagem do corpo, quando um membro se alegra também nós participamos na sua
alegria, quando um membro sofre todos somos atingidos pelo mesmo sofrimento. Há
um espirito e uma vida que nos une, que nos vivifica comummente, há um espirito
e uma vida que não nos permite virar as costas, desistir do outro, abandonar o
outro à margem, porque se o fizermos somos nós próprios que nos abandonamos na
privação da doação. A presença de Deus no outro apela-nos a permanecer juntos
uns dos outros, a não desistirmos uns dos outros.
Que também nós
queiramos servir o Senhor, como o Povo conduzido por Josué e Pedro e os discípulos
que permaneceram junto de Jesus, porque não só sabemos que o Senhor fez grandes
coisas por nós, mas porque colocou no nosso coração esse desejo e dom que nos
afiança em cada momento que em Deus está a nossa plenitude, a nossa vida
verdadeira e eterna. Procuremos ser-lhe fiéis!
1 – “Quo vadis”, de Andrey Mironov.
2 – “O Bom Samaritano”, de Johann Carl Loth, Schloss Weibeinstein, Alemanha.
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