As leituras que
escutámos neste domingo, nomeadamente a leitura do Livro do Génesis e a leitura
do Evangelho de São Marcos, são conhecidas de todos nós, as questões que
abordam já de alguma maneira nos interpelaram e nos deixaram a pensar. Conhecemos
e reconhecemos o encontro de Deus com o homem e a mulher depois de terem
cometido o pecado, e conhecemos e reconhecemos igualmente a história em que
Jesus parece dirigir-se de uma forma menos educada a sua mãe.
Contudo, não podemos
deixar de explorar outros elementos presentes nestes textos, elementos e
realidades que nos dizem respeito e que vamos experimentando mais ou menos
frequentemente no nosso dia-a-dia, no nosso convívio humano.
Neste sentido é bom
que olhemos para as circunstâncias em que Maria vem com o resto da família ao
encontro de Jesus. Aos ouvidos da família tinham chegado um conjunto de
notícias pouco abonatórias sobre Jesus, um conjunto de difamações, e por isso a
família o procura para o tentar reconduzir à tranquilidade do seu meio
original.
Estas difamações
afectam a dignidade de Jesus, a verdade da sua missão, mas elas são fruto de
uma outra realidade, de um outro pecado, que é a inveja. Um pecado tão grave
que é o único que se apresenta expresso nos mandamentos da lei de Moisés,
quando se proíbe cobiçar as coisas do outro, os bens e animais do outro, a
mulher do outro.
A inveja é o pecado
que nasce dos olhos, daquilo que se vê, e a inveja dos fariseus e escribas relativamente
a Jesus nasce do que lhes é possibilitado ver, das multidões que acorrem para o
ouvir, para serem curadas por ele, que buscam uma mudança de vida junto dele. Cegos
pela sua paixão e pelo seu egoísmo, não são capazes de ver o bem que se produz;
e a partir desta incapacidade geram a difamação, expõem o outro de um forma completamente
estranha ao seu próprio ser e natureza.
Como veremos mais
tarde, com o processo de condenação de Jesus, a satisfação da inveja destes
escribas e homens da lei será a eliminação total do outro, não por qualquer mal
que tenha feito, não porque lucrem alguma coisa com isso, mas apenas porque o
outro os coloca em questão nas suas forças brutais e na sua fome de satisfação.
Este processo desenvolve-se
no entanto em cada um de nós, desde o momento do nascimento, como nos diz a
psicologia, mais ou menos acentuado, mais ou menos virulento de acordo com a
satisfação que vamos tendo connosco próprios, poderíamos dizer na medida em que
temos uma boa auto-estima, em que apreciamos e valorizamos o que somos e o que
temos.
A inveja não nos
permite apreciar verdadeiramente o que somos e temos, os dons que Deus nos
concede, e por isso é um atentado à graça e amor divinos, uma injustiça e
ingratidão face a Deus. Por outro lado, a inveja também não nos permite
apreciar verdadeiramente o outro e as suas qualidades, não nos permite perceber
como são para nós uma riqueza, um dom, que devemos valorizar e procurar
usufruir. O outro enriquece-me e valoriza-me com o que tem e como é na sua
individualidade. Seremos nós capazes de acolher e apreciar o outro?
São Tomás de Aquino
apresenta como remédio para a inveja a caridade, pois só a caridade nos permite
sair de nós próprios e ir ao encontro do outro, de valorizar o que temos, pois
sabemos que só temos cinco pães e dois peixes, como aconteceu com os discípulos
no milagre da multiplicação dos pães, mas é com esse pouco que Deus conta para
nos saciar a todos, para aprendermos a valorizar o que temos e somos. É pouco,
mas é importante, é único, é o necessário para fazer alguma coisa.
A caridade permite-nos
também evitar o outro pecado que nos é apresentado na primeira leitura do Livro
do Génesis, o pecado da desresponsabilização e da culpabilização do outro. Quando
Adão atira as culpas do sucedido para Eva, está a fugir à sua responsabilidade,
à capacidade que tinha de dizer não, de fazer de forma diferente, mas está a
cometer um pecado muito mais grave na medida em que implica também Deus no
sucedido. Foi a mulher que tu me destes que fez com que eu comesse.
Assim, quando não
assumimos as nossas responsabilidades, e atiramos com as culpas para os outros,
estamos a culpabilizar Deus, estamos a responsabilizar Deus pelo mal sucedido,
reservando para nós uma superioridade e uma isenção que não nos pertence, uma
vez que somos seres finitos, limitados e por esse mesmo facto passiveis de
erro, de falha, de uma incapacidade de fazer bem feito.
A experiência da caridade
permite-nos assumir as nossas fraquezas e falhas, os nossos erros, porque a
caridade não oculta as debilidades, bem pelo contrário acolhe-as, porque é a
partir dessas debilidades e limitações, dos erros cometidos, que se pode
perceber a força da graça, a luz e a vida de Deus a actuar nas malhas da nossa existência
limitada e finita.
Por esta razão, a
leitura da Carta de São Paulo aos Coríntios nos apresentava a urgência e a necessidade
de não olharmos para as coisas visíveis, mas de colocarmos os nossos olhos nas invisíveis,
naquelas realidades que estão para além do nosso horizonte existencial. Porque se
ficarmos apenas no que nos é visível soçobraremos nas nossas intenções, nos
nossos projectos, na nossa finitude. O desânimo apoderar-se-á de nós, porque
apenas fazemos a experiência da ruina e da tenda que se desfaz em pó da terra.
Assim, torna-se
urgente olhar os outros com amor, falar dos outros com amor, olharmo-nos e
reconhecermo-nos com amor, pois só devidamente amados e amantes seremos capazes
de vencer o ciúme e a inveja, a maledicência e a calúnia, seremos capazes de
nos responsabilizarmos pelos nossos erros e de não culparmos os outros, de
acolhermos o outro na sua fragilidade e falha que é tanto dele como nossa. Só o
amor nos permite a renovação diária, que nos aproxima da santidade.
1 – Encontro de Jesus e sua mãe antes da paixão, de El Greco, Art Institut de Chicago.
2 – A Caridade, de Abbott Handerson Thayer, Smithsonian Institut?
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