A Liturgia da Palavra
deste domingo, nas suas três leituras, deixa-nos algumas propostas de atitudes,
de respostas, a situações em que nos vemos envolvidos, muitas vezes sem grande
consciência da nossa parte.
A leitura do profeta Isaías
apela e convida-nos à coragem, a uma atitude que muitas vezes temos perante
outros desafios da vida, mas que nos esquecemos de ter perante a fé e o
testemunho que dela radica.
Quando Isaías faz este
apelo à coragem, o povo de Israel enfrenta o desaire da deportação, da perda da
sua terra e das suas referências enquanto povo; é um povo exilado, sem rei, sem
lei, sem lugar de culto. Contudo, e apesar dessa desolação, Deus apela à
coragem, a não ter medo, porque o Senhor alterará a seu tempo o decurso dos
acontecimentos e da história e aqueles que são os mais frágeis experimentarão a
alegria de uma vida nova. A esperança proporciona a coragem.
Hoje em dia, quando
vemos a Igreja a ser atacada, quando vemos os conluios que se tramam no
interior da própria Igreja, quando tomamos consciência da dimensão do pecado da
Igreja, a primeira reacção é de estupefacção, seguida imediatamente de um
colocar-se à margem, de um afastamento. Afinal quem é que deseja pertencer a uma
comunidade, a um grupo que demonstra tantos pecados, tanta infidelidade aos
seus compromissos e princípios?
Conhecemos certamente
irmãos nossos que já o fizeram de uma forma declarada e irreversível, e outros
que o ponderam fazer, pois sentem-se perdidos e desorientados. É perante esta
realidade e esta desorientação, poderíamos dizer esta desolação, que Deus nos
convida novamente à coragem, a não temer, porque nenhum de nós está na Igreja
por Pedro ou Paulo ou Apolo, pelo Papa Francisco ou pelo padre tal, estamos por
Jesus Cristo em quem acreditamos, de quem partimos nos nossos valores e para o
qual tendemos na nossa caminhada de busca de fidelidade.
Acreditamos que Jesus
é o caminho, a verdade e a vida, e por isso permanecemos, com coragem, sem
medo, porque também acreditamos que Deus não deixará de fazer ver os que estão
cegos, não deixará mudos os que devem falar, porque acreditamos que ouvindo
podemos ajudar-nos a libertar-nos uns aos outros do mal que nos oprime, da
desolação em que caímos. A coragem de acreditar e permanecer brota da fé na
acção de Deus, da fé de que Deus não fecha os seus ouvidos aos gritos dos
inocentes, aos gemidos dos oprimidos. Como nos diz Isaías Deus fará brotar da
terra árida nascentes de água viva.
É esta fé que nos leva
também a estar atentos ao que vemos e ouvimos, ao que dizemos, como nos diz a
Carta de São Tiago a não fazer acepção de pessoas, a não colocar etiquetas e
rótulos.
A Carta de São Tiago
expressa-se de modo claro e inequívoco à acepção de pessoas por causa da sua
condição e poder económico; contudo, não podemos esquecer nem deixar de olhar
atentamente a acepção de pessoas que fazemos na Igreja, no interior das nossas
comunidades, por causa dos seus comportamentos, da sua diferença de pensar e
ver as coisas, da sua diferença de opinião e até de busca de fidelidade à
Palavra de Deus. Quantos rótulos e etiquetas colocamos nos outros sem conhecer
as suas razões, sem conhecer a sua história, apenas porque desta forma rotulada
nos é mais fácil relacionar com a diferença do outro, inviabilizando assim a
riqueza da descoberta pessoal, da personalização.
Personalização que
está retratada de forma magistral no encontro de Jesus com o surdo-mudo que a
leitura do Evangelho de São Marcos nos apresenta. Este homem que não pode
expressar-se, que não pode entrar em comunicação, é trazido pela massa anónima
da multidão para que Jesus faça alguma coisa com ele, para que o cure.
Jesus, que o podia
curar diante da multidão, afasta-se com ele, como que retirando-o daquele
anonimato e até daquela rotulagem que a multidão produzia, potenciando assim um
encontro pessoal, a descoberta de um “eu” que se pode relacionar com o “tu” que
é Jesus. A acção de Jesus é assim a de devolver ao outro a sua própria pessoa,
a sua identidade que se constrói e desenvolve no relacionamento com os outros.
E este é o grande
processo que todos nós somos chamados a desenvolver na nossa vida, na nossa
caminhada de crentes e de cristãos, a passar de um anonimato imposto pela
multidão, pela massa, a uma pessoa que se reconhece em si mesmo e no que Deus
lhe revela de si próprio. Neste processo de personalização vamos perdendo a
tentação da rotulagem e da acepção de pessoas uma vez que nos descobrimos também
pecadores e fracos, necessitados dessa graça que Deus nos concede para sermos
diferentes, melhores.
Processo que, como
acontece regularmente na acção de Jesus, assenta na dimensão humana, não prescinde
da humanidade de cada um de nós e da humanidade do próprio Jesus, que toca o
surdo nos ouvidos com os seus dedos, na língua muda com a sua própria saliva. Descobrimos
o nosso eu, a nossa pessoa, nessa humanidade tocada por Deus, na carne que nos
constitui e na qual Deus quis vir habitar, quis fazer-se um de nós.
Processo que também
conta com a nossa liberdade e vontade, poderíamos dizer com a nossa coragem em participar
neste desenvolvimento, pois após ter tocado o surdo-mudo Jesus diz-lhe Efatá, “abre-te”
à novidade que te está a ser apresentada, à novidade da pessoa que és e que
Deus te revela no teu relacionamento com Ele, nessa reciprocidade de
acolhimento entre o teu eu e o eu de Deus.
E como se não bastasse
já toda a transformação, este encontro de eu e tu, Jesus após o milagre operado
recomenda o silêncio, poderíamos dizer a não tradução em palavras do
acontecido, porque de facto esse encontro e descoberta é indizível, é
inexpressável, é uma história pessoal, uma história de amor, e as palavras não
têm o poder de dizer essa história e esse amor. Será a vida, a fidelidade, a
coragem de acreditar e lutar que dirá do milagre realizado, que expressará esse
encontro e essa descoberta personalizante de cada um em Deus.
A Palavra de Deus que
escutámos neste domingo é assim bastante desafiante, e na semana que agora
iniciamos não podemos deixar de lhe dar corpo e de lhe fazer eco. Necessitamos encher-nos
de coragem para acreditar em Deus que não desampara os seus fiéis, para
acreditar na Igreja que somos todos nós com mais ou menos pecados, para não fazermos
juízos uns dos outros porque frequentemente nos equivocamos, para guardar
silêncio porque até das pedras o Senhor pode fazer arautos da sua verdade.
Que o Senhor nos
ilumine com a sua sabedoria e nos conceda a graça da fortaleza e da fidelidade
em todos os desafios que nos são colocados pelo mundo em que vivemos e nos
movemos.
1 – “Isaías profetiza o regresso do exílio”, de Maarten van Heemskerck, Frans Hall Museum, Holanda.
2 – “Jesus cura um surdo-mudo”, de James Tissot, Brooklyn Museum.
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