A leitura do Evangelho
de São Marcos que escutámos, apresenta-nos neste domingo um episódio de todos
nós conhecido, o encontro de Jesus com o homem rico que queria saber o que
fazer para alcançar a vida eterna.
Mas mais que um
encontro podemos dizer que se trata de um desencontro, de um jogo de tensão,
como o jogo da corda, em que cada um tenta trazer o outro ao seu campo, à sua razão,
e que termina com o voltar de costas do homem que possuía muitos bens.
Este encontro de Jesus
pode ser o nosso encontro, mas pode também e infelizmente ser o nosso
desencontro. Podemos também nós ficar aferrados ao que queremos e não perceber a
oferta que Jesus nos faz.
Quando nos encontramos
na celebração do sacramento da confissão, escutamos muitas vezes os penitentes
dizerem que não fizeram nada de mal, que não fizeram nada de contrário aos
mandamentos, e que até rezam e participam na Missa, que cumprem as suas
obrigações.
Tal confissão,
apresentação, podemos assim dizer, assemelha-se à do homem que vem ter com
Jesus, afinal também ele cumpre tudo o que está prescrito na Lei, cumpre os
mandamentos. Quando vira as costas a Jesus, depois de este lhe dizer que lhe
falta vender o que tem, aquele homem regressa ao seu fazer, ao seu cumprir
escrupuloso, poderíamos dizer à sua auto-referência face ao que Deus nos pede. No
cumprimento dos mandamentos ele apropriou-se deles, e não deixou espaço à acção
e novidade de Deus.
Também nós, muitas
vezes, ficamos satisfeitos com o cumprimento os mandamentos, ficamos contentes
porque não fizemos coisas erradas, nos encerramos na nossa auto-suficiência,
afinal rezamos todos os dias, vamos à Missa ao domingo, não roubamos nem
matamos, e procuramos viver em paz com todos, até ajudando-os naquilo que nos é
possível.
Contudo, tudo isto
pode ser um desencontro, pode conduzir-nos ao desencontro com Deus. Porque como
diz São Paulo no hino do amor da Carta aos Coríntios, se não tiver amor nada
sou, se o que fizer não estiver impregnado de amor de nada me vale. E é essa a
oferta que Jesus faz ao homem que procura saber o que fazer para alcançar a
vida eterna, uma oferta que se expressa no próprio olhar de Jesus, pois olhou o
homem com ternura, carinho, simpatia, com amor.
Jesus continua a olhar-nos
com amor e ternura, continua a dizer-nos para vendermos as nossas riquezas,
aquilo a que nos prendemos por segurança, por medo, até por satisfação, e a convidar-nos
a arriscar no amor da entrega, a procurar viver e fazer as coisas não por
obrigação, não por uma compensação, mas por amor, porque algo feito por amor
tem o poder de se reproduzir cem vezes mais na graça que produz.
A vida, vivida desta forma,
nesta loucura de contra corrente face à nossa cultura do mundo, não é fácil, e
isso mesmo o reconhecem os discípulos corroborados por Jesus que diz que não é
fácil um rico entrar no reino de Deus. De facto, alguém centrado em si mesmo,
fechado na sua satisfação própria não pode entrar no reino de Deus, nesta
dinâmica da entrega do amor, em que nada se espera em troca.
Face a esta
dificuldade, não podemos esquecer os instrumentos que a leitura do Livro da
Sabedoria e a Epístola aos Hebreus nos oferecem, como são a Palavra de Deus e a
Sabedoria. Nesta busca de uma liberdade para viver no amor e pelo amor
necessitamos escutar com ouvidos e coração a Palavra de Deus, uma palavra que
penetra, que discerne, que coloca a descoberto o nosso egoísmo mas que igualmente
nos torna patentes quais os desafios a que Deus nos chama.
Atentos à Palavra de
Deus, escutada, meditada, rezada, percebemos como a Sabedoria está à nossa
porta, como a vida vivida com amor é mais valiosa que o ouro, que todos os poderes
e todas as glórias do mundo, como as pequenas realidade como um copo de água
oferecido por amor nos dá mais alegria que o mais lauto banquete. Como diz
Santa Teresa de Ávila, cuja memória celebraremos amanhã, Deus move-se entre as
panelas e os tachos das nossas cozinhas, Deus move-se nas malhas da trama do
nosso quotidiano feito de pequenos momentos, e a verdadeira sabedoria é
percebê-lo, senti-lo presente e actuante.
Confiantes que o Senhor
nosso Deus nos multiplica por cem o que abandonamos por causa do Evangelho de
Jesus, mas sobretudo e antes de mais que nos outorga uma filiação divina,
porque ao abandonar o pai não nos dai cem pais, mas o verdadeiro Pai, nos faz
filhos de Deus, procuremos nesta semana, que agora iniciamos, viver todas as
realidades da nossa vida, as nossas responsabilidades e compromissos, livres do
espirito de escravatura ou subjugação, sem rebelião ou mágoa, mas imbuídos de
amor e alegria, de ternura divina, para dessa forma iluminarmos o mundo e
sermos de forma efectiva verdadeiramente filhos de Deus.
1 – Cristo e o jovem rico, de Andrey Mironov.
2 – Cabeça de Cristo sobre folha de papel escrito, de Ludovico Cardi, Metropolitan Museum of Art, NY.
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