Queridos irmãos
As leituras que escutámos
na Liturgia da Palavra são hoje trespassadas pela mesma ideia do testemunho,
como nos dizia o Evangelho de São Lucas no seu términus, “vós sois testemunhas
de todas estas coisas”. Mas testemunhas de quê?
Podemos pensar numa
dimensão histórica e perceber que os discípulos de Jesus foram e são
testemunhas da sua vida pública, que sabemos foi bastante curta, à volta de três
anos. Nesta vida pública eles foram também testemunhas, como dizia São Pedro,
nos Actos dos Apóstolos, da sua condenação, do facto de ser trocado por um
assassino e condenado inocentemente, foram testemunhas do seu suplicio e da sua
morte.
No entanto, quando
passamos aos momentos seguintes, à experiência da ressurreição, o testemunho é difícil
de discernir, afinal o que os discípulos puderam ver foi apenas o túmulo vazio,
o desaparecimento do corpo daquele que tinha sido crucificado. Temos também as
palavras e as experiências das mulheres que dizem ter visto Jesus, mas sabemos
igualmente como esse testemunho foi tido em pouca conta, assim como o dos discípulos
que o percebem ao partir do pão.
Há assim a necessidade de
um outro tipo de experiência, para passar da mera recordação, das memórias
vividas com saudade, para ultrapassar a frustração de um vazio onde parece que
flutua um espírito, um fantasma. E é assim que Jesus se faz presente no meio do
cenáculo, na reunião dos discípulos medrosos e incrédulos, para proporcionar
essa experiência.
E tal como acontece com
Tomé, o Evangelho de São Lucas que escutámos hoje, mostra-nos um Jesus que
convida ao toque, um Jesus que não só se dá a ver, mas que se oferece igualmente
ao tocar, convidando-nos deste modo a ultrapassar a concepção de uma ideia, de
uma memória ou recordação que se pode ter dele. Jesus faz-se presente de modo a
poder ser tocado.
E paradoxalmente o
convite de Jesus ao toque passa pelas feridas, como se o seu corpo necessitasse
ser novamente entregue aos homens, tal como foi entregue na cruz, ali à violência
e ao ódio, aqui à carícia da ternura e do amor. A proximidade física que Jesus
oferece abre essas duas possibilidades, a da agressão ou a da carícia. Como os
discípulos têm dificuldade em acreditar no que ouvem e veem, de facto esses
sentidos podem enganar, a oferta do tocar abre à dimensão da verdade da
realidade, dá a possibilidade de uma relação, uma nova relação, um outro
testemunho.
Tal como aconteceu com
Tomé, que não sabemos se tocou ou não as feridas de Jesus, também São Lucas não
nos diz se os discípulos ousaram tocar o corpo do mestre, apesar da alegria, e
por isso a necessidade e o pedido de Jesus de lhe darem de comer, expressão de
um aprofundamento da compreensão, da relação, para o verdadeiro testemunho
poder acontecer.
É a esta compreensão que
conduzem as palavras de Jesus, que certamente não tocaram no corpo ressuscitado
do Mestre, mas que foram capazes de ler o que estava escrito no corpo de Jesus.
Ao explicar-lhes que tudo o que tinha acontecido estava escrito nos livros de
Moisés, dos Profetas e dos Salmos, Jesus oferece aos discípulos o pergaminho do
seu corpo para que eles possam pessoal e comunitariamente fazer a leitura dos acontecimentos
e dar testemunho disso.
Ao oferecer aos discípulos
as marcas que os carrascos imprimiram no seu corpo, as letras do ódio e da
violência, daquilo que os homens podem fazer uns aos outros, letras escritas com
sangue, Jesus oferece também as marcas do amor e da misericórdia, as letras impressas
a ouro por Deus Pai sobre esse sangue inocente derramado para a salvação de
todos. O Verbo feito carne da nossa carne, como nos diz São João, é agora carne
que se faz palavra, testemunho de amor. O corpo de Jesus ressuscitado é assim
um livro a ler, um livro de vida.
Estamos assim face a face
à inevitabilidade da necessidade de entrar na intimidade de Deus pelas suas
feridas, pelo lado aberto, do qual como nos diz também São João brotou sangue e
água, como estamos face a face à necessidade de Deixar Deus entrar em nós pelas
nossas feridas. Jesus não se apresenta aos discípulos como um herói cheio de
cicatrizes das suas lutas, mas apresenta-se como um ferido, com as suas chagas
abertas, para nos dizer que não espera outra coisa de nós. Deus nãos nos espera
como super-heróis, mas como feridos do caminho, aos quais como bom samaritano coloca
aos ombros para introduzir na casa de repouso do Pai.
Com isto, a oferta de
Jesus não é a da exaltação da vulnerabilidade, nem uma ideologia da menoridade
ou fragilidade, mas um convite à aceitação, ao acolhimento das nossas feridas,
dos nossos falhanços, que podem ser perfeitamente, e muitas vezes assim
acontece, encontros com Deus através das brechas do nosso orgulho e da nossa
soberba. Deus deixa-se encontrar nas nossas feridas, faz-se presente e oferece-se,
tal como aconteceu no cenáculo com os discípulos.
Quando contemplamos as
rugas que marcam as faces dos nossos avós, dos nossos mais velhos, percebemos o
passar dos anos, a degradação do corpo humano, mas somos incapazes de perceber
o quanto encerram de amor, o quanto são marcas da obra da vida com tudo o que
ela acarreta e comporta, alegrias e tristezas, dores e paixões. Impressiona como
muitas vezes no momento da última despedida mascaramos os que nos são queridos,
escondendo as suas rugas, as marcas que a vida deixou inscritas no pergaminho
da pele, o seu testemunho, como se não tivessem vivido.
O Livro do Apocalipse
recorda-nos que no fim dos tempos o livro da vida será aberto, o livro onde
cada um terá inscrito o seu nome único e apenas conhecido do próprio de acordo
com a sua vida; uma vida com uma dimensão dramática inevitável, mas também com
uma grande dimensão de festa e alegria se soubermos e deixarmos Deus entrar nas
nossas feridas, nos nossos desaires, se nos deixarmos tocar por Jesus
ressuscitado como ele se nos oferece a ser tocado. E é de tudo isto que Jesus
nos convida a ser testemunhas, das suas feridas e das nossas feridas, do seu
amor e do nosso amor.
Ilustração:
1 – As dúvidas de Tomé,
de Bela Iványi-Grunwald, Galeria Nacional da Hungria.
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