Caros Irmãos
Estamos a celebrar o
sexto domingo da Páscoa, um domingo que podemos denominar do Amor, pois a
leitura da Primeira Carta de São João diz-nos que Deus é amor e depois o
Evangelho, igualmente de São João, convida-nos a viver nesse amor.
São textos extremamente
ricos, cada versículo permite-nos uma meditação longa, uma reflexão profunda
sobre a nossa vida e a forma como estamos a viver o amor e no amor, e por isso,
porque nos podemos dispersar, convém que nos centremos em algumas notas, em
apenas alguns elementos para iluminar e orientar a nossa vida destes dias.
Assim, e antes de mais,
olhamos para o texto dos Actos dos Apóstolos e para essa grande e maravilhosa
constatação que Pedro faz sobre a acção do Espírito Santo, uma acção que
precede os gestos formais e rituais que acreditavam necessários para a sua recepção.
Na casa de Cornélio o apóstolo Pedro verifica que o Espírito Santo tinha já
actuado naquele pagão, sem qualquer intervenção da sua parte. O Espírito Santo
precede-os, tal como Jesus lhes tinha anunciado que os precederia na Galileia
depois da ressurreição.
O Evangelho de São João
ao dizer-nos que não fomos nós que escolhemos Jesus, mas que foi o Pai que nos
escolheu para amigos dele, somos confrontados com a mesma ideia e precedência,
o amor de Deus, o Espírito Santo, precede-nos na nossa missão, na nossa vida,
nos nossos gestos e palavras.
E desta realidade e
afirmação resultam consequências inevitáveis para a nossa vida, e sobretudo
quando vivemos momentos de sofrimento, de instabilidade, de insegurança ou
incerteza; Deus vai à nossa frente, precede-nos e de todas as maneiras espera
que o encontremos, que no meio da tempestade façamos a experiência do seu amor
presente e actuante. Como temos que abrir bem os olhos e o coração para nos
encontrarmos com o seu amor.
Um amor que é o maior
mistério da nossa condição de cristãos, um amor que revoluciona todas as nossas
concepções e imagens de Deus. Quem poderia imaginar que Deus é amor? Só alguém
que pôde fazer a experiência desse amor, que o pôde sentir quando encostou a
sua cabeça sobre o peito do mestre na última ceia, só ele nos poderia fazer
esta afirmação e revelação.
Mas o discípulo amado,
que conhece o coração de Jesus, que o sentiu bater, conhece também o coração
dos homens e o que eles são capazes de fazer com o amor, de como são capazes de
rebaixar ao seu nível mais medíocre as realidades mais elevadas e sublimes. A experiência
da condenação de Jesus e da sua morte, a morte de um inocente, é a prova cabal
para o discípulo amado do que se pode fazer com aqueles que amam e vivem na
verdade.
O amor pela sua
sublimidade e fragilidade é aquela realidade que mais facilmente pode ser transformada
à nossa proporção e dimensão, que mais facilmente pode ser adulterada, que pode
resultar numa contrafacção. E quer queiramos ou não, mais ou menos todos
vivemos alguma espécie de contrafacção do amor; quer seja pelo sentimentalismo
passivo, que não nos leva a empenhar em transformar a realidade; quer seja pelo
activismo sem alma, em que realizamos o trabalho sem paixão, sem sentido de
cooperação na obra de Deus; quer seja pela vagabundagem afectiva, procurando ternura
e afecto em qualquer outro sem qualquer compromisso comum; quer seja pelo
sensualismo desenfreado, explorando o prazer que no dá o nosso corpo sem
qualquer dignidade; quer seja pela possessividade narcisista, em que buscamos o
outro como uma propriedade e para nossa única satisfação.
Todas estas experiências
de amor, contrafacções do amor levam à destruição do verdadeiro amor, tanto naquele que está chamado a dá-lo como naquele que é convidado a recebê-lo. São as
experiências do amor na nossa dimensão finita, mortal, e que Jesus no convida a
ultrapassar, a procurar que se assemelhem cada vez mais ao amor de Deus, que se
entrega sem qualquer exigência, sem esperar nada em troca, apenas para o bem do
outro, para o crescimento e plenitude do outro, para que o outro seja amigo e
não servo, para que a alegria habite em nossos corações de uma forma completa como
habitava no coração de Jesus.
Este convite de Jesus a
permanecer no seu amor, a que nos amemos uns aos outros como ele nos amou, é um
convite à transformação, porque ou nos deixamos transformar pelo amor, pelo
amor de Deus, e com ele nos dignificamos e alcançamos a alegria plena, ou
rapidamente transformamos o amor, adulterando-o, e dessa forma conduzimo-lo às
dimensões mais vis e aviltantes da nossa condição de homens e mulheres.
E se o mandamento do amor
que Jesus nos apresenta é exigente, é porque menos que tudo é intolerável tanto
para nós como para Deus; no amor não nos contentamos com pouco e Deus também
não, afinal fomos feitos à sua imagem e semelhança e as nossas exigências
amorosas não são mais que espelho das amorosas exigências de Deus.
O cardeal suíço Charles Journet
escreveu que se Deus nos dá mais um dia de vida é porque tem necessidade ainda
de um acto de amor nosso. Procuremos, pois, nestes próximos dias aproveitar cada
ocasião para viver e realizar esse acto de amor, imbuindo o nosso trabalho, as
nossas amizades, a nossa ternura, os outros que partilham a vida connosco, com
o amor de Jesus, o amor que nos alegra desde o mais fundo do coração.
Ilustração:
1 – A Última Ceia, Anónimo,
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
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