Ao terminarmos as
leituras que a Liturgia da Palavra nos oferece neste domingo não podemos deixar
de dizer e assumir que estamos diante de leituras provocadoras,
revolucionárias, textos que nos obrigam a pensar um pouco mais a nossa condição
humana e a nossa identidade de cristãos e filhos de Deus.
A leitura do livro do
Levítico convida-nos a ser santos porque Deus é santo. A realidade do nosso
quotidiano parece levar-nos para bem longe dessa santidade. No entanto, e
apesar de tudo, a santidade permanece, está lá no meio destas realidades, está presente
como um dom, como um gérmen que faz parte da nossa constituição essencial. Criados
à imagem e semelhança de Deus, de Deus que é santo, possuímos na nossa matriz
essa santidade divina.
São Paulo, na Carta
aos Coríntios que escutámos na segunda leitura, recorda-nos essa santidade ao
dizer-nos que somos templos de Deus, que o templo de Deus é santo, e portanto
na habitação do Espirito em cada um de nós partilhamos a santidade de Deus.
A santidade é assim um
dom que nos é feito, que nos constitui, mas que necessita como todos os dons de
ser desenvolvido de modo a alcançar a plenitude, a fonte e o cume da sua essência.
Por essa razão o livro do Levítico traduz a santidade em recomendações muito
práticas, como o não odiar o irmão, o não vingar-se, o não guardar rancor, em
suma, em amar o próximo como a si próprio.
Podemos dizer que a
santidade de acordo com o Levítico se traduz num conjunto de normativas vividas
de modo a respeitar e a amar o próximo, um próximo que faz parte da nossa
tribo, do nosso povo, da nossa cultura, que se insere na nossa zona de
conforto.
As palavras de Jesus
no Evangelho de São Mateus vão contudo mais longe, radicalizam a santidade,
porque já não se trata de um esquema normativo, de uma práxis enquadrada, mas
de uma audácia e generosidade sem mais. A santidade é para ser vivida de forma
extravagante, exorbitante, poderíamos dizer “provocadora”.
Por isso, e fazendo
referência à Lei de Talião, dente por dente olho por olho, Jesus parte para uma
proposta inovadora e radical, para uma proposta que se desenquadra, que toma
uma carga de exagero e por isso é provocadora para o outro. A santidade em
acção altera-nos, faz-nos outros, e faz do outro alguém diferente.
Para expressar esta
extravagância da santidade, Jesus utiliza as imagens da face que se oferece a
quem bateu, da túnica e do manto, das milhas a caminhar. Há sempre mais, há um
extraordinário que se oferece ao outro e que o outro não espera, que o
surpreende e provoca. Oferecer a outra face é desarmante, é manifestar que a
violência não tem sentido, dispor-se a entregar o manto quando se discute por
causa de uma túnica, é manifestar a relativização dos bens, dispor-se a
caminhar duas milhas é manifestar a generosidade do tempo e da disponibilidade.
Para uma completa
compreensão destas palavras de Jesus não podemos deixar de ter presente que o
manto era segundo a Lei de Moisés algo que não se podia guardar para o outro
dia, mesmo que fosse o penhor de algum negócio. O manto tinha a carga social,
psicológica e religiosa da protecção que era devida a cada homem. Não se podia
ficar com a protecção do outro. E Jesus convida a disponibilizá-la como manifestação
de santidade.
Também não podemos
deixar de referir que a expressão usada pelo evangelista para se referir ao
pedido de caminhar é nova e unicamente usada no Evangelho quando Simão de
Sirene é solicitado a levar a cruz de Jesus. Não se trata assim apenas de um acompanhar
o outro mais umas milhas, mas de carregar com ele, de levá-lo mais longe do que
o solicitado, poderíamos dizer de alterá-lo para melhor.
Mas se o nosso egoísmo
e egocentrismo nos conduzem frequentemente em sentido contrário ao que nos é
proposto por Deus, a nossa avidez de satisfação não nos deixa espaço de
liberdade, temos que olhar de caras as palavras de São Paulo quando diz aos
cristãos de Corinto, como nos diz a cada um de nós, tudo é vosso, mas vós sois
de Cristo.
Tudo nos é oferecido,
tudo nos é proporcionado, porque não somos então capazes de viver em liberdade
e liberalidade, confiando ao outro o que nos foi confiado, conscientes que a
promessa de Jesus para a nossa generosidade e amor é uma retribuição cem vezes
maior e mais satisfatória?
Necessitamos por isso
de olhar a santidade com outros olhos, com os olhos de Deus, percebendo que na
medida do nosso amor e da nossa generosidade para com todos estamos a ser
perfeitos como o Pai, porque nessa dádiva sem medida e recompensa nos
aproximamos e assemelhamos ao Filho que é Jesus Cristo, verdadeira garantia de
todos os dons presentes e futuros.
“Domine quo vadis?”, de Annibale Carracci, National Gallery, Londres.
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