Com a leitura do
Evangelho que escutámos chegamos ao fim do chamado Sermão da Montanha e do período
do Tempo Comum que medeia o tempo do Natal e a Quaresma. Na próxima
quarta-feira, com a imposição das cinzas, damos início à caminhada de
preparação para a celebração da Páscoa.
Tendo presente já esta
caminhada não podemos deixar de ler e assumir o Evangelho nesta perspectiva,
não podemos desperdiçar as possibilidades que nos oferece de elaborarmos
propósitos de conversão, de mudança de vida, para vivermos verdadeiramente a
experiência da ressurreição de Jesus na próxima festa da Páscoa.
Neste sentido olhamos
para as palavras de Jesus que nos diz que a vida é mais que o alimento e o
vestuário, que a vida é mais que as realidades que todos os dias nos envolvem, realidades
que fazem parte da vida mas não são a vida na sua essência.
É incontestável que
necessitamos ocupar-nos e preocupar-nos com o que temos que vestir e comer, com
a casa onde habitamos, com a qualidade de vida que é necessária facultar
àqueles que dependem de nós, com as seguranças que necessitamos para qualquer
desaire ou desastre da nossa vida.
Contudo, e como Jesus
nos alerta, essas preocupações e ocupações não podem distrair-nos do
verdadeiramente fundamental, bem pelo contrário devem estar orientadas e
iluminadas pelas necessidades verdadeiras e fundamentais para a vida do homem. Não
nos podemos dar ao luxo da idolatria do bem-estar, mas devemos viver em tudo e
com tudo como um dom ou um serviço que nos é facultado para um bem maior como é
a nossa plenitude humana e divina.
Jesus não é um romântico
que acredita no amor e uma cabana, também não está alucinado com um idealismo
naturalista; ele conhece bem as dificuldades e necessidades dos homens e
mulheres, pois faz parte de uma família, trabalha com as suas próprias mãos e
conhece as dificuldades que passam aqueles que são oprimidos e explorados pelo
império dominador.
É face a esta
diversidade de situações que Jesus nos vem alertar para o valor natural de cada
um, de cada homem e mulher, que vale mais do que o que come e o que veste, que
vale mais do que o que produz ou como se apresenta. Jesus apresenta-nos o que verdadeiramente
nos deve preocupar e ocupar, o nosso ser, o valor intrínseco de cada um de nós,
tenha mais ou tenha menos dinheiro, seja reconhecido publicamente ou viva no
anonimato. Valemos muito mais do que o valor que nos damos.
Neste sentido, e na
medida em que a Igreja nos convida a viver exercícios de centralidade pessoal como
são o jejum, a esmola e a oração, de que forma os podemos assumir no tempo
quaresmal que se nos oferece dentro de dias? Como vou libertar-me de alguma
coisa, como vou jejuar, para me centrar no valor de mim próprio, naquilo que
verdadeiramente sou aos olhos de Deus? Quantas alienações me afastam de mim próprio
e necessito assumir para me encontrar comigo, na minha verdadeira pessoa
enquanto relação com os outros e com Deus?
E daquilo que me
liberto, do que jejuo, como o vou partilhar com o outro, como fazer esmola? Não
uma esmola meramente material, que muitas vezes não nos altera em nada, que não
me faz ver o valor da vida, mas uma esmola que me descentra de mim próprio e me
leva ao encontro do outro naquilo que ele é e eu devo valorizar para um
verdadeiro e pleno encontro. Quantas vezes estamos com os outros mas não nos
encontramos, não retiramos as máscaras que nos escondem.
Nesta esmola do
encontro com aquilo que verdadeiramente somos e que o outro é, temos que
assumir as palavras de São Paulo que escutámos na leitura da Primeira Carta aos
Coríntios. Não nos podemos importar com o que os outros podem pensar, com o juízo
que podem fazer da nossa fragilidade ou da nossa força, porque ninguém é justo
para poder julgar o outro e apenas a Deus cabe o direito de julgar. O importante
é a consciência que não nos acusa de nada, porque em tudo procuramos o Reino de
Deus e a sua justiça, e portanto nada há a temer.
Esta fidelidade e
consciência tranquila são fruto dessa confiança e fé de que Deus não nos
abandona, de que Deus se preocupa connosco e nos acompanha nas nossas
necessidades. Tal como nos recordava o profeta Isaías, Deus é como uma mãe que
não se esquece dos seus filhos, porque é fruto das suas entranhas, carne da
mesma carne. E nós somos fruto das entranhas do amor de Deus Pai, que nos criou
e nos redimiu depois de nos termos perdido no nosso egoísmo para sermos seus
filhos adoptivos.
É esta ternura
solícita de Deus que nos deve fortalecer e animar a olhar para nós com valor e
a olhar os outros com respeito e carinho, com o valor que lhes é devido. Afinal,
e como diz São Paulo, nós somos administradores, somos gestores dos mistérios de
Deus, e o maior mistério é a vida do homem, é a nossa pessoa, que apesar das
suas fragilidades e infidelidades continua a ser amada por Deus, continua a ser
cuidada e acarinhada por Deus, porque como diz Santo Ireneu “a glória de Deus é
o homem vivo”.
Procuremos pois a
glória de Deus cuidando da vida de todos e cada um, precedendo cada gesto e
cada palavra, cada obra realizada, com o amor total que é a justiça do Reino de
Deus.
1 – “A idolatria de Salomão”, de Sebastiano Conca, Museu do Prado, Madrid.
2 – “O juízo de Salomão”, de Peter Paul Rubens, Statens Museum for Kunst, Copenhaga.
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