Estamos a chegar ao
fim de mais um ano litúrgico e o Evangelho de São Mateus que escutámos vem ao
nosso encontro nessa necessidade de fazer uma avaliação, de aferir o que
fizemos com os dons e talentos que Deus nos concedeu, com as oportunidades e
potencialidades da nossa vida, confiadas por Deus para a nossa realização e
participação na obra de Deus.
A parábola dos
talentos que Jesus apresenta, e escutávamos no Evangelho, coloca no entanto em
foco uma outra realidade e questão que não podemos esquecer, que muitas vezes é
para nós uma questão pertinente, que nos pode afastar de Deus, que nos pode
deixar paralisados na rentabilização dos nossos dons e talentos.
Quantas vezes não nos
interrogaram já sobre o porquê das doenças, das guerras, da fome e da violência,
como se Deus se tivesse ausentado para parte incerta como o Senhor da parábola,
e não quisesse saber de nada. O repouso de Deus após a obra da criação, tal
como nos narra o Livro do Génesis, é provocante nesta ausência de Deus, permite
estas questões e por isso as encontramos também plasmadas na Sagrada Escritura.
Os autores sagrados recolheram-nas e podemos encontrá-las nos Salmos ou nos
Livros Sapienciais de uma forma explícita.
Contudo, a ausência de
Deus é a manifestação da oportunidade deixada ao homem para participar e
colaborar na obra da criação. Na sua liberdade, sem qualquer pressão ou subjugação,
o homem pode voluntariamente colaborar com a obra da criação, continuar a obra
iniciada por Deus.
Podemos por isso
assumir que a ausência de Deus se torna presença quando o homem na sua
liberdade, na sua vontade, colabora com a obra da criação, quando procura um
mundo melhor, mais justo, mais verdadeiro, quando coloca as suas energias,
capacidades e potencialidades ao serviço do bem. O Deus ausente não deixa assim
de estar presente nessa energia, nessa disposição e colaboração livre do homem.
O criador faz-se presente na obra criativa do homem.
Pelo contrário, a
preguiça, a inércia, o desleixo, o enterrar dos talentos, tal como nos
apresentava a parábola de Jesus, manifestam a morte, o fim sem sentido e desta
forma tornam efectiva a ausência de Deus. Deus ausenta-se com a nossa
indisposição para a colaboração na obra da criação, com a nossa recusa, porque
Deus a nada nos força. Como dizia Maurice Zundel, como um pobre mendigo Deus espera
a nossa ajuda e colaboração.
Ajuda e colaboração
que passa por coisas muito pequenas, pelas realidades do nosso quotidiano, pelas
pequenas tarefas, pela fidelidade nas realidades da nossa rotina. A parábola do
Evangelho que escutámos coloca-nos isso em evidência, quando o servo que
recebeu mais talentos é louvado não pela sua capacidade multiplicadora, de
rentabilização dos talentos, mas pela fidelidade nas coisas pequenas.
Muitas vezes sofremos
essa tentação de pensarmos que necessitamos fazer algo grandioso, espectacular,
como encontrar a cura para a doença do cancro, para nos realizarmos, para
sentirmos que estamos a contribuir para um mundo melhor, que estamos a
colaborar na obra da criação. E contudo, essas oportunidades acontecem com
muito poucas pessoas, são excepções, que nos mostram que não podemos prescindir
das pequenas obras, da nossa fidelidade nas coisas pequenas de que nos fala a
parábola do Evangelho.
Quando ouvimos as
histórias pessoais desses génios, dos grandes inventores, facilmente percebemos
que também eles chegaram onde chegaram, descobriram o que descobriram ou
inventaram, porque estiveram atentos às pequenas coisas, porque foram fiéis na
sua observação, na sua atenção e na sua busca de uma resposta.
Afinal é este o nosso
caminho, o projecto que Deus nos deixa como forma de colaboração, estar atentos
para agir quando for necessário, para fazer o que nos compete, com fidelidade,
alegria e confiança, poderíamos dizer com virtuosidade como a mulher da leitura
do Livro dos Provérbios. Ela não faz nada de extraordinário para além do que
lhe compete como esposa, como mãe, como dona de casa, como alguém que tem bens
e os reparte generosamente com aqueles que não têm.
A parábola do
Evangelho diz-nos que Deus se ausentou para nos oferecer a oportunidade de
colaboração, de realização, mas diz-nos também que o Senhor um dia regressará,
virá tomar contas da nossa gestão, do que fizemos com os dons, talentos,
oportunidades e potencialidades que possuímos.
Este regresso não pode
contudo encerrar-nos numa imagem negativa de Deus, uma imagem perversa,
insinuada pelo servo que recebeu apenas um talento e o foi enterrar porque
sabia que o senhor colhia onde não semeava. Não nos podemos deixar intimidar
pela autoridade do senhor, pelo seu poder, não podemos permitir que o medo
vença, porque se é verdade que o Senhor regressará também é verdade que não nos
pedirá contas para além das nossas capacidades. Não nos será pedido mais do que
somos capazes, do que nos confiou no seu amor e conhecimento das nossas
limitações.
Com esta confiança,
certos do amor de Deus, podemos e devemos fazer nossas umas palavras que são atribuídas
a Santo Inácio de Loyola e o Papa Bento XVI citou na Alocução do Ângelus de 17
de Junho de 2012: “age como se tudo dependesse de ti, mas consciente de que na
realidade tudo depende de Deus”!
1 – A Parábola dos Talentos, de Andrey Mironov, 2013.
2 – Conhecimento e Fé, de Andrey Mironov, 2007.
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