A leitura do Evangelho deste terceiro domingo da Quaresma
apresenta-nos o episódio conhecido como a expulsão dos vendedores do templo. Estranhamente,
e ao contrário do que acontece com os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas, que
colocam este incidente quase no final da vida pública de Jesus, São João
coloca-o logo no início das actividades de Jesus.
Para os outros três evangelistas este episódio é uma das causas da condenação
de Jesus, ou pelo menos um dos motivos que levam à sua acusação, pois Jesus não
tinha qualquer autoridade para fazer o que fez, podíamos dizer que se tinha
comportado como um arruaceiro, mas mais grave ainda, tinha atentado contra o
templo, o lugar de culto de todo o povo, uma tentativa de profanação.
A localização do episódio na linha histórica do Evangelho de São João,
logo no início, tem no entanto outro fim, pois visa mostrar desde o primeiro
momento a dimensão divina de Jesus, o novo espaço ou modo de culto e de relação
com Deus. A partir desta novidade, desta concepção que o corpo é presença de
Deus, todos os milagres, todas as curas, ganham um novo sentido, uma outra
dimensão, ou seja, aquele que é a presença por excelência de Deus entre os
homens restaura nos outros homens essa mesma presença, abre-lhes as vias para
uma relação e presença mais plena.
Naturalmente este episódio tem consequências, não só na dimensão da
relação do homem com o sagrado mas sobretudo na condição e identidade do próprio
homem, novo espaço divino.
Sabemos pela história do povo de Israel como o templo era uma
realidade fundamental, uma estrutura inquestionável e intocável, de tal modo
que até tinha um lugar reservado, um santo dos santos. O templo era o sinal e a
manifestação mais visível da presença de Deus entre os homens, da sua habitação
com a obra criada e com o povo eleito para a salvação.
Contudo, e pelo próprio culto desenvolvido e dos animais necessários,
o espaço e o culto desviou-se do seu fim mais profundo; e assim, de um lugar de
presença, de relação, tornou-se num lugar de comércio, poderíamos dizer até de
tráfico. Não podemos imaginar que Jesus foi ali correr à chicotada os
vendedores necessários àquela multidão, as nossas barraquinhas das festas
populares, os nossos fornecedores de hóstias e vinho para a missa, mas aqueles
que exploravam o culto, aqueles que sustentavam um tráfico do divino, como se o
amor de Deus, a sua graça, pudesse ser adquirido, manipulados por uma moeda, um
touro ou até um sacrifício que nos impomos.
Estamos perante o tráfico e a exploração do amor de Deus, e é contra
isso que Jesus se insurge e manifesta, como já o tinha feito no momento do
sermão da montanha. O que Jesus anuncia de modo profético neste gesto de
expulsar os vendedores do templo é o culto sem compromisso, o culto livre, o
culto que assenta o seu fundamento na gratuidade e no amor, no dar a vida pelo
amor do outro. Se há um culto a realizar, se há uma relação com Deus a viver e
sustentar, ela só pode ser verdadeira e efectiva na gratuidade, no amor, na
entrega total.
E por isso São Paulo nos fala, na leitura da Carta aos Coríntios que
escutámos, da loucura da cruz, desse sinal que é escandaloso, mas que manifesta
na sua total dimensão e profundidade o grande mistério de Deus que se entrega
nas nossas mãos, que podemos dizer se deixa fazer manipulável, acessível a
todos, ao contrário da ideia mais comum às religiões e cultos que assenta no
acesso ao divino pela troca comercial.
Pelo dom da vida de Jesus consumado na cruz, Deus está ao nosso
alcance e não precisamos de ir muito longe para o encontrar, não necessitamos
de lugares privilegiados, porque afinal Ele está em cada um de nós, habita
ressuscitado em cada homem e em cada mulher.
Podemos assim encontrar Deus e relacionarmo-nos com Ele na rua, no segredo do nosso quarto, na igreja que frequentamos, no espaço de trabalho que partilhamos com o outro. Podemos e devemos encontrar Deus no outro que habita connosco, nos nossos pais e no respeito que nos merecem, nos filhos e nos cuidados que nos exigem, na intimidade do homem e da mulher que partilham o mesmo leito, na cooperação diligente no trabalho que realizamos, na alegria e na festa que vivemos entre amigos.
O outro é afinal a nova e a grande presença de Deus, uma presença
manifestada desde a obra da criação, mas que foi sendo esquecida, rejeitada,
porque é mais fácil relacionarmo-nos com um objecto, com uma imagem, com um
ídolo, que com o outro que é carne como a nossa, que é tão frágil como nós, que
pela sua singularidade vai para além do que desejamos e expectamos.
O zelo pela casa do Senhor devorou o coração de Jesus e levou-o àquela
atitude violenta que não se coaduna com o que conhecemos dele, mas que ainda
assim está imbuída de atenção e cuidado, pois se num outro momento e porque não
tinha sido bem recebido numa aldeia os discípulos lhe perguntaram se podiam
mandar um raio sobre aquela aldeia, Jesus com os cambistas e os vendedores de
pombas tem o cuidado e a delicadeza de lhes dizer apenas que retirem tudo aquilo
dali, pois não só não dignifica a casa do Pai como não os dignifica a eles como
filhos de Deus, como membros do povo eleito.
A nossa consciência da habitação de Deus em cada um de nós, o zelo
pela sua casa que não é mais que cada um de nós e que nos deve devorar, deve
levar-nos também a gestos corajosos de defesa do outro, de defesa da vida, da
dignidade de todo o homem. É nossa obrigação cuidar do outro, dignificar a
presença de Deus em cada um de nós. E tal como Jesus, não podemos perder de
vista o cuidado, a delicadeza, a educação, como o devemos fazer.
Que nesta terceira semana da Quaresma estejamos atentos aos nossos
irmãos e que os saibamos cuidar com carinho, com delicadeza e fineza, como se
cuidássemos do próprio corpo de Jesus, como a mulher pecadora o cuidou com os seus
perfumes e as suas lágrimas. Tal como Jesus que lavou os pés a Pedro para que
pudesse tomar parte com ele, saibamos nós também cuidar humildemente uns dos
outros para conjuntamente tomarmos parte na glória de Jesus.
1 – “Jesus expulsando os vendedores do templo”, pintura de Arcabas, igreja de Saint Hugues le Chartreuse, Grenoble.
2 – “Jesus lavando os pés a Pedro”, de Ford Madox Brown, Tate Britain, Londres.
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