A leitura do Evangelho
deste segundo domingo da Quaresma apresenta-nos a transfiguração de Jesus
diante dos discípulos Pedro, Tiago e João. É um momento importante na caminhada
de Jesus com os discípulos, mas é igualmente um momento importante na nossa
caminhada da vida e na nossa caminhada quaresmal de preparação para a Páscoa. Sem
que tenhamos muita consciência disso fazemos já neste momento uma experiência
da ressurreição, projecta-se no nosso horizonte esse grande mistério que nos
envolve a todos.
Contudo, para
compreendermos um pouco melhor o que se passou, temos que olhar os momentos que
precedem este acontecimento, pois é à sua luz que ele ganha contornos mais
definidos. Assim temos a multiplicação dos pães e a cura do cego de Betsaida, e
após estes milagres a célebre pergunta de Jesus aos discípulos sobre a sua
identidade. Afinal quem dizem os homens que ele é e quem dizem eles que é.
Diante da confissão de
Pedro, de que Jesus é o Messias, aparece-nos o primeiro anúncio da paixão de
Jesus, um contraponto ao que Pedro acabou de formular, e logo imediatamente a seguir
a repreensão de Pedro ao Mestre, pois o que tinha acabado de dizer não fazia
sentido nenhum, não se encaixava naquilo que tinham assistido de
extraordinário, de grandioso. Afinal como é que Jesus podia assumir um final
trágico, um final de rejeição e morte, com as multidões a procurá-lo, com os
milagres que realizava, com os poderes que manifestava?
O anúncio de Jesus
opõe-se à imagem do super-herói, de alguém que tem poderes para fazer o que
quiser, e que se vinha a construir no meio de todos; e Pedro inevitavelmente
não podia aceitar isso, ou como nos diz o texto evangélico, satanás não podia
permitir a fuga a essa imagem, a essa brecha de tentação à utilização dos
poderes para a glória própria.
Face a esta
perturbação, a esta anarquia de valores e interesses, à confusão gerada ainda
mais pela apresentação das condições para seguir o Mestre, Jesus reformula a
estratégia, se assim podemos dizer, e num movimento pedagógico inusitado recolhe-se
com três dos discípulos lideres num alto do monte e transfigura-se diante
deles.
Podemos dizer que é
uma manifestação que visa preparar os discípulos, fortalecê-los na sua união
com o Mestre, na coragem e na confiança para poderem atravessar a tormenta que
de facto já se desenha no horizonte. Sabemos, no entanto, que a experiência não
foi muito eficaz, pois no momento mais perigoso cada um dos discípulos escapa-se
como pode.
E esta ineficácia está
já patente neste mesmo momento quando Pedro propõe construir três tendas, uma
para Elias, outra para Moisés e outra para Jesus. O evangelista diz-nos que
Pedro não sabia o que dizia, desculpando Pedro da proposta delirante, pois se
pelo lado de Jesus a companhia de Elias e Moisés significava a sua relação com
as promessas messiânicas, pelo lado de Pedro a proposta das três tendas visava
um encerramento, uma reconfiguração de toda a experiência com Jesus nos quadros
do antigo profetismo e da lei mosaica.
É por esta razão que a
transfiguração de Jesus no alto do monte se divide em dois momentos, se compõe de
duas experiências, a da visão dos antepassados Elias e Moisés e a da teofania
da voz que vindo da nuvem escura lhes diz que aquele é o Filho muito amado. Estamos
assim face a um convite que apela a uma integração do antigo no novo, a uma
nova relação com o divino, não já através do profetismo ou da lei, mas pela
relação muito pessoal e intima com aquele que é o Filho, a manifestação do amor
do Pai.
A transfiguração é
assim a habilitação dos três discípulos para a experiência futura da rejeição,
paixão, morte e ressurreição de Jesus. Tudo vai acontecer de acordo com a lei e
os profetas, mas a sua cabal compreensão só é possível através da relação com o
transfigurado ressuscitado. Compreendemos assim que após a teofania Jesus
ordene aos discípulos que não comentem nada do sucedido até à ressurreição,
ainda que como o Evangelho nos diz eles não soubessem o que isso significava.
Esta ordenação, agora
limitada no tempo, aparece em muitos outros momentos quando Jesus impede os espíritos
de falarem, de dizerem quem ele é. Não se trata de uma cabala, nem de um
segredo de justiça que não pode ser violado, bem pelo contrário trata-se de um
aviso, de uma precaução, pois só após a ressurreição se poderá falar
verdadeiramente daquele Jesus, daquele Messias, do Filho de Deus. Antes disso
todos os discursos, todas as afirmações serão um fiasco, um equívoco.
É a experiência do encontro
com o ressuscitado que dá a verdadeira e completa imagem de Jesus, o verdadeiro
conhecimento do amor de Deus, que nos faz perceber que Deus não poupou o seu
próprio Filho para nos resgatar da condição do pecado, para nos assegurar a
relação de filiação e intimidade que tínhamos perdido com a desobediência dos nossos
primeiros pais.
A transfiguração é assim,
na nossa caminhada quaresmal, na nossa vida de cristãos, uma manifestação dessa
tensão em que vivemos, estamos no mundo mas não somos do mundo, somos filhos de
Deus mas vivemos como filhos dos homens, vamos caminhando para o imprevisível e
vamo-nos preparando para o impossível mas apenas orientados pela confiança na
palavra e nos testemunho dos que nos precederam. Na nossa realidade do
quotidiano, na nossa fragilidade, perfila-se um horizonte de glória, de luz, no
qual fomos integrados desde o nosso baptismo mas necessitamos actualizá-lo,
assumi-lo plenamente, transformando a nossa condição finita e pecadora, em suma
transfigurando-nos.
Este compromisso e
trabalho diário tornam-se mais simples na medida em que a nossa confiança em
Deus é forte, em que a fé nos leva a ter garantido o auxílio de Deus e a sua
protecção. Dessa forma poderemos também nós confiar a Deus o que mais amamos,
tal como Abraão confiou o seu filho Isaac, ou o que mais tememos e nos intimida,
uma vez temos à direita do Pai aquele que intercede por nós, como nos diz São
Paulo.
Nesta segunda semana da
Quaresma somos assim convidados a desenvolver a confiança, a confiar nas nossas
capacidades e potencialidades, nos dons que Deus nos confiou, bem como nos
irmãos com que vivemos e construímos projectos de vida e trabalhos, mas
sobretudo em Deus que não nos falta com a sua protecção e a sua luz.
2– “Jesus em oração”, pintura de Arcabas, igreja de Saint Hugues le Chartreuse, Grenoble.
Silêncio...Calma... reflexão... é o que precisamos para descobrir, no fundo do nosso coração, as "capacidades e potencialidades" que o Senhor lá colocou. E depois, confiança n´Ele para fazer render e partilhar estes dons com os que nos rodeiam.
ResponderEliminarConfiança, uma "palavra-chave" nem sempre fácil de conseguir nas indispensável para ultrapassar dificuldades, dúvidas e dores. Inter pars