Todos conhecemos o
conto de fadas dos irmãos Grimm “A Branca de Neve”, sabemos como a rainha má
tem um espelho ao qual pergunta se há alguém mais bela do que ela. Pergunta narcisista,
mas que nos revela, tal como acontece frequentemente nos contos populares e
para crianças, a grande tentação que todos os homens e mulheres sofrem de ânsia
de poder, de um poder absoluto que coloca todos os outros debaixo dos seus pés.
O espelho do conto da
Branca de Neve mostra-nos como nesta sede de poder aspiramos a que todos sejam
como nós, sejam o reflexo de nós, sendo para tal aniquilados na sua identidade
e diferença. É também a política de todos os regimes totalitaristas, de todos
os extremismos e radicalismos, pois nada pode haver de diferente, de dissonante
daquele que tem o poder.
O espelho e o desejo
de reflexo espelhado aniquilam a liberdade do outro, a liberdade de pensar, de
ser, de procurar, o seu processo único e irrepetível na história, inviabiliza a
convivência e o enriquecimento até daquele mesmo que procura o seu reflexo no
outro. O espelho não nos diz quem somos, para isso necessitamos do outro, mas é
mais fácil aceitarmos o espelho que o outro, pois o outro ao dizer-nos quem
somos transforma-nos e altera-nos. O outro faz de nós outros.
A figura do Bom Pastor
que nos é apresentada no Evangelho deste Quarto Domingo da Páscoa vem
revolucionar esta concepção, podemos dizer que vem partir todos os espelhos,
colocar-nos em situação de já não necessitarmos de espelho, porque alguém nos
diz quem somos. O pastor de que Jesus fala, e que se associa à grande tradição
bíblica, é um pastor conhecedor do nome de cada uma das suas ovelhas, que as
chama pelo seu nome, que as conduz sem terror ou coacção, de uma forma livre.
Podemos dizer que
estamos uma vez mais no coração da grande revolução de Jesus, na revolução da
concepção religiosa, pois Jesus dá-nos uma imagem de Deus que não deseja que os
seus fiéis, os crentes sejam seus escravos, sem vez nem voz, mas pelo contrário
seus amigos, seus íntimos, filhos que são chamados pelo nome e que podem
livremente responder. A concepção religiosa de Jesus, expressa também nesta
imagem do Bom Pastor, deixa ao homem a liberdade de escolher, de escutar o
apelo divino e de o seguir.
A uma obediência cega,
sem responsabilidade, Jesus contrapõe uma obediência activa, responsável, poderíamos
dizer adulta, pois o que obedece, o que procura a fidelidade fá-lo não por medo
de represálias, mas por sentido de colaboração e partilha, por amor da obra em
que se sente e sabe envolvido e cujo fim depende também de si.
A liberdade para uma
resposta, para a colaboração, exige uma identidade, poderíamos dizer uma
personalidade forte, autêntica, que se conhece nos seus limite e fraquezas
assim como nas suas forças e potencialidades. O Bom Pastor ao chamar cada uma
das ovelhas pelo seu nome, coloca-nos diante dos olhos, como em perspectiva,
essa identidade e personalidade. Sabemos quem somos, vamos intuindo esse nome novo
que está gravado no livro dos eleitos de que fala o Apocalipse, um nome de
vencedores, de colaboradores na obra da criação e da redenção, o nome dos
filhos de Deus, porque conhecemos e reconhecemos Aquele que nos chama como
origem e fim.
A figura do Bom Pastor
obriga-nos assim a uma renovada relação com Deus, a um acolhimento que se vai
fazendo descoberta, integração, participação, desenvolvimento de identidade
porque nos reflectimos em Deus e somos reflexo do seu amor. Mas obriga-nos
também a uma renovada atenção às relações que estabelecemos entre nós, relações
que devem ser de liberdade, de respeito, de desenvolvimento para a plenitude da
condição humana nos seus mais diversos elementos constitutivos.
Não podemos de maneira
nenhuma, depois de escutar o apelo do Bom Pastor à liberdade divina, desejar ou
procurar que os outros sejam nossos espelhos, sem identidade e personalidade,
como marionetas que manobramos ao nosso belo prazer, ou melhor ao prazer do
nosso narcisismo. Os outros são por si próprios e por Deus e devemos acolhê-los
como nosso complemento, como parcelas para o nosso desenvolvimento total na sua
diferença e identidade.
Este trabalho, este
esforço, deve ser desenvolvido quotidianamente nas nossas relações familiares,
na relação entre esposos, entre pais e filhos, entre colegas de trabalho e
escola, entre amigos. Não posso querer que o outro seja como eu, como as minhas
expectativas o conceberam, como a minha imaginação o construiu. Devemos acolher
o outro tal como ele é pois também nesse acolhimento se manifestará o que Deus
é, a verdade de Deus, que habita e brilha em cada homem e mulher na sua
singularidade. Cada um de nós é uma imagem de Deus, única e irrepetível, e
assim Deus nos pede que o acolhamos, escutando nessa singularidade a sua voz de
amor.
1 – “Narciso”, de Caravaggio, Galleria Nazionale d’Arte Antica, Roma.
2 - “O Bom Pasotr”, de Bartolomé Esteban Murillo, Museu do Prado, Madrid.
Extraordinária a analogia entre a imagem do espelho da rainha má e a ânsia de poder que tantas vezes se apossa de nós e estraga as relações humanas, a visão de amor que devemos ter dos outros, o carinho e a compreensão que nos são pedidos em relação aos que nos acompanham.
ResponderEliminarSó mesmo o Bom Pastor para conseguir renovar esta visão deformada que tantas vezes temos dos outros e nos leva a querer que sejam como nós os imaginamos e desejamos. Inter pars