O Evangelho de São
João que escutámos neste domingo fala-nos da videira e dos ramos, da
necessidade que temos de estar intimamente unidos a Jesus para que a nossa vida
produza verdadeiramente frutos de vida, para que sejamos verdadeiramente seus discípulos.
É um texto sobejamente
conhecido de todos nós, mas por vezes não contemplamos o total alcance do seu
significado. Para tal, necessitamos ter presente que Jesus profere estas palavras,
fala desta íntima ligação de cada um de nós com Ele, após o grande gesto da
lavagem dos pés aos discípulos no contexto da última ceia. Podemos dizer que
Jesus dá um tom mais elevado ao gesto que tinha realizado.
Sabemos que o gesto de
Jesus lavar os pés aos discípulos é um gesto de serviço, é uma intimação a que
os discípulos façam o mesmo entre si e com os outros homens e mulheres. A maior
glória do discípulo é este serviço humilde que presta aos seus irmãos, pois
também o Senhor fez o mesmo com cada um dos seus discípulos, e o discípulo não é
maior que o mestre.
Podemos e devemos
assim lavar os pés uns aos outros, servir os irmãos, procurar fazer o bem, e
felizmente encontram-se muitos homens e mulheres que o realizam, que vivem este
espirito de serviço, ainda que não se digam crentes ou católicos praticantes.
As palavras de Jesus,
ao falar-nos da necessidade de estarmos unidos a Ele, de sermos os ramos da
videira, vão ao encontro deste serviço e ministério a que somos chamados, pois
vem dizer-nos que o bem que procuramos fazer, o nosso serviço aos homens nossos
irmãos, ganha outra dimensão quando nos encontramos ligados a Deus, são
iluminados e transfigurados pela fé adquirindo uma dimensão divina.
A rotina do quotidiano
coloca-nos, no entanto, alguns problemas, faz-nos pensar se o que estamos a fazer
verdadeiramente tem sentido, tem valor, algum poder transformante da realidade
ou das pessoas. A rotina, a monotonia, fazem-nos rapidamente desistir desta
ligação, e poderíamos dizer, desta excelência quotidiana que o Senhor nos pede.
Afinal é tão mais fácil continuar a viver como vivemos, sem fazermos mal a ninguém,
procurando fazer o bem todos os dias, pela menos uma boa acção como os
escuteiros.
Contudo, é aqui que as
palavras de Jesus nos desafiam, e sobretudo num elemento que fomos perdendo do
nosso horizonte cristão, que deixámos de cuidar porque o assumimos como algo
externo a nós próprios, como uma imposição, e que é o dever. Hoje fala-se muito
de direitos, de igualdade, de equilíbrios e simetrias, mas perdeu-se a dimensão
do dever e por isso Gilles Lipovetsky pôde escrever um livro a que deu o título
de “Crepúsculo do Dever”.
Quando Jesus nos fala
da videira e dos ramos, da necessidade de ligação, dos ramos que necessitam ser
cortados para que produzam mais frutos, está a falar-nos também do dever, dessa
necessidade intrínseca de fazer as coisas, de procurar o bem, não por uma razão
ou imposição exterior, mas pela alegria e pela satisfação que elas produzem em
nós, por essa consciência de participação numa história e numa acção divina,
que exigem esforço, aplicação, mas que nos alcançam a realização plena como
homens e filhos de Deus. A seiva divina alimenta-nos para essa realização e por
isso essa necessidade de ligação interna e de depuração do que está a mais na
nossa vida.
Assim, quando eu cuido
da minha família, dos seus membros, quando procuro o seu bem-estar e a sua
felicidade, não o faço por um dever que me foi imposto pela sociedade, ou pela
cultura em que estou inserido, pela tradição familiar. Não é um esforço que me
escraviza, mas é um dever para a realização plena da minha pessoa, que se
completa nos outros com quem partilho a vida, com os quais construo um projecto
de vida, uma realização. A família que eu cuido e alimento, que protejo, é uma
parcela da família divina que me foi dada cuidar e por isso toda a minha
aplicação, todo o dever em fazer tudo por ela, é também experiência da
familiaridade e do amor que une a Santíssima Trindade.
O trabalho que todos
os dias realizo não é um mero negócio, não é uma troca da minha força por uma
mão cheia de dinheiro, não é um dever de fazer alguma coisa, de me sustentar
pelo meu trabalho. O trabalho é também um dever interior a mim próprio, porque
desde o primeiro momento da criação Deus chamou o homem e a mulher a serem
cooperadores da sua obra da criação quando lhes disse crescei e multiplicai-vos.
O meu dever de trabalhar é um dever que deriva desse convite de Deus, é uma
cooperação e participação numa obra que me alcança e ultrapassa, mas que conta
comigo, no qual sou também fundamental. O trabalho dignifica-me na medida da
minha colaboração na obra divina.
Os nossos deveres
quotidianos são assim fundamentais para a nossa realização, para a nossa
plenitude, poderíamos dizer são um elemento de excelência na nossa vida, e
qualquer dificuldade ou embaraço que nos possam causar devem ser iluminados e
confortados pela nossa ligação mais íntima com Jesus, com essa permanência que
nos é pedida, e podemos dizer é o dever mais fundamental de cada um de nós.
São João, na leitura
que escutámos da sua Carta, recordava-nos que o Senhor nos concede tudo o que lhe
pedimos se fizermos o que lhe é agradável, se cumprirmos o seu mandamento que é
acreditar em Jesus e amar os irmãos. Os nossos deveres serão cada vez mais
suaves, mais íntegros a nós próprios, conaturais ao nosso viver, se não
perdermos do nosso horizonte e da nossa rotina diária a fé em Jesus e o amor
aos irmãos. Uma e outros transfiguram completamente a nossa existência, a nossa
limitação e finitude humanas, produzem frutos abundantes que glorificam a Deus
e nos tornam verdadeiros discípulos de Jesus.
Que não nos cansemos
de procurar, pela excelência de vida na fé e no amor, de produzir bons frutos para
a maior glória a Deus.
1 – “Cristo a
verdadeira vide”, ícone, Museu Bizantino e Cristão de Atenas.
2 – “Cristo na marcenaria
de São José”, de Matteo Pagano, Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro.
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