Estamos a celebrar a
Páscoa da Ressurreição de Jesus e o Evangelho de São João que escutamos neste
domingo apresenta-nos esse momento em que Maria Madalena pelo romper da aurora vai
ao sepulcro onde o corpo de Jesus tinha sido depositado.
Podemos imaginar Maria
Madalena caminhando pelas ruas de Jerusalém, por aquelas ruas nas quais também
tinha acompanhado o mestre e amigo, onde a memória o tornava presente, movida
por um desejo profundo e legítimo de o encontrar novamente, de ouvir a sua voz.
Não é fácil aceitar que aqueles que amamos desapareçam da nossa vida, se é que
alguma vez chegamos a aceitar, e os lugares que frequentaram parecem querer que
permaneçam vivos.
Podemos imaginar
também a dor de Maria Madalena, a sua tristeza, e esse sentimento de
desorientação, de abismo vertiginoso em que a dúvida nos assalta, pois de que
serve ir ao sepulcro que foi selado, onde já nada mais se pode fazer ao corpo
que se conheceu, que se acarinhou e cuidou, que se amou. Aquela visita de nada
servirá ao que jaz no sepulcro, inacessível para sempre.
Contudo, é necessário
ir, não por ele, mas por si, Maria Madalena, aquela que sofre a dor da perda, cujo
coração está destroçado com tão grande tragédia. Esta visita é um movimento de
luto, um simular da aceitação da fatalidade, pois bem no fundo não deixa de brotar
essa recusa a estar só, essa negação de que o outro partiu para uma viagem sem
regresso.
Ao chegar ao túmulo
Maria Madalena sofre a mais atroz das suas experiências, pois depara-se com o
sepulcro violado, completamente escancarado a todo e qualquer estranho, acessível
a qualquer um que passasse por ali. À dor da morte de Jesus acresce agora a dor
do desaparecimento do corpo. Nesta manhã de Páscoa deixa de haver o que restava
do objecto amado, nem um cadáver há já para ver, para prestar os últimos
cuidados. A dor da perda torna-se assim lancinante, duplamente dor.
Hannah Arendt escreveu
ao seu mestre e amigo Karl Jaspers que o essencial da sua fé se jogava na imprevisibilidade
e é afinal nessa imprevisibilidade que Maria Madalena se vê envolvida, de que
Maria Madalena se torna testemunha activa. Naquele romper da manhã vinha com um
projecto, tinha as suas ideias e planos, carregava a sua dor, e tudo se
desmoronou face a uma realidade insuspeita, completamente nova, a uma vida que
lhe escapava e a ultrapassava, a uma nova dor.
A Páscoa na sua
dimensão de mistério é também, para cada um de nós, o integrar desta imprevisibilidade,
é acolhê-la, é assumir que a vida nos alcança enquanto nós estamos a fazer
planos para viver, como dizia John Lennon. Deus é muito maior do que podemos
imaginar e a sua vida entrelaça-se na nossa vida de uma forma insuspeitável,
admirável, não coarctando a nossa liberdade e autonomia, mas iluminando-a e
potenciando-a.
Face ao acontecimento imprevisível,
Maria Madalena corre a anunciar aos discípulos o que tinha visto, a sua leitura
dos acontecimentos, afinal a expressão da sua perda, da sua dor, “levaram o
Senhor e não sabemos onde o colocaram”. É a sua dor que a move, a perda do que
lhe podia ainda restar para cuidar. Maria Madalena está ainda centrada em si
mesma e por isso quando se encontrar com Jesus ressuscitado no jardim não vai
ser capaz de o reconhecer, vai pensar que se trata do jardineiro que lhe pode
dar alguma informação sobre o paradeiro do corpo desaparecido.
As palavras de Maria
Madalena são no entanto a expressão da maior verdade e dimensão do mistério da
ressurreição de Jesus. Deixámos de saber onde ele se encontra, onde o colocaram,
porque Jesus ressuscitado pode estar no meio das nossas casas, nas nossas
relações familiares, como pode estar no meio da rua, num encontro fortuito com
um sem-abrigo, pode estar numa criança que sofre num hospital de oncologia como
pode estar numa jovem que é explorada sexualmente.
Com a ressurreição de
Jesus, a presença de Deus no meio dos homens deixou de ter um lugar controlado,
deixou de estar sujeita a esquemas concebidos, pois essa presença joga-se e
torna-se efectiva na imprevisibilidade, na novidade da vida, na aventura do
encontro que nos leva para fora de nós e que nos coloca verdadeiramente frente
ao outro.
A celebração da Páscoa
é assim um convite a sair de nós, a deixar a nossa timidez e o nosso medo, a
acolher o impensável e o maravilhoso, a novidade da aventura em que Deus se
envolve e nos envolve.
1 – Maria Madalena no sepulcro, de Giovanni Girolamo Savoldo, Getty Center, USA.
2 – As santas mulheres junto ao túmulo, de William-Adolphe Bouguereau, Royal Museum of Fine Arts de Antuérpia.
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