Todos sabemos como a
palavra de Jesus e a sua missão representam uma boa nova, uma novidade, uma
revolução, e o texto do Evangelho de São João que hoje escutámos é bastante
representativo desta novidade e revolução. As palavras de Jesus são uma
revolução na forma como concebemos a religião e como podemos conceber as
relações entre nós.
Antes de mais, Jesus
revela-nos que a religião não é uma escravatura, uma submissão cega a alguns
preceitos e formulários éticos e rituais, bem pelo contrário a nossa relação
com o divino é e deve ser pautada pela liberdade e pela amizade. De servos
passámos a amigos, de subjugados passámos a homens livres.
Por outro lado, e numa
tentativa de superar os nossos instintos mais selvagens, de supremacia para a
sobrevivência, Jesus diz-nos que nos devemos amar uns aos outros, que não nos
devemos reger pela lei da concorrência desenfreada mas pelo espirito da fraternidade
que nasce do amor que Deus coloca no nosso coração.
Contudo, e por incrível
que pareça, nós somos bastante refractários a esta novidade, a esta liberdade e
amizade, preferimos que os outros pensem por nós, nos apresentem propostas e
soluções, preferimos ser servos a ser homens livres, ou então colocamo-nos como
donos da verdade e queremos que todos sigam as nossas ideias e propostas,
passamos a ditadores sem respeito pelo outro e a sua singularidade.
A liberdade e a
correspondente responsabilidade intimidam-nos uma vez que as respostas e
soluções, os nossos actos passam a ser exclusivamente nossos, da nossa tutela e
autonomia. E como muitas vezes cometemos erros, falhamos, é inquestionável na
experiência da liberdade, e o nosso orgulho não está disposto a assumi-los, vamos
vacilando e acolhendo a sujeição a outros sem maiores dramas ou questões.
Paralelamente, como o
mandamento do amor também não é fácil, temos que assumir que é bastante difícil,
vamos sobrevivendo através de simulações, de aproximações, que não nos
satisfazem totalmente, mas nos libertam do peso de consciência da insatisfação,
pois afinal fizemos alguma coisa, ou pelo menos tentámos.
Jesus colocou a
fasquia muito alta, mas ao fazê-lo sabia que podíamos atingir o nível que nos
estava a pedir, ou melhor, a oferecer, pois fomos criados por Deus para viver
em liberdade e fraternidade, para ser colaboradores da obra divina, uma vez
criados à sua imagem e semelhança. A liberdade e o amor, podemos dizer, são marcas
divinas colocadas no nosso coração e às quais não podemos deixar de dar
resposta, às quais somos atraídos para que se possam desenvolver de modo a
atingirem a sua plenitude e perfeita integração na nossa felicidade.
Para um eficaz
desenvolvimento deste processo temos que partir da expressão de São Pedro na
casa de Cornélio, e que escutávamos na primeira leitura dos Acos dos Apóstolos,
“também eu sou um simples homem”. É esta consciência de igualdade, nas
fraquezas e limitações, nas graças e potencialidades de realização, que nos
permite estar uns com os outros como amigos, em verdadeira e profunda fraternidade,
em completa liberdade. Sabemos que não somos superiores, nem o outro é
superior, e se alguma qualidade ou algum dom temos em particular é para ser
colocado ao serviço do outro, para o seu crescimento. Os dons encerrados em nós
próprios e para nossa auto-satisfação esgotam-se e morrem.
Esta experiência da
igualdade, que parte da igualdade aos olhos de Deus e do amor de Deus por cada
um em particular, leva-nos a amar sem preconceitos ou expectativas, de forma
gratuita e pelo gozo do próprio dom do amor. A expressão mais próxima de nós
desta realidade amorosa é o amor materno, um amor único que é capaz de permitir
perder-se para que o outro seja alguém na sua individualidade.
É inquestionável, pela
nossa própria experiência, que esta novidade proposta por Jesus exige esforço,
aplicação, um recomeçar constante. No entanto, face aos desaires, nos momentos
de dúvida sobre a validade de tal esforço, não podemos deixar de ter presente
aquilo que nos dizia São João na leitura da sua Carta, Deus amou-nos antes que
nós o amássemos, ele precede-nos no amor, e o amor colocado no nosso coração é
um dom maravilhoso da sua pessoa.
Assim, na humildade e
na esperança somos convidados a viver o amor, amando-nos uns aos outros e
amando a Deus, que é a fonte de todo o amor. Este amor e a busca da sua
fidelidade, impede-nos de idolatrar o que quer que seja, de vivermos como escravos
de quem quer que seja, deuses, ideologias, modas, pessoas. O amor torna-nos livres
e leva à libertação do outro, e por isso onde não há liberdade não há amor.
Jesus revelou-nos que
o nosso Deus ama-nos de tal modo que nos concede a liberdade até de o negarmos,
de o abandonarmos, mas ele é fiel no seu amor e nunca nos abandona, porque a
sua maior glória, poderíamos dizer o seu maior gozo, é o homem livre, vivo,
pleno diante de si, espelho do seu amor e da sua liberalidade.
Saibamos com a luz do
Espirito Santo sê-lo cada dia e em cada circunstância.
1 – “A idolatria de Salomão”, de Sebastiano Conca, Museus do Prado Madrid.
2 – “São Pedro e o Centurião Cornélio”, de Bernardo Cavallino, Galleria Nazionale d’ Arte Antica, Roma.
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