sábado, 2 de janeiro de 2021

Homilia Solenidade Santa Maria Mãe de Deus

Queridos irmãos

Iniciamos mais um ano e uma vez mais colocamos este novo ano, este tempo novo, sob a protecção da Virgem Maria que hoje veneramos com os títulos de Mãe de Deus e Mãe da Igreja.

Antes de mais, é interessante registarmos que este dogma assumido pela Igreja em Concílio é não só o primeiro dogma mariano, mas como virá depois a acontecer com os outros dogmas marianos assumidos na Igreja, uma declaração que é fruto da piedade e devoção do povo cristão, do sentimento dos homens e mulheres que no seu coração perceberam este íntimo mistério. Não foi a hierarquia que impôs ao povo esta verdade de fé, mas foi o povo que a assumiu e solicitou à hierarquia a sua proclamação formal.

Assim, também nós, hoje, nos colocamos sob esta invocação e dinâmica, também nós assumimos que Maria é a Mãe de Deus assim como é a Mãe da Igreja, e sob a sua protecção apresentamos a Deus os nossos propósitos e desejos para este ano de 2021. E ao fazê-lo não podemos perder de vista o que foi o ano de 2020, o que vivemos e o que sentimos, a carga e a experiência que levamos para estes novos tempos.

Neste sentido, temos de fazer o mesmo que Maria fazia, que Maria fez durante toda a sua vida, e que a leitura do Evangelho de São Lucas que escutámos nos faz eco. Maria conservava todos os acontecimentos e meditava neles no seu coração.

Com o desejo de nos libertarmos da experiência de limitação e fragilidade que vivemos em 2020, com o desejo de nos libertarmos dos confinamentos e recuperarmos a nossa normalidade e liberdade, corremos o risco de não fazer memória, de perdermos esta experiência, certamente dolorosa, cansativa e desgastante, mas também bastante instrutiva do que somos e como somos chamados a viver.

Tal como Maria fazia, o que guardamos deste tempo que nos foi dado viver, das experiências que fizemos? E mais ainda, o que guardamos no coração, pois era aí que Maria guardava e meditava todos os acontecimentos. Podemos fazer memória, quase me atreveria a dizer que podemos guardar os acontecimentos no disco externo, mas será que aí essa memória configura a nossa realidade, reconfigura o que somos depois do que vivemos? Não será necessário uma actualização o sistema operativo? Uma actualização de nós próprios e das nossas prioridades?

Tal como a Virgem Maria, somos desafiados a guardar estes últimos acontecimentos no nosso coração, a fazer deles parte integrante da nossa história e a meditar neles no nosso coração, uma meditação que não pode ser envergonhada nem temerosa, mas audaz e confiante, uma meditação que parte dos princípios que nos devem reger e nos são apresentados nas leituras do Livro dos Números e na Carta de São Paulo aos Gálatas.

Antes de mais, devemos ter sempre presente que Deus nos libertou e nos fez seus filhos adoptivos e, portanto, já não somos escravos, mas filhos, homens livres, herdeiros da vida divina. A nossa vida, a sua plena realização, depende da dignidade que colocarmos naquilo que fazemos e procuramos ser, nesta condição e estatuto de filhos de Deus, colaboradores activos da obra de Deus, na criação e na redenção. Como filhos de Deus estamos convocados a cuidar a nossa casa comum, o mundo como o conhecemos na sua beleza e grandeza e que queremos legar às gerações futuras, para que também elas possam apreciar a obra de Deus e louvar o seu criador na diversidade das suas criaturas.

Depois, e como participantes na obra de redenção, não devemos esquecer que somos um povo de bênção, chamados a abençoar os nossos irmãos, homens e mulheres que partilham a nossa vida. E, como nos recordava nestes últimos dias o Papa Francisco, esta nossa missão não exige grandes e difíceis tarefas, mas passa por coisas tão simples como um “obrigado”, ou um “por favor”, uma atenção ao outro que está diante de nós e que podemos abençoar na nossa ternura, no nosso carinho, no minuto que atenção que lhe dispensamos.

Os acontecimentos de confinamento do ano transato mostraram-nos como somos frágeis, mas sobretudo, mostraram-nos como somos dependentes uns dos outros, como um gesto de cuidado e prudência, pode fazer toda a diferença entre a vida e a morte, como uma palavra de carinho partilhada pode ser mais vivificante que um complexo vitamínico.

Ao iniciarmos este novo ano, que a nossa humanidade ferida seja um impulso a estarmos mais atentos uns aos outros, que os confinamentos e as limitações de circulação sejam um alerta para o cuidado a ter com a nossa liberdade e a responsabilidade que lhe está inerente, que as privações que tivemos em festejos nos ajudem a olhar o essencial, o quão tão pouco necessitamos para viver e ser felizes com os outros.

Que a Virgem Maria Mãe de Deus, juntamente com São José, que nos foi proposto pelo Papa Francisco como modelo para estes tempos de precaridade e incerteza, nos iluminem e ajudem a guardar e meditar em nossos corações os acontecimentos dos tempos presentes sempre certos da proteção de Deus como eles o foram.

Ilustração:

1 – Virgem Maria com o Menino, de Charles-André van Loo, Museu de Belas Artes de Rouen.

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