Queridos irmãos
Iniciamos mais um ano e uma vez mais colocamos
este novo ano, este tempo novo, sob a protecção da Virgem Maria que hoje
veneramos com os títulos de Mãe de Deus e Mãe da Igreja.
Antes de mais, é interessante
registarmos que este dogma assumido pela Igreja em Concílio é não só o primeiro
dogma mariano, mas como virá depois a acontecer com os outros dogmas marianos
assumidos na Igreja, uma declaração que é fruto da piedade e devoção do povo
cristão, do sentimento dos homens e mulheres que no seu coração perceberam este
íntimo mistério. Não foi a hierarquia que impôs ao povo esta verdade de fé, mas
foi o povo que a assumiu e solicitou à hierarquia a sua proclamação formal.
Assim, também nós, hoje, nos
colocamos sob esta invocação e dinâmica, também nós assumimos que Maria é a Mãe
de Deus assim como é a Mãe da Igreja, e sob a sua protecção apresentamos a Deus
os nossos propósitos e desejos para este ano de 2021. E ao fazê-lo não podemos
perder de vista o que foi o ano de 2020, o que vivemos e o que sentimos, a
carga e a experiência que levamos para estes novos tempos.
Neste sentido, temos de fazer o mesmo
que Maria fazia, que Maria fez durante toda a sua vida, e que a leitura do
Evangelho de São Lucas que escutámos nos faz eco. Maria conservava todos os
acontecimentos e meditava neles no seu coração.
Com o desejo de nos libertarmos da
experiência de limitação e fragilidade que vivemos em 2020, com o desejo de nos
libertarmos dos confinamentos e recuperarmos a nossa normalidade e liberdade, corremos
o risco de não fazer memória, de perdermos esta experiência, certamente
dolorosa, cansativa e desgastante, mas também bastante instrutiva do que somos
e como somos chamados a viver.
Tal como Maria fazia, o que guardamos
deste tempo que nos foi dado viver, das experiências que fizemos? E mais ainda,
o que guardamos no coração, pois era aí que Maria guardava e meditava todos os
acontecimentos. Podemos fazer memória, quase me atreveria a dizer que podemos
guardar os acontecimentos no disco externo, mas será que aí essa memória
configura a nossa realidade, reconfigura o que somos depois do que vivemos? Não
será necessário uma actualização o sistema operativo? Uma actualização de nós
próprios e das nossas prioridades?
Tal como a Virgem Maria, somos desafiados
a guardar estes últimos acontecimentos no nosso coração, a fazer deles parte
integrante da nossa história e a meditar neles no nosso coração, uma meditação
que não pode ser envergonhada nem temerosa, mas audaz e confiante, uma
meditação que parte dos princípios que nos devem reger e nos são apresentados
nas leituras do Livro dos Números e na Carta de São Paulo aos Gálatas.
Antes de mais, devemos ter sempre
presente que Deus nos libertou e nos fez seus filhos adoptivos e, portanto, já
não somos escravos, mas filhos, homens livres, herdeiros da vida divina. A nossa
vida, a sua plena realização, depende da dignidade que colocarmos naquilo que
fazemos e procuramos ser, nesta condição e estatuto de filhos de Deus,
colaboradores activos da obra de Deus, na criação e na redenção. Como filhos de
Deus estamos convocados a cuidar a nossa casa comum, o mundo como o conhecemos
na sua beleza e grandeza e que queremos legar às gerações futuras, para que
também elas possam apreciar a obra de Deus e louvar o seu criador na diversidade
das suas criaturas.
Depois, e como participantes na obra
de redenção, não devemos esquecer que somos um povo de bênção, chamados a abençoar
os nossos irmãos, homens e mulheres que partilham a nossa vida. E, como nos
recordava nestes últimos dias o Papa Francisco, esta nossa missão não exige
grandes e difíceis tarefas, mas passa por coisas tão simples como um “obrigado”,
ou um “por favor”, uma atenção ao outro que está diante de nós e que podemos
abençoar na nossa ternura, no nosso carinho, no minuto que atenção que lhe
dispensamos.
Os acontecimentos de confinamento do
ano transato mostraram-nos como somos frágeis, mas sobretudo, mostraram-nos
como somos dependentes uns dos outros, como um gesto de cuidado e prudência, pode
fazer toda a diferença entre a vida e a morte, como uma palavra de carinho
partilhada pode ser mais vivificante que um complexo vitamínico.
Ao iniciarmos este novo ano, que a
nossa humanidade ferida seja um impulso a estarmos mais atentos uns aos outros,
que os confinamentos e as limitações de circulação sejam um alerta para o
cuidado a ter com a nossa liberdade e a responsabilidade que lhe está inerente,
que as privações que tivemos em festejos nos ajudem a olhar o essencial, o quão
tão pouco necessitamos para viver e ser felizes com os outros.
Que a Virgem Maria Mãe de Deus, juntamente com São José, que nos foi proposto pelo Papa Francisco como modelo para estes tempos de precaridade e incerteza, nos iluminem e ajudem a guardar e meditar em nossos corações os acontecimentos dos tempos presentes sempre certos da proteção de Deus como eles o foram.
Ilustração:
1 – Virgem Maria com o Menino, de Charles-André van Loo, Museu de Belas Artes de Rouen.
Sem comentários:
Enviar um comentário