Após as leituras deste
Domingo da Sagrada Família não podemos deixar de assumir e afirmar publicamente
que elas nos atingiram, nos provocaram a cada um de nós na sua situação
particular. Por muito que tenhamos estado distraídos as recomendações de que a mulher
deve ser submissa ao marido, que os filhos devem respeitar os pais, e os
maridos devem cuidar as esposas, não nos passaram despercebidas e podemos até imaginar
que em algumas refeições de família estas recomendações e os textos bíblicos que
as comportam serão objecto de debate.
Este é certamente um
dos domingos no qual as leituras mais nos despertam, uma vez que todos nos
situamos numa realidade referida, ou somos pais, ou somos filhos, ou somos
esposos. Não existimos sem uma relação familiar e quando ela é colocada em
questão, teoricamente ou de forma prática, é inevitável que nos sintamos
implicados, questionados, provocados.
Neste sentido é bom
ter presente que as três leituras mantêm um vínculo muito estreito entre si,
mostrando-nos que a família é mais que uma realidade sociológica ou antropológica,
que é mais que a célula base da sociedade. À luz das leituras que escutámos a família
é uma experiência do dom de Deus, é uma realidade divina.
A leitura do Livro de Ben-Sira
desafia-nos na forma como vivemos e experimentamos a misericórdia divina,
mostrando-nos que a misericórdia e a compaixão pelos mais velhos através do
perdão é a forma de nos prepararmos para a experiência da própria misericórdia
e compaixão divina, para o perdão de Deus. É o amor ao próximo, a capacidade de
lhe perdoar as suas faltas, de o desculpar dos seus erros, que nos abre e dá a
experiência para podermos perceber e acolher o perdão de Deus.
Para Ben-Sira necessitamos
aprender a ser filhos e a ser pais para compreender o amor de Deus, para o
perceber, acolher e traduzir, e essa aprendizagem só é possível na família que
se respeita e ama, que vive na justiça as liberdades e responsabilidades de
cada um.
A leitura da Carta de
São Paulo aos Colossenses aprofunda as ideias do sábio Ben-Sira e mostra-nos
que as relações familiares e as suas exigências não podem deixar de ter como
modelo a própria realidade divina, as três pessoas da Santíssima Trindade.
Neste contexto São
Paulo coloca um forte acento na necessidade do perdão como realidade que traduz
não só as pessoas divinas, a própria acção de Deus na história do homem, mas
também o verdadeiro amor. Quem ama é capaz de perdoar, é capaz de compreender
os erros do outro e passar adiante.
O episódio da fuga da
Sagrada Família para o Egipto, que nos foi relatado pelo Evangelho de São
Mateus, mostra-nos como o dom de Deus é o fundamento constituinte da família e
pode muitas vezes levar a situações imprevisíveis, insuspeitadas, como
aconteceu com José.
É um episódio que uma
vez mais nos vem confirmar que a vida da Sagrada Família de Nazaré não foi
fácil, teve os seus percalços e contratempos. Mas é também um episódio que
estranhamente se centra sobre José, cujo personagem principal é José, e no qual
Maria e Jesus nos aparecem apenas com a mãe e o menino.
Tal acontece porque
estamos face a alguém a quem foi oferecida uma outra realidade familiar
diferente da habitual, da antropologicamente comum. José constitui uma família
a partir do dom do Filho de Deus, do acolhimento do dom de Deus, abdicando dos
seus projectos familiares e da sua paternidade biológica.
A partir deste
acolhimento as suas relações familiares são um puro dom, um dom total, quer a
Maria quer a Jesus, desaparecendo assim a pretensão patriarcal de propriedade
ou paternidade. A partir deste dom percebe-se a responsabilidade de José bem como
o seu silêncio obediente. Para José nada mais havia a fazer ou a dizer para
além de salvaguardar a integridade do menino, do dom confiado por Deus à sua
vida como homem, como esposo e como pai.
Festejar a Sagrada Família
é assim uma forma de percebermos o dom que somos convidados a acolher, a
misericórdia e o amor de Deus que somos convidados a partilhar e a traduzir na
nossa realidade, a disposição que nos é solicitada de nada querer para nós mas de
tudo consagrar a Deus.
Este desafio não se
confina contudo apenas à família, à dimensão familiar. Convidados a constituir
uma grande família através da humanidade, somos responsáveis pela vivência
destes mesmos valores e realidades nas nossas outras relações. De facto, o
outro é sempre princípio e fim da minha realização, o outro é sempre um dom de
Deus que é oferecido ao nosso acolhimento.
Saibamos pois ultrapassar
os limites das nossas relações familiares e com a graça do Espirito Santo e à
imagem de Jesus constituir uma outra família, fundada no dom que Deus nos faz
do outro que é nosso irmão.
Frei José Carlos,
ResponderEliminarGrata,pela Homilia da Festa da Sagrada Família.Gostei muito.Pelas palavras tão profundas partilhadas e pela sua bela ilustração.Bem-haja,Frei José Carlos.Boa tarde e um bom descanso.
Um abraço fraterno.
AD
Caro Frei José Carlos,
ResponderEliminarAo festejarmos a Festa da Sagrada Família, como nos afirma, as leituras deste Domingo …”atingiram, provocaram a cada um de nós na sua situação particular”. E, se alguma discordância podemos manifestar com alguma afirmação que deve ser analisada à luz do contexto histórico em que se situa (Leitura II), as mesmas revelam-se de grande relevância na actualidade, face a novos modos de relação familiar, às alterações manifestadas nas relaçõs entre pais e filhos(as), à longevidade dos pais, à vida em comum de filhos em idade adulta com os pais, independentemente das razões que motivam tais situações.
Permita-me que respigue alguns excertos do texto da Homilia que teceu e que tocam particularmente … “Festejar a Sagrada Família é assim uma forma de percebermos o dom que somos convidados a acolher, a misericórdia e o amor de Deus que somos convidados a partilhar e a traduzir na nossa realidade, a disposição que nos é solicitada de nada querer para nós mas de tudo consagrar a Deus.
Este desafio não se confina contudo apenas à família, à dimensão familiar. Convidados a constituir uma grande família através da humanidade, somos responsáveis pela vivência destes mesmos valores e realidades nas nossas outras relações. De facto, o outro é sempre princípio e fim da minha realização, o outro é sempre um dom de Deus que é oferecido ao nosso acolhimento.”…
Grata, Frei José Carlos, pela partilha da Homília, profunda, que nos questiona e desafia, pela ilustração. Bem-haja. Que o Senhor o abençoe e o proteja.
Desejo que tenha tido um bom domingo e votos de uma boa semana, com paz, alegria, confiança e esperança.
Um abraço fraterno e amigo,
Maria José Silva