A leitura da Segunda Carta
de São Paulo aos Coríntios que escutámos terminava com as palavras, este é o
tempo favorável, este é o dia da salvação. Ao iniciarmos a Quaresma nesta
Quarta-Feira de Cinzas temos que assumir que este é também para nós o tempo
favorável, um tempo propício a fazermos caminho ao encontro da Salvação.
Para nos ajudar a
fazer este caminho a Igreja oferece-nos, a partir das palavras de Jesus no
Evangelho de São Mateus, um conjunto de exercícios ou obras, como são a esmola,
a oração e o jejum, para mais facilmente caminharmos em direcção à meta.
Para muitos são um
sacrifício, exigem um esforço suplementar, uma disposição que parece ir em
sentido contrário do que nos parece normal, um confronto duro e doloroso com
aquilo que nos satisfaz e que nos é gratificante.
Contudo, temos que
assumir que Jesus não nos pede nada que esteja para além das nossas forças,
alguma coisa que se oponha à nossa realização. Assim sendo, a esmola, a oração
e o jejum são movimentos de vida, são actividades que deviam fazer parte da nossa
vida, do nosso quotidiano.
A Igreja ao propô-las
na Quaresma cumpre o seu papel de mestra e sábia, pois oferece-nos um período,
que poderíamos dizer experimental, para percebermos como são importantes e até
inerentes à nossa própria condição humana estas actividades e movimentos.
A esmola como
movimento interior, profundamente humano, descentra-nos de nós próprios,
faz-nos olhar para o outro que pode estar mais próximo ou mais longe mas que compõe
também a minha existência. Eu não sou sem o outro, o outro faz-me e eu faço o
outro com aquilo que partilho com ele.
Podemos assumir a
esmola como uma oferta pecuniária, uma partilha de bens, mas ao assumi-la como
um movimento interior, humano, a esmola é uma entrega de mim ao outro, é uma
disposição de complementaridade, de fraternidade. A esmola humana é a partilha
de mim, do meu tempo, da minha palavra, do meu afecto, do meu interesse. Nestas
condições a minha esmola torna-se mais que humana, torna-se divina, pois vivo o
mesmo movimento de entrega de Deus ao fazer-se homem como nós.
A oração como
movimento interior, actividade humana, obriga-me a olhar a minha finitude mas
igualmente a beleza e a grandeza da obra da criação. Na oração eu existo para
um Outro que é meu criador e meu redentor, que me fez semelhante a si e por
amor se fez semelhante a mim, menos no pecado, para me poder devolver à marca indelével
do seu amor eterno.
Na oração como
movimento interior humano não cumprimos preceitos nem realizamos ritos, ainda
que eles estejam presentes como marcos para não nos desviarmos do centro, mas
vivemos na luz e na força que nos move a buscar uma perfeição, uma plenitude,
que sentimos existir e à qual pertencemos. Como diz Santa Catarina de Sena,
mergulhamos num oceano que nos apela a mergulhar cada vez mais fundo.
O jejum, como
actividade profunda do ser humano, conduz-nos à relativização das nossas
necessidades, dos nossos afectos e satisfações. O jejum mostra-nos o quanto
verdadeiramente temos necessidade, como afinal é tão pouco o que nos alcança a
felicidade, que não depende do conjunto dos bens mas da alegria que nos provoca
o que possuímos. No jejum faço a experiência da minha finitude, da minha
pobreza existencial enquanto dependente de factores externos de subsistência,
mas também da riqueza existencial enquanto me relaciono com os outros.
Por isso, e tal como
nos alertava o Papa Francisco, o jejum que mais necessitamos não é o jejum de
bens materiais, mas o jejum e a abstinência das palavras que podem ferir o
outro, que não o deixam crescer e desenvolver, realizar-se em plenitude, o
jejum de palavras que não nos dignificam, que nascem do nosso coração para humilhar
e escravizar o outro. Afinal e como nos diz Jesus, não é o que entra pela boca
do homem que o contamina, mas o que sai e nasce do coração com maus desejos.
Querendo lançar-nos
nesta caminhada quaresmal, assumindo estes movimentos naturalmente, não podemos
deixar de ter presentes duas realidades que nos são apontadas por São Paulo e
pelo profeta Joel.
A realidade apontada
por São Paulo prende-se com a iniciativa de Deus, com a reconciliação que Deus
operou com todos os homens e mulheres e que portanto nos solicita um
acolhimento sincero, franco, sem temor. As nossas obras, a nossa disposição para
a conversão, são um caminhar ao encontro do que Deus nos oferece, do que já
realizou por nós em Jesus Cristo seu Filho. Esta iniciativa divina deve assim
animar-nos na confiança, no esforço exigido pelos movimentos.
Ânimo e confiança que
são reforçados pelas palavras do profeta Joel, pois tal como ele diz ao povo de
Israel, Deus pode deixar atrás de si uma bênção. Para o profeta, a conversão do
povo, o acolhimento da clemência e compaixão de Deus acarreta consigo uma bênção
divina, que não podemos deixar de agradecer.
A nossa caminhada Quaresmal
no esforço e na confiança que lhe colocarmos, nas obras de conversão e encontro
que realizarmos, vai ser uma experiência de graça, uma bênção de Deus. Procuremos
pois ir confiantes, e ainda que em qualquer momento a caminhada se torne mais
dura e árida, que caiamos na rotina e no desalento, não deixemos de acreditar
que a bênção do Senhor nos precede e nos segue, é nela que nos movemos desde
sempre.
Ilustração:
1 – “O jovem rico”, de Heinrich Hoffman, Riverside Church, New York.2 – “Cristo no jardim das oliveiras”, de Heinrich Hoffman, Riverside Church. New York
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