A leitura do Evangelho
de São Marcos que escutámos apresenta-nos aquilo que poderíamos chamar o “debutar”
de Jesus, o primeiro acontecimento com impacto público da vida e missão de
Jesus, a cura do homem com um espirito impuro na sinagoga de Cafarnaum.
Estamos no primeiro
capítulo do Evangelho de São Marcos e se o compararmos com os outros Evangelhos
Sinópticos ficamos com a sensação que o autor tem pressa, que há nele um desejo
tremendo de síntese, e assim retirou da narração outros factos que tanto o
Evangelho de Mateus como o de Lucas nos apresentam projectando dessa forma esta
jornada de Cafarnaum para capítulos posteriores.
Tal facto, rapidez
sintética, deve-se ao público para o qual São Marcos escreve, o público romano
habituado aos tratados de direito e à história, à oratória pública, e ao qual é
necessário apresentar aquele que fala com autoridade, aquele Jesus que não é
mais um comentador de tratados, mais um escriba, mas alguém que tem poder de
palavra e cujos milagres, cujos gestos, confirmam esse mesmo poder de palavra.
E assim, para
confirmar esse poder de palavra, essa autoridade que os romanos são chamados
também a reconhecer, São Marcos apresenta-nos o homem possuído de um espirito
impuro que é libertado por Jesus, pela sua autoridade expressa em palavras que
agem, que transformam.
Hoje, para cada um de
nós, esta mesma necessidade de reconhecimento mantém-se válida e assim somos
chamados por Deus e na nossa procura de fidelidade a escutar a Palavra feita
carne, a escutar Jesus, a perceber o seu poder, a acolher o seu poder
transformante da nossa vida, a sua dinâmica libertadora daquelas realidades que
nos afastam do projecto de Deus e inviabilizam a nossa plenitude humana.
Contudo, esta palavra transformante,
libertadora, pode gerar o medo, pode colocar-nos na mesma situação daquele
espirito impuro que interpela Jesus na certeza de que algo se vai perder,
alguma coisa vai sofrer uma conversão. Afinal de contas, é esta uma das
experiências mais básicas do homem, o sentimento de medo face ao desconhecido,
face à novidade, face à perda de poder e controlo.
Algumas vezes face à
interpelação de Deus, ao convite a uma vida nova, ao seguimento do seu Filho,
também nós sentimos medo, pois percebemos que enveredamos por uma nova vida que
não sabemos onde nos levará, que nos desinstalará do que conhecemos e damos por
garantido, que nos exige algo mais do que estamos habituados a dar. E sabemos
como damos muito pouco! Se das nossas capacidades físicas utilizamos pouco mais
de dez por cento, que poderemos dizer das nossas capacidades espirituais?
Mas é face a este medo
que Jesus se nos apresenta como a luz e a verdade, a fortaleza e o refúgio
seguro, como a autoridade por natureza, para que não temamos a novidade radical
do projecto de Deus, a conversão que nos é solicitada e está ao nosso alcance,
à mão das nossas capacidades.
Jesus apresenta-se com
autoridade para o nosso próprio interesse, como diz São Paulo na Carta aos
Coríntios, não é para nos perdermos nem para nos armar uma cilada, bem pelo
contrário, é para que vivamos em segurança, em liberdade, num justo equilíbrio entre
aquilo que são as nossas preocupações do mundo e a necessidade urgente de
centrarmos a nossa vida em Cristo Jesus.
E hoje em dia, face a
tantas solicitações do mundo, a tanta preocupação com os filhos, com o
trabalho, com a sustentabilidade da família, é necessário que não nos deixemos
vencer pelo medo, mas bem pelo contrário que nos fortaleçamos com um espirito
de optimismo, de confiança, não perdendo o norte de que tudo o que fazemos deve
estar orientado para Deus e por Deus, para a nossa plena realização como homens
e mulheres e filhos de Deus.
Não temais é o grande
convite de Jesus nas aparições após a ressurreição e continua a ser o convite
que nos é feito hoje. O medo impede-nos de caminhar, de nos equilibrarmos, de
nos abrirmos à novidade do Reino de Deus, à transformação da nossa vida. Face a
esse medo, não podemos deixar de rezar reutilizando as palavras do espirito
impuro: Senhor, eu sei quem tu és, o Santo de Deus, tens tudo a ver connosco,
porque te fizeste um de nós em Jesus de Nazaré, faz-nos viver na graça da
salvação que nos alcançaste.
1 – O Exorcismo, Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Musée Condé, Chantilly.
2 – Jesus abençoando o mundo, Les Très Riches Heures du Duc de Berry, Musée Condé, Chantilly.
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