A leitura do Evangelho
que escutámos continua a narrar a primeira jornada de Jesus em Cafarnaum, uma
jornada de sábado que nos faz um síntese da vida e da missão de Jesus, que nos
ajuda a encontrar uma resposta para a questão do mal e do sofrimento que a
primeira leitura, do Livro de Job, nos coloca como inevitável.
Job é um homem justo,
mas que perde tudo, desde as propriedades à família, inclusive a própria saúde,
restando-lhe apenas a vida dolorosa de sofrimento. Numa tentativa de conforto e
justificação da desgraça, os amigos procuram despertar nele uma culpa, qualquer
atitude que pudesse ter provocado aquele desaire.
Contudo, Job não
encontra esse erro, essa falha que podia ter provocado a punição pela parte de
Deus. Bem pelo contrário, recusa-se mesmo a acolher essa ideia de um Deus
vingativo, de um Deus castigador, há nele uma esperança infinita em Deus que
olha a vida e a reconhece como um sopro e a ama nessa mesma fragilidade e
finitude.
O Livro de Job é assim
uma resposta e uma contestação a essa ideia tantas vezes difundida de que Deus
se vinga, de que Deus cobra os nossos erros e as nossas faltas, como se de um
ser sádico se tratasse, como se satisfizesse com a dor e o sofrimento, com a
infelicidade da sua obra.
Outra questão que o
sofrimento nos levanta, e que marcou os intelectuais da primeira metade do
século vinte e a literatura russa do século dezanove, de que os Irmãos Karamazov
são um testemunho, é a da inacção de Deus face ao mal e ao sofrimento. Albert
Camus, que escreveu o romance “A Peste”, coloca essa questão de forma premente,
afinal que Deus é este que se esquece e não olha aqueles que sofrem.
A questão de Camus foi
colocada directamente ao teólogo e filósofo suíço Maurice Zundel, que lhe
respondeu da forma mais surpreendente e sublime que podemos imaginar. Em
qualquer sofrimento humano Deus é o primeiro a sofrer, Deus sofre com o homem e
pelo homem, sofre antes do homem e depois do homem. E para que Albert Camus
compreendesse a dimensão da sua ideia, Zundel apresentou-lhe a imagem da mãe
que sofre pelo seu filho, tanto ou mais que o próprio filho.
O místico suíço faz
eco de uma das mais belas expressões proféticas que podemos encontrar na
Sagrada Escritura, se uma mãe não pode esquecer o fruto das suas entranhas,
muito menos Deus pode esquecer os seus filhos, o fruto das suas entranhas de
amor. E o amor materno, no que tem de mais sublime, é uma pálida imagem do amor
divino, amor que foi capaz de se entregar a si próprio no Filho para resgatar
aqueles pelos quais ninguém era capaz de dar alguma coisa, que foi capaz de se
fazer pecado para nos libertar do pecado.
Deus é assim a
primeira vitima do mal e do sofrimento, é o primeiro que sofre, porque na sua
obra mais perfeita, na obra criada à sua imagem e semelhança, vê acontecer o
mal e a degradação, vê o sofrimento e a dor, vê a morte. É a contingência da
criação, a limitação estrutural da obra, é a fragilidade inata, uma obra
grandiosa e feita para a plenitude mas que pode sucumbir a um terramoto ou a
uma simples virose.
E porque o desespero
do homem podia ser muito grande, tal como diz Dostoievsky o sofrimento pode ser
insuportável, Deus veio até ao homem, fez-se um de nós para nos libertar do
medo, para nos dizer que não estamos sós nesta travessia de deserto, do
sofrimento e da dor, da morte. O gesto de Jesus para com a sogra de Pedro é a
metáfora desta presença e acção de Deus junto de todos nós, ele vem ao nosso
encontro, estende-nos a mão para nos curar do medo, da paralisia face ao mal e
à dor, Deus ergue-nos amorosamente para que sejamos testemunho, sinal de uma
outra presença, de uma outra vida.
Todos nós temos ainda
presentes as imagens dos últimos meses de vida do Papa e hoje Santo João Paulo
II, da sua doença debilitante e transfigurante; e contudo, naquela fragilidade,
aquele homem era um sinal, um apelo à luta pela vida, e certamente muitos
homens e mulheres continuaram a lutar pela vida ao vê-lo naquela fragilidade,
foram serviço de vida para outros homens e mulheres.
Tal como dizia São
Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, fez-se fraco para ganhar os fracos, para
não permitir que caíssem no desalento. O mistério da encarnação de Jesus, a sua
paixão e morte, o fazer-se homem como nós, foi para nos ganhar para a vida,
para que não desesperássemos da vida que é mais que o nosso corpo ou a nossa
saúde.
Esta consciência, poderíamos
dizer o fruto da conversão e do combate, não é contudo fácil, pois não só nos
sabemos feitos para a plenitude, e portanto é-nos difícil acolher e aceitar a
finitude e a fragilidade da nossa condição corpórea, como também muitas vezes
adulamos a nossa condição física, vivemos como se fossemos eternos na nossa
juventude e capacidades.
Para podermos dar a
resposta de Jesus, face à tentação aduladora expressa nas palavras de Pedro de
que todos andavam à sua procura, “vamos a outros lugares pois foi para isso que
eu vim”, também nós necessitamos recolher-nos do mundo, afastar-nos e entrar em
diálogo com Deus Pai, perceber no silêncio da intimidade e do amor de Deus a
nossa finitude, as nossas fraquezas e limitações, mas como apesar disso a nossa
vida está chamada a ser um sinal de algo mais elevado, de uma outra realidade
que é eterna.
Que a Virgem Maria,
Maria Madalena e o discípulo amado nos acompanhem sempre na cruz do nosso sofrimento,
na qual Jesus está crucificado connosco.
1 – Job, de Jan Lievens, National Gallery of Canada.
2 – Jesus curando a sogra de Pedro, desenho de Rembrandt, Fondation Custodia, Paris.
Sem comentários:
Enviar um comentário