Caríssimos irmãos
A escritora e filósofa
Hannah Arendt escreveu um dia ao seu mestre e amigo Karl Jaspers que o
essencial da sua fé assentava no imprevisível.
Nesta manhã de Páscoa
da ressurreição de Jesus este é certamente um dado, uma verdade que nos pode
ajudar, não só a viver este mistério da ressurreição, o momento em que nos
encontramos historicamente, mas a perspectivar toda a nossa vida. O
imprevisível!
Maria Madalena
desloca-se ao túmulo de Jesus para prestar ao corpo defunto os cuidados que o
sábado da Páscoa não tinha permitido. Ela cumpre o seu dever de mulher, realiza
essa necessidade que todos temos de superar a dor da perda: Maria Madalena
prontifica-se a viver o que chamamos o luto.
O luto, a perda de alguém
que amamos é algo que podemos dizer impensável, aquele que conhecemos,
expressivo na sua forma de ser, movendo-se ao nosso redor como numa dança,
aquele que nos dirigia a palavra e nos ajudava a ser pessoa, que fazia de nós uma
pessoa única na relação com ele, não está mais presente, não dança mais, não
responde nem nos dirige a palavra. Vivemos como que uma espécie de deserção que
nos deixa incrivelmente sós. Como tantos dos nossos irmãos já experimentaram, o
porto de abrigo, o porto seguro onde nos podemos recolher, desapareceu. E que
vazio nos deixa.
Inacreditavelmente,
são necessários vários anos para deixar de ouvir a voz, deixar de sentir a
presença, o perfume ao virar da esquina, a sua silhueta que parece se passeia
nos espaços que conhecemos e frequentámos juntos, a dor da perda ainda que
suavizada não desaparece, e por vezes até aumenta.
Contudo, e apesar de
destes sentimentos, desta dor, deste vazio preenchido por memórias é necessário
fazer o luto; necessitamos, para continuar a viver, aceitar a fatalidade, o inevitável.
É o que faz Maria Madalena na manhã de Páscoa. Apesar das suas memórias, dos
seus pensamentos, dos desejos de ver Jesus ao virar de uma esquina de uma rua qualquer
de Jerusalém, ela vai ao encontro do perdido, daquele que não está mais
presente nem palpável.
O encontro com a pedra
rolada, com o sepulcro aberto faz com que a imaginação de Maria Madalena galope
para aquilo que é um cenário de profanação. E é essa realidade que ela corre a
anunciar aos discípulos, “levaram o Senhor e não sabemos onde o colocaram”.
Maria Madalena não
imagina o inimaginável, ela não realiza o que aconteceu, vai fazê-lo mais tarde,
vai dar-se conta que ao impensável da morte, ao imprevisível da morte, sucede
outro impensável, outra realidade imprevisível, Jesus ressuscitou.
A nossa vida, a vida
de todos os dias, mostra-nos como essa mesma vida é capaz de mudar os nossos planos,
como abala o que sonhamos, o que procuramos construir, os nossos projectos tão
bem delineados. A situação de isolamento que vivemos é disso a maior testemunha
e também o maior desafio. Quem pode dizer que viveu a sua vida sem que lhe
tenha sucedido qualquer coisa de imprevisto? Como dizia John Lennon, e
encontramos em citação nas redes sociais, “a vida é aquilo que nos chega, que
nos acontece, quando estamos ocupados a elaborar outros planos para ela”.
Maria Madalena corre a
anunciar o que lhe é dado experimentar, o que apenas pode pensar, e no fundo ela
não diz mais que a verdade, “levaram o Senhor e não sabemos onde o colocaram”. Mas
esta afirmação, esta verdade é para nós um conforto, é uma esperança, uma luz,
pois permite-nos fazer a experiência de não sabermos antecipadamente onde o
Senhor se encontra. Ele não está dado como garantido, teremos de o procurar nos
lugares mais recônditos, no jardim, junto do jardineiro como Maria Madalena
faz, temos de o procurar e de o ver no imprevisível e no insuspeito, no inimaginável.
Celebrar a Páscoa da ressurreição
de Jesus é dispor-nos assim a uma busca, a um processo, a uma vida nova, a uma
aspiração de outros valores, insondáveis, imperceptíveis por vezes, é acreditar no
impensável que Ele vai à nossa frente e nos pede que o procuremos nos terrenos
dos túmulos vazios, nas margens do lago da Galileia onde ele virá sempre ao
nosso encontro, onde se encontrará sempre um passo à nossa frente para nos
servir a refeição e nos ajudar a fazer as melhores opções quando lançamos a
rede para a pesca.
Que o nosso coração,
como o coração de Maria Madalena, não tenha medo do que vê. Que corramos também
a anunciar que o Senhor vai à nossa frente. Procuremos confinar nele, no imprevisível
e insuspeito da nossa vida. Que o nosso coração e o nosso espírito encontrem e
percebam a luz que Ele nos revela ressuscitado.
Ilustração:
1 – A lamentação de
Cristo, de Andrey Mironov.
2 – Maria Madalena junto
ao sepulcro, de Henry Le Jeune, Christie’s, Leilão 5879, Fevereiro 2009.
Viver estes dias de Páscoa , tão diferentes, tem mesmo que ser confiar no imaginável, no não visto, percorrer um caminho novo e impensável, centrados apenas na luz do Cristo Ressuscitado.
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