Caríssimos Irmãos
O Evangelho de São
Lucas que escutámos neste domingo apresentava-nos o acontecimento de Emaús, o
encontro de Jesus com os dois discípulos que se afastam de Jerusalém, após o
que, no entendimento deles, tinha sido um desaire, um fiasco, face às
expectativas. E ainda que soubessem já da situação do túmulo vazio, a verdade é
que a incompreensão os dominava, a novidade era como uma espécie de rumor que
não os convencia. Eles não tinham visto nada.
Podemos dizer que
estes dois homens são a imagem de cada um de nós, dos discípulos de Jesus de
hoje e de todos os tempos. Também nós nos encontramos em caminho, em processo,
e os rumores da Boa Nova da ressurreição soam-nos distantes, incompreensíveis; temos
a novidade revolucionária dos Evangelhos, mas temos também as histórias e
situações pouco dignas e incoerentes da Igreja e de muitos cristãos, um ruidoso
cenário que nos perturba.
Contudo, é a estes discípulos
em luto, que neste caminho se afastam da novidade incompreensível, que
necessitam falar dos acontecimentos para expressar a sua decepção e frustração,
que Jesus se faz presente, que Jesus se aproxima de uma forma delicada, como um
ignorante dos acontecimentos, permitindo dessa forma uma plena expressão da mágoa
e frustração, da dor da desilusão.
Durante duas horas de
caminho e conversa, os discípulos podem apresentar a sua percepção de Jesus,
expressar a sua leitura dos acontecimentos, fazer, como Pedro no discurso que
escutámos na primeira leitura, a afirmação dos dados que acreditam Jesus como
um profeta poderoso em palavras e obras.
A esta leitura e
percepção, Jesus contrapõe, como nos diz a narração, a história da sua missão,
recorda as suas palavras e gestos, o anúncio que tinha feito de como tudo tinha
de se cumprir da forma como tinha acontecido. Desde o primeiro anúncio, antes
da transfiguração no monte Tabor, que a paixão e a morte não tinham a última
palavra, havia sempre a ressurreição no momento seguinte. Como era possível que
não o tivessem compreendido, que ainda não o compreendessem?
É de facto
surpreendente que, mesmo após as explicações dadas por Jesus, os olhos dos discípulos
continuassem fechados ao seu reconhecimento; no entanto, podemos compreender
tal cegueira à luz da psicologia, que nos diz que a dor da perda, o sentimento
do impossível, impedem a aceitação e compreensão dos acontecimentos, a
concepção de uma novidade. Num contexto de processo traumático poderíamos dizer
que nos encontramos numa fase de rejeição, apesar das notícias já divulgadas de
algo novo que tinha acontecido.
O reconhecimento vai
acontecer à mesa, com a bênção e o partir do pão, é nesse momento que os discípulos
reconhecem Jesus. É o sinal do pão abençoado e partido que lhes abre os olhos
para a presença daquele que eles não suspeitavam possível de estar vivo.
Podemos dizer que esta
é a missão de Jesus, também uma das dimensões da missão de Jesus, se não mesmo
do próprio Deus na sua história com o homem. Isaías anuncia que o enviado de
Deus virá para dar a vista aos cegos, Paulo perde a vista a caminho de Damasco,
mas vai recuperá-la pela intervenção de Ananias para poder ver a graça e a
misericórdia de Deus. No livro dos Génesis, Agar perdida de dor e mágoa no
deserto é incapaz de ver o poço que está à sua beira, e é Deus que lho revela
quando ela pensa já pôr fim à sua vida. Deus vem ao encontro do homem para lhe
abrir os olhos para a novidade do seu amor, para a sua presença salvadora.
E logo que os olhos
são abertos Jesus desaparece, afinal o sentido e a visão foram alcançados e por
isso não há mais necessidade de presença, resta apenas a missão a que todos são
convocados, de ir anunciar com alegria aos irmãos a verdade da presença
experimentada. E se no caminho de regresso os discípulos partilham um com o
outro o ardor do coração, a alegria sentida, é porque todos necessitamos
enraizar a certeza dessa experiência vivida.
Nos Apotegmas dos
Padres do Deserto encontramos uma história que nos diz que um irmão tinha muita
dificuldade em compreender uma passagem do Evangelho e por isso decide fazer jejum
durante uns tempos para que Deus lhe conceda a graça da compreensão dessa
passagem evangélica. Contudo, nada acontece. Decide assim ir ter com um irmão
mais velho para que ele lhe possa explicar. É ao fazer o caminho para a gruta
do irmão que Deus lhe aparece e lhe fala: Agora que tiveste a humildade de ir
ao encontro do teu irmão podes compreender a passagem da Escritura, agora vais
saber.
A história dos discípulos
de Emaús é assim um convite a perceber que só o encontro com o outro e os
outros nos pode libertar do autismo das nossas dúvidas e decepções, da cegueira
das nossas verdades absolutas, que o mandamento do amor de Jesus se plasma absolutamente
em fazer caminho com o outro, tantas vezes estrangeiro, estranho, desenquadrado
das nossa expectativas.
Peçamos ao Senhor que,
quer sentados à mesa ou quer palmilhando os caminhos, Ele fique sempre connosco
e nos abra os olhos para a sua verdade e o seu amor em cada encontro com os homens
e as mulheres nossos irmãos.
Ilustração:
1 – A Caminho de
Emaús, de Altobelo Melone, National Gallery, Londres.
2 – Os Discípulos de
Emaús, de Eugène Delacroix, Brooklyn Museum, Nova York.
Que o Senhor nos ajude a ver a presença "esclarecedora" dos outros na nossa vida e a aceitar que não estamos sós e temos que fazer caminho com os outros, para entendermos a Luz que Ele nos envia
ResponderEliminarA demasiada tensão impede de fazer silêncio para ouvir o Senhor e deixar que a Sua luz nos ilumine. Jesus...o eterno ausente sempre presente quando O acolhemos para O ouvir. Inter Pars
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