domingo, 26 de abril de 2020

Homilia III Domingo da Páscoa - Ano A


Caríssimos Irmãos

O Evangelho de São Lucas que escutámos neste domingo apresentava-nos o acontecimento de Emaús, o encontro de Jesus com os dois discípulos que se afastam de Jerusalém, após o que, no entendimento deles, tinha sido um desaire, um fiasco, face às expectativas. E ainda que soubessem já da situação do túmulo vazio, a verdade é que a incompreensão os dominava, a novidade era como uma espécie de rumor que não os convencia. Eles não tinham visto nada.
Podemos dizer que estes dois homens são a imagem de cada um de nós, dos discípulos de Jesus de hoje e de todos os tempos. Também nós nos encontramos em caminho, em processo, e os rumores da Boa Nova da ressurreição soam-nos distantes, incompreensíveis; temos a novidade revolucionária dos Evangelhos, mas temos também as histórias e situações pouco dignas e incoerentes da Igreja e de muitos cristãos, um ruidoso cenário que nos perturba.
Contudo, é a estes discípulos em luto, que neste caminho se afastam da novidade incompreensível, que necessitam falar dos acontecimentos para expressar a sua decepção e frustração, que Jesus se faz presente, que Jesus se aproxima de uma forma delicada, como um ignorante dos acontecimentos, permitindo dessa forma uma plena expressão da mágoa e frustração, da dor da desilusão.
Durante duas horas de caminho e conversa, os discípulos podem apresentar a sua percepção de Jesus, expressar a sua leitura dos acontecimentos, fazer, como Pedro no discurso que escutámos na primeira leitura, a afirmação dos dados que acreditam Jesus como um profeta poderoso em palavras e obras.
A esta leitura e percepção, Jesus contrapõe, como nos diz a narração, a história da sua missão, recorda as suas palavras e gestos, o anúncio que tinha feito de como tudo tinha de se cumprir da forma como tinha acontecido. Desde o primeiro anúncio, antes da transfiguração no monte Tabor, que a paixão e a morte não tinham a última palavra, havia sempre a ressurreição no momento seguinte. Como era possível que não o tivessem compreendido, que ainda não o compreendessem?
É de facto surpreendente que, mesmo após as explicações dadas por Jesus, os olhos dos discípulos continuassem fechados ao seu reconhecimento; no entanto, podemos compreender tal cegueira à luz da psicologia, que nos diz que a dor da perda, o sentimento do impossível, impedem a aceitação e compreensão dos acontecimentos, a concepção de uma novidade. Num contexto de processo traumático poderíamos dizer que nos encontramos numa fase de rejeição, apesar das notícias já divulgadas de algo novo que tinha acontecido.
O reconhecimento vai acontecer à mesa, com a bênção e o partir do pão, é nesse momento que os discípulos reconhecem Jesus. É o sinal do pão abençoado e partido que lhes abre os olhos para a presença daquele que eles não suspeitavam possível de estar vivo.
Podemos dizer que esta é a missão de Jesus, também uma das dimensões da missão de Jesus, se não mesmo do próprio Deus na sua história com o homem. Isaías anuncia que o enviado de Deus virá para dar a vista aos cegos, Paulo perde a vista a caminho de Damasco, mas vai recuperá-la pela intervenção de Ananias para poder ver a graça e a misericórdia de Deus. No livro dos Génesis, Agar perdida de dor e mágoa no deserto é incapaz de ver o poço que está à sua beira, e é Deus que lho revela quando ela pensa já pôr fim à sua vida. Deus vem ao encontro do homem para lhe abrir os olhos para a novidade do seu amor, para a sua presença salvadora.
E logo que os olhos são abertos Jesus desaparece, afinal o sentido e a visão foram alcançados e por isso não há mais necessidade de presença, resta apenas a missão a que todos são convocados, de ir anunciar com alegria aos irmãos a verdade da presença experimentada. E se no caminho de regresso os discípulos partilham um com o outro o ardor do coração, a alegria sentida, é porque todos necessitamos enraizar a certeza dessa experiência vivida.
Nos Apotegmas dos Padres do Deserto encontramos uma história que nos diz que um irmão tinha muita dificuldade em compreender uma passagem do Evangelho e por isso decide fazer jejum durante uns tempos para que Deus lhe conceda a graça da compreensão dessa passagem evangélica. Contudo, nada acontece. Decide assim ir ter com um irmão mais velho para que ele lhe possa explicar. É ao fazer o caminho para a gruta do irmão que Deus lhe aparece e lhe fala: Agora que tiveste a humildade de ir ao encontro do teu irmão podes compreender a passagem da Escritura, agora vais saber.
A história dos discípulos de Emaús é assim um convite a perceber que só o encontro com o outro e os outros nos pode libertar do autismo das nossas dúvidas e decepções, da cegueira das nossas verdades absolutas, que o mandamento do amor de Jesus se plasma absolutamente em fazer caminho com o outro, tantas vezes estrangeiro, estranho, desenquadrado das nossa expectativas.
Peçamos ao Senhor que, quer sentados à mesa ou quer palmilhando os caminhos, Ele fique sempre connosco e nos abra os olhos para a sua verdade e o seu amor em cada encontro com os homens e as mulheres nossos irmãos.

Ilustração:  
1 – A Caminho de Emaús, de Altobelo Melone, National Gallery, Londres.  
2 – Os Discípulos de Emaús, de Eugène Delacroix, Brooklyn Museum, Nova York.


2 comentários:

  1. Que o Senhor nos ajude a ver a presença "esclarecedora" dos outros na nossa vida e a aceitar que não estamos sós e temos que fazer caminho com os outros, para entendermos a Luz que Ele nos envia

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  2. A demasiada tensão impede de fazer silêncio para ouvir o Senhor e deixar que a Sua luz nos ilumine. Jesus...o eterno ausente sempre presente quando O acolhemos para O ouvir. Inter Pars

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