Caríssimos Irmãos
Celebramos hoje a
Ascensão do Senhor Jesus aos céus, passados quarenta dias da sua ressurreição e
as leituras dos Actos dos Apóstolos e do Evangelho de São Mateus apresentam-nos
duas versões diferentes do mesmo acontecimento, dois contextos distintos, mas o
mesmo mistério e o mesmo desafio para cada um de nós.
Na narração do
Evangelho de São Mateus encontramos dois elementos, duas realidades humanas, justapostas,
duas realidades difíceis de conciliar quando se referem ao mesmo sujeito. O texto
diz-nos que os discípulos ao verem Jesus o adoraram, mas alguns ainda duvidavam.
Como é possível na
mesma pessoa, em cada um dos discípulos, e como escutávamos na leitura dos
Actos dos Apóstolos, depois de terem partilhado a vida de Jesus, de terem testemunhado
os seus milagres, de fazerem a experiência da sua presença no meio deles após a
morte, o acto de adoração e a dúvida, o reconhecimento da divindade de Jesus,
expressa nesse gesto da prosternação para a adoração, e a incerteza e as
dúvidas do coração que sentiam?
A nossa experiência
humana e de crentes ajuda-nos a encontrar e a compreender esta atitude, esta
duplicidade de sentimentos. Quantas vezes nós estamos intelectualmente convencidos
de uma coisa, de uma coisa boa para nós e para a nossa vida, mas ainda assim
somos incapazes de tirar dessa certeza as consequências práticas para a nossa
vida, para o nosso agir do quotidiano. Quantas vezes fazemos declarações,
propósitos, estamos seguros do que é melhor para nós, mas depois hesitamos,
vacilamos e acabamos por não levar à prática o acertado, o correcto.
A questão dos discípulos,
“ é agora que vais restaurar o reino”, é bem reveladora da situação em que se
encontravam e em que nos encontramos; temos diante dos olhos o horizonte da
vida nova que Jesus nos inaugurou, mas é muito mais fácil ficar preso ao
passado, ao imaginário e às expectativas criadas, como se a obra da redenção e
a ressurreição de Jesus fosse um mero restauro do passado, uma justa compensação
por tudo o vivido e sofrido.
A ressurreição e a
ascensão de Jesus aos céus são assim um convite a crescer, a amadurecer, a gerar
em nós a plena estatura que devemos ter em Cristo, um convite a não nos deixarmos
acomodar ao passado, ao vivido, ao que deveria ser, mas não é, e ao que nunca
será. Temos muita dificuldade em nos abrirmos ao que ainda não vivemos e de
fazer confiança nessa novidade, e por isso vamos adiando mudanças, vamos procrastinando,
incapazes de perceber que o vivido plenamente é a única pista de aterragem da
nossa vida.
E é nesta dinâmica,
nesta realidade, que se insere a resposta de Jesus “não vos compete saber os
tempos e os momentos, mas ides receber uma força do alto quando o Espírito
Santo vier sobre vós e então sereis minhas testemunhas em Jerusalém e até aos
confins da terra”.
Podemos imaginar a
surpresa e até desilusão dos discípulos. Tal como para nós, bastaria uma vida
normal, com uns mínimos olímpicos para viver no nosso quotidiano, facilmente alcançáveis.
Mas temos ainda de esperar, que ficar suspensos de algo que virá? E com essa
responsabilidade de ser testemunhas e enviados nessa imensidão do mundo, até
aos confins do mundo? Não é de admirar que muitos perante este quadro desistam!
Jesus não tem para os
seus, para aqueles pelos quais deu a vida, planos e projectos miseráveis,
minimalistas, simplórios, bem pelo contrário quer que cada um experimente a incomensurável
grandeza do poder de Deus, que cada um goze dos tesouros de glória entre os
santos, que cada um viva a esperança a
que foi chamado, como nos fala a Carta de São Paulo aos Efésios que escutámos. E
para que tal aconteça, para que seja mais fácil, Ele intercede por todos nós
junto do Pai, para que realizemos essa renovação radical na nossa forma de amar
e acreditar. Não foi para restaurar as rotinas e costumes que Jesus subiu aos
céus, isso não lhe é suficiente nem o satisfaz.
A ascensão de Jesus aos
céus evidencia-nos que a nossa relação com Deus não pode estar confinada aos
nossos sentidos corporais, não pode estar condicionada ao que vemos, ouvimos e
gostamos, ela deve crescer ao ponto de sentirmos e percebermos que nada nos
poderá separar dele, nem o frio nem a espada, nem outras realidades, como diz
magnificamente São Paulo.
Neste sentido, devemos
estar conscientes do que vivemos nas últimas semanas, um período sem
precedentes na vida da Igreja e dos cristãos, e que tudo vai evoluir
lentamente, aprendendo em cada passo dado, construindo a adaptando-nos à nova
realidade. Não podemos contentar-nos em regressar às celebrações sacramentais como
o fazíamos antes. O sofrimento que experimentámos na ausência das celebrações da
Eucaristia, por exemplo, não deve nem pode ser esquecido, bem pelo contrário
deve ser um estimulo, um incentivo a abrir antes de mais o nosso coração aos
mistérios que celebramos.
Como Paulo dizia aos
Efésios, que o espírito de sabedoria e de revelação nos ilumine para termos um
conhecimento mais profundo, para que os nossos olhos não se fixem no meramente
exterior, mas nos conduzam ao invisível, para que o nosso coração se abra à
novidade de Deus, com paciência, confiança e humildade na acção vivificante do
Espírito Santo.
Como dizia Santo Agostinho,
quando comungamos não somos nós que apenas recebemos o corpo de Deus, é o próprio
Deus que nos comunga e recebe, é Ele que nos faz seus, que nos integra em si, e
por isso a Eucaristia e a comunhão nunca podem ser uma propriedade nossa, uma
satisfação pessoal, são um dom de Deus para vivermos nele e para os irmãos.
Que a promessa de
Jesus feita aos discípulos de que estaria com eles até ao fim dos tempos nos
liberte de todo o espírito de propriedade, de divisão e mesquinhez, da
murmuração, e saibamos, como nos recordava o Papa Francisco na mensagem Para o
Dia Mundial das Comunicações, ser narradores da beleza da vida humana, da vida
de cada um de nós, e da beleza da vida de Deus que nos habita a todos.
Ilustrações:
1 – A Ascensão de
Jesus ao céu, de Gustave Doré, Petit Palais, Paris.
2 – A Ascensão de
Jesus, de Francisco Bayeu y Subias, Museu do Prado, Madrid.
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