domingo, 3 de maio de 2020

Homilia IV Domingo da Páscoa - Ano A

Caríssimos Irmãos
A leitura que escutámos do Evangelho de São João, a parábola do bom pastor, se assim a podemos chamar, oferece-nos um prolongamento, uma continuidade de reflexão face ao Evangelho que escutámos no domingo passado e que nos falava do encontro de Jesus com os discípulos que iam a caminho de Emaús.
Recordemos-nos que os discípulos enquanto caminhavam com Jesus não o tinham reconhecido, era para eles um perfeito estrangeiro, um desconhecido, que nem tinha conhecimento da tragédia vivida em Jerusalém. É no momento do partir do pão que o reconhecem, mas é também nesse momento, e após o desaparecimento de Jesus do meio deles, que reconhecem como lhes ardia o coração enquanto o escutavam pelo caminho.
No capítulo dez de São João, e nesta parábola do pastor, Jesus enuncia este princípio extremamente importante e fundamental para todos os homens e cristãos: as ovelhas seguem o pastor porque conhecem a sua voz. E a importância deste princípio é de tal ordem, que Jesus vai sublinhá-lo por diversas vezes neste capítulo.
Hoje, e tal como há dois mil anos, é extremamente importante e necessário reconhecer essa voz, reconhecer a voz do pastor para não seguirmos nem salteadores nem ladrões, para não nos perdermos nos ecos das palavras dos nossos próprios desejos e expectativas.
A parábola do bom pastor, das ovelhas que escutam a voz do seu pastor, manifesta, no entanto, uma tensão que não podemos perder de vista e que é necessário manter para nos encontrarmos perto da verdade, para podermos passar verdadeiramente pela porta que é Cristo.
Esta tensão está expressa nesse detalhe que nos pode passar despercebido, e que é o facto de o pastor chamar todas as ovelhas, mas chamar cada uma pelo seu nome. Deus chama-nos a todos e a cada um a seguir o seu Filho Jesus Cristo. Este chamamento coloca-nos um desafio, apela-nos a uma profunda responsabilidade, porque temos de responder como rebanho, como comunidade única, mas ao mesmo tempo como uma ovelha, como um sujeito único e particular. 
E todos nós sabemos que não é fácil, que temos muita dificuldade em articular estas duas respostas de forma equilibrada, que na maioria das vezes nos deixamos levar ou pelo nosso orgulho, pelos nossos interesses pessoais, ou então pelo conformismo e submissão ao grupo, pois dessa forma tenho de dar menos corpo ao manifesto.
Temos de dizer que neste momento da história estamos a viver um momento especialmente difícil nesta questão e no encontro deste equilíbrio, um momento difícil para a Igreja, para a sociedade em geral e para a vida da fé de cada um de nós.
Neste sentido, é necessário procurarmos individual e comunitariamente o resultado desta equação: se eu apenas tenho uma relação com Deus individual, centrada no meu umbigo e na minha satisfação pessoal e espiritual, enclausurado na minha sensibilidade, quem me vai dizer que o Deus que eu procuro é maior que a minha experiência, que não é mais que um reflexo de mim próprio no espelho? Mas, se pelo contrário eu estou apenas ligado à fé dos outros, se me contento em seguir indiferente o rebanho, pelas tradições em que fui educado, como posso fazer a experiência de que Deus me chama a mim, pelo meu próprio nome?
Um cartoon, que circula nestes últimos dias pelas redes sociais, apresenta-nos um Jesus pastor a esforçadamente impedir que as ovelhas saiam de casa, pois ainda não é hora, e sabemos pelo que nos foi comunicado pelas autoridades que não vai ser tão cedo que vamos poder sair, que vamos poder retomar comunitariamente as nossas celebrações. Podemos indignar-nos, revoltar-nos, manifestar-nos contra, pois outros já puderam fazer aquilo que não nos é ainda permitido a nós fazer. Temos esse direito, temos direitos e devemos exigi-los, e também não queremos que nos tomem por tontos.
No entanto, e como nos recorda a Carta de São Pedro que escutámos na segunda leitura, se nós fizermos o bem, se suportarmos o sofrimento com paciência, estamos a viver um tempo de graça, estamos a viver a razão pela qual que fomos chamados, para seguir os passos de Cristo que suportou as afrontas, os insultos, os maus tratos, e que em tudo isso se entregava confiante Àquele que julga com justiça.
Deus trouxe-nos ao deserto nestes dias de pandemia e isolamento social, poderíamos dizer para sermos tentados nos nossos desejos de poder e grandeza, mas sobretudo e como aconteceu com o profeta Oseias, para que o Senhor nos fale ao coração, para que escutemos a sua voz. Será que já nos silenciámos verdadeiramente para escutar o que Deus nos quer dizer, para escutar a voz do bom pastor?
Não nos podemos esquecer que o Senhor, bom pastor, vela sobre nós, quer estejamos confinados em casa ou andemos desgarrados pelos montes. Ele sabe ser e quer ser o pastor de todos e cada um de nós, guarda-nos para que não nos sintamos aprisionados, mas protegidos, cuidados por aquele que deu a sua vida por cada uma das ovelhas.
Confiemos, pois, naquele que sabe verdadeiramente o que necessitamos, mesmo antes de lhe pedirmos.

Ilustração:
1 – Jesus Bom Pastor, Vitral da igreja de São João Baptista de Ashfield, Austrália.
2 – Immunità di gregge, vinheta de don Giovanni Berti, www.gioba.it

1 comentário:

  1. Pertencer a um rebanho e viver como uma dentro dele não quer dizer perder a capacidade de querer e decidir, pois não? Penso que é antes viver em partilha, colaboração, interesse por cada uma das outras ovelhas, sem deixarmos de ser nós mesmas. Dar e darmo-nos sem deixar de sermos. Dificil, muitas vezes. Inter pars

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