domingo, 10 de maio de 2020

Homilia V Domingo da Páscoa - Ano A


Caríssimos irmãos
O Evangelho que escutámos apresenta-nos um excerto da conversa de Jesus com os discípulos durante a última ceia, um trecho do chamado discurso da despedida. São um conjunto de exortações e recomendações, poderíamos dizer uma espécie de testamento espiritual, que nos dão bastante matéria para meditar, contemplar, iluminar o nosso discernimento sobre a vida que Jesus nos convida a viver.
Mas para além do conteúdo, das exortações e recomendações, há um tom, uma forma de dizer as coisas, e de modo muito concreto no trecho que lemos neste quinto domingo da Páscoa, que não nos pode passar despercebido, que não podemos deixar de anotar.
Se lermos pausadamente estas linhas vemos que Jesus se dirige aos discípulos com um sentido de responsabilidade elevado, associado a uma grande intimidade, de uma forma bastante afectiva, com um carinho maternal que nos toca no coração, e que vamos voltar a sentir quando no momento da oração do jardim das oliveiras Jesus se dirige ao Pai para lhe dizer que não perdeu nenhum daqueles que lhe tinha sido confiado. Jesus está a trabalhar para que nenhum se perca, porque o risco era grande, muito grande, havia até já alguém no grupo que se tinha perdido, o filho da perdição como Jesus lhe chama.
Estamos numa ceia que Jesus mandou organizar de modo particular, na qual Jesus partiu o pão e realizou a bênção de forma solene, na qual Jesus se coloca a lavar os pés aos discípulos, para estupefacção de todos e até uma certa revolta, na qual Jesus começa a despedir-se dizendo que tinha chegado a sua hora, que já vai estar pouco tempo com eles, criando desta forma uma tensão que podemos dizer se palpava no ar.
Como crianças perdidas na angústia do desconhecido, da novidade, Tomé e Filipe colocam questões, Tomé procura compreender, quer conhecer o caminho, Filipe procura ver, quer que Jesus lhes mostre o Pai porque isso bastará. Como as crianças que à noite temem o escuro, e tudo fazem para que a mãe ou pai não saia do quarto e apague a luz, assim estão os discípulos a tentar ganhar tempo, a tentar superar a angustia da separação que se vê iminente.
É ancestral esta angústia, esta ansiedade face ao desconhecido, face à separação, natural nas crianças que ainda não desenvolveram a sua confiança, mas é também natural nos adultos o serviço de conforto, a transmissão de confiança, de sossego face à separação e ao desconhecido. Como uma mãe que cuida dos seus filhos, Jesus procura transmitir confiança aos discípulos.
A forma como o faz, o tacto maternal, a sua confiança interna, mostra que Jesus alimenta e tem fundamentada a sua confiança bem longe, bem distante dos poderes da terra e da força dos homens; a sua confiança está radicada no coração do Pai e por isso todo o discurso, toda a exortação é enquadrada no principio e no fim pelo Pai, eu vou para o Pai, eu volto para o Pai, acreditai e tende confiança, não se perturbe o vosso coração.
Este convite maternal, este apelo de Jesus a que não se perturbe o coração, é-nos dirigido a cada um de nós hoje, nas circunstâncias em que nos encontramos, podemos dizer na situação de retoma das nossas actividades. Estamos cansados do isolamento social, sentimos falta da proximidade dos outros, estamos bastante apreensivos relativamente à situação económica, já para não falar da incerteza da evolução da epidemia, sentimos a falta das nossas celebrações comunitárias, da nossa vida como membros de um corpo que é a Igreja, que é a família, que é a sociedade.
Temos diante de nós um desconhecido, um tempo novo, para o qual ninguém nos preparou, que não veio com livrinho de instruções como o último aparelho electrónico que adquirimos, e a cada dia temos de dar um passo em frente, abrir caminho, acreditar que é possível, acreditar como Jesus nos pede, ter fé.
Quando Tomé diz que desconhece o fim para o qual Jesus se dirige e o caminho que segue, Jesus responde-lhe que é o caminho, a verdade, e a vida, que ele não é apenas um guia, um mestre, alguém que envia os outros, mas é uma presença, uma dinâmica, uma força operante capaz de entregar-se e alterar a vida dos outros; que é um caminho que não é apenas meio, mas é uma viagem em si mesma; uma verdade que não é um dogma, mas uma constante descoberta, uma vida que se faz de entregas confiantes, de passos convictos no desconhecido apenas conhecido de Deus Pai.
Se à semelhança de Jesus procurarmos ter o nosso coração enraizado no coração de Deus Pai, se a confiança divina habitar o nosso coração, poderemos enfrentar os desafios dos novos tempos com esperança, retirando da experiência destes dias os instrumentos para a vida nova dos tempos novos. Qual o valor das pequenas coisas, como a saúde, o sol, o poder sair à rua? Como as vamos valorizar no futuro? Que aprendemos com aqueles com quem vivemos tão intensamente? Vão ser eles meus companheiros de caminho no futuro ou meus adversários? Estamos em competição e guerra uns com os outros, ou aprendemos que somos todos essenciais para a vida de cada um?
Não nos podemos esquecer que somos pedras vivas da mesma construção, como nos recordava a Carta de São Pedro na segunda leitura, e que Deus nos pede que entremos confiantes na construção do templo espiritual do tempo novo que temos a desafiar-nos. Um tempo que vai ser exigente em termos de caridade, de solidariedade, e de partilha, no qual não nos podemos deixar enredar em divisões e calúnias, murmurações e críticas destrutivas.
Tal como nos desafia a leitura dos Actos dos Apóstolos temos de servir os irmãos de forma justa não deixando de cuidar igualmente a nossa oração e testemunho, pois só dessa forma ultrapassaremos as dificuldades, animados e confiados em Cristo, animando a confiança nos outros e dos outros nossos irmãos. Procuremos acreditar, para que se cumpram em nós as palavras de Jesus, faremos ainda obras maiores.

Ilustração:
1 – Última Ceia, de Jacopo Tintoretto, Igreja Saint François-Xavier, Paris.
2 – Quo Vadis, de Andrey Mironov.

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